segunda-feira, 30 de agosto de 2021

ABC – QUEBRA DE PARADIGMA NA ARTETERAPIA

 


Por Silvia Quaresma

othila.arteterapia@gmail.com 

Algum tempo atrás certamente acreditaria que dois raios não caem no mesmo lugar, mas a ciência já desmistificou esta teoria quando afirmou que em áreas de grande incidência podem cair não somente dois, mas diversos raios. Então, é render-se aos fatos e aceitá-los.

Atendo a dois artistas plásticos. Em ambos os casos os processos terapêuticos convencionais já não estavam surtindo efeito e como pessoas totalmente envolvidas com arte, Arteterapia pareceu ser um caminho lógico, como abordado por Moraes:

 

É comum que a clínica da Arteterapia seja procurada por pessoas que já têm a prática nas artes: trabalhos manuais, artesanato, artes visuais. Por um lado, o conhecimento de algumas técnicas é interessante pois o paciente sente-se à vontade no manuseio dos materiais. Tais pessoas, porém, são muito comprometidas com a estética, com o belo, até porque essas produções necessitam de aprovação do público, além da preocupação com “o que é vendável” (MORAES, 2018, p.36).

 

Fato é que o conhecimento de algumas técnicas facilita, mas tem um fator limitador considerável para o processo arteterapêutico.   Dois artistas habilidosos cujo contato com a tinta traz um grande nível de racionalização, encontram dificuldade para entregar-se a fluidez quando esta representa para eles momento de profunda racionalização: sistemático uso do pincel, quantidade de tintas “matematicamente” calculada, perspectivas, etc.

A princípio pensei na escrita não simplesmente para registro de uma experiência, mas como disparador, como recurso expressivo. Contava com a possibilidade da palavra transformar-se em imagem, em símbolo, conforme cita Philippini quando fala das estratégias para o uso da escrita criativa no processo arteterapeutico:

 

Abordarei algumas destas estratégias, mas priorizando as experimentações imagéticas em torno da palavra, consideramos como um estímulo gerador para chegar a processos visuais e plásticos, sonoros e/ou corporais. Assim abordarei a questão da utilização da palavra, além de sua importância como ponte para uma produção literária mais fluente; examinando a função da palavra como fonte geradora na produção de IMAGENS. (PHILIPPINI, 2018, p.108)

 

Ofereci cinco folhas, contendo as seguintes imagens: A, B C, D e E.

Pedi que escolhessem duas e que fizessem um registro das impressões em folha separada. Surgiram várias palavras iniciadas com a forma escolhida.

Foi observado pelos clientes não formas, mas letras e com letras é preciso fazer palavras. A reflexão começou quando tiveram que abandonar um padrão pré-estabelecido, instigados pela pergunta: Como sabem que são letras?

A produção aconteceu quando foi solicitado o uso das imagens como formas e não como convencionalmente se conhece.

O resultado fascinou os clientes, surpreendidos pelo leque de possibilidades apresentados pela Arteterapia: B, de suposta letra transformou-se em óculos, D em aquário, e E, grandes garras.



O processo arteterapêutico deve focar na criação e permitir que o ato criativo, tenha como objetivo a expressão e a obtenção de novos símbolos, como lembra Philippini:

 

Cada imagem produzida no “setting” arteterapêutico tem o potencial de transformar-se em “imagem-matriz”, ou seja, imagem geradora de uma série de outras imagens, ao longo do percurso arteterapêutico, de significados correlatos. .(PHILIPPINI, 2018, p.108)

 

A quebra de paradigmas como neste caso, onde letras assumiram novos significados, contribuiu para o esquecimento das listas com inúmeras palavras e deu origem a outros relatos trazidos pelas imagens produzidas.

O arteterapeuta deve colaborar para a obtenção de novos recursos e usos auxiliando na elaboração psíquica de seus clientes instrumentalizando-os.

Afinal de contas, quem disse que eram letras?


Bibliografia 

MORAES, E. Pensando a Arteterapia. Rio de Janeiro: Semente Editorial, 2018. 

PHILIPPINI. A Linguagens e Materiais expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades.  Rio de Janeiro: Wak. 2018.

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Sobre a autora: Silvia Quaresma



Arteterapeuta

Graduada em Letras

Pós-Graduada em Finanças

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora de Othila Arteterapia em Ação

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento individuais e em grupos em Arteterapia

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O BRANCO NO BRANCO

 

Algodão branco

 

Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP

Instagram: @claudia_abe_ 

Que tal trabalhar com algodão branco sobre sulfite branco? O branco no branco. A inspiração veio da técnica que vivenciei com a psicóloga e arteterapeuta Camila Patah, no Grupo de Estudos Vivências Arteterapêuticas Online, coordenado pela arteterapeuta e arte reabilitadora Tania Freire. Esse é um grupo de estudos que se reúne semanalmente há mais de um ano, e que se iniciou logo após a pandemia da Covid-19 se instalar no Brasil. Arteterapeutas formadas por diferentes escolas e abordagens (Gestalt, Psicologia Analítica etc.). É muito bom trabalhar com um grupo de pessoas com olhares e saberes diferentes, pois sempre agregamos conteúdos e as trocas são muito interessantes. 

E assim, fiz a minha proposta para a cliente K, que estava em atendimento comigo, online. Na verdade, a proposta inicial para a sessão havia sido outra, mas como a cliente não tinha em casa o material solicitado, precisei imediatamente colocar o meu cérebro para funcionar e propor uma nova atividade para sua sessão arteterapêutica.

Enviei para ela uma foto pelo celular, para mostrar que iríamos trabalhar com algodão branco. Poderia ser daqueles de rolo, ou bolinha, contanto que desse para desfiar (foto no início do texto). 

Quando iniciamos a sessão arteterapêutica, perguntei se ela estava com o algodão em mãos. Prontamente ela me mostrou um quadradinho branco prensado. Logo perguntei: o que é isso? E ela me respondeu:

- Algodão! Eu uso isso para limpar meu filho na troca das fraldas.

- Juraaaaa?????? Eu nunca vi isso. Não é aquele algodão prensado para retirar maquiagem, é? Eu sou do tempo do rolo de algodão, que vem com uma longa folha roxa enrolando-o e que é uma delícia puxar em chumaços.

 Bem, após a surpresa inicial, expliquei para K como ela iria trabalhar. A proposta era trabalharmos os sonhos. Ir além dos sonhos que surgem enquanto dormimos.

 Fui conduzindo o início da proposta, pedindo para que K, de olhos fechados, fosse sentindo o algodão em sua pele. Só depois deveria abrir seus olhos para manipular o algodão.

 K iniciou desfiando dois quadradinhos de algodão. Amassou, jogou o algodão para o alto, sentiu-o nas mãos, esfregou-o nos braços com seus olhos fechados. E continuou desfiando mais e mais quadradinhos de algodão. Fez uma bola com todo algodão, jogou-a para o alto. Observou.

 Depois pedi para que fosse colocando o algodão sobre o papel branco. “Quando vem os sonhos, o que vem para você?” – perguntei para K. “O que está surgindo como imagens para você? Demore-se. Assim que achar formas e concluir que está pronto, aí sim, pode finalizar com a colagem”.

 

Durante o exercício da colagem, o potencial criativo é estimulado, o que leva a busca de soluções e recursos ao mesmo tempo interiores e exteriores, desenvolvendo princípios ordenadores tanto do fazer como do pensar que possibilitam uma avaliação não só do trabalho mas também de si mesmo que acabam gerando um equilíbrio interno e externo. (CARRANO e REQUIÃO, 2013, pág. 52)

 

A experiência com a colagem é na maioria das vezes um momento de tranquilidade, pois foi antecedido por um período de escolha das imagens e, por vezes, de objetos que irão compor o tema proposto. (CARRANO e REQUIÃO, 2013, pág. 53)

 

Assim que terminou sua colagem, orientei K a observar seu trabalho em diferentes posições, até mesmo de cabeça para baixo. Observar as formas que surgiram, os detalhes. Observar os pensamentos, memórias e sensações que foram surgindo. O que a imagem final lhe provocou. Propus uma escrita criativa logo em seguida.

 Ao compartilhar, K me trouxe lembranças de quando cortava papéis com as mãos, e as sensações que apareciam ao fazê-lo. Questionou-se sobre seus sonhos, se tinha e quais eram, e no mesmo instante começou a narrar vários de seus desejos, em relação a ela mesma e aos seus familiares. Concluiu que precisava de foco. Sua palavra final para esta sessão foi “Leve”.

 Pedi para K levantar seu trabalho para que eu pudesse ver a imagem. Para mim, surgiu uma imagem que parecia uma cena de Benjamin Franklin empinando sua pipa durante uma tempestade, em posição invertida (pelo menos foi isso o que eu imaginei).


Logo, percebemos que os materiais tomam uma dimensão, adquirem importância para o cliente e também para o terapeuta. A criação por meio do uso dos materiais torna-se o centro do processo, e, em muitas situações, o cliente volta-se para sua obra de forma intensa, como uma mãe volta-se para o filho que nasce. O terapeuta fica em uma posição lateral, preservado e menos solicitado afetivamente.  (BRASIL, 2013, pág. 56)

“Empinando nuvens do céu e da terra”

 

Preciso confessar que adorei seu trabalho!

 

Bibliografia:

BRASIL, Claudia. Cores, formas e expressão; emoção de lidar e arteterapia na clínica junguiana. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013.

CARRANO, Eveline e REQUIÃO, Maria Helena – Materiais de arte: sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. – Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013.

 

Se você quiser ler meus textos anteriores neste blog, são eles:

Tudo Começa em Pizza – 28/06/21

Um Material Inusitado – O Carimbo de Placenta – 10/05/21

As Vistas do Monte Fuji – 22/03/21

É Pitanga! – 07/12/20

O que é que a Baiana tem? – 26/10/20

Escrita prá lá de criativa – 27/09/20

Fazer o Máximo com o Mínimo – 01/06/20

Tempo de Corona Vírus, Tempo de se Reinventar – 13/04/20

Minha Origem: Itália e Japão – 17/02/20

Salvador Dali e “As Minhas Gavetas Internas” – 11/11/19

“’O olhar que não se perdeu’: diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” – 19/08/19

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Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe


Arteterapeuta – atuei em instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos. Atuei também em instituição de longa permanência para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de Alzheimer.

Voluntária com o projeto online “Cuidando do Cuidador”, para cuidadores familiares de pessoas com a Doença de Alzheimer, no grupo GAIAlzheimer, São Paulo.

Idealizadora do projeto “Simplesmente Eu” em atendimento grupal online, para pessoas que não conhecem a arteterapia.

Autora do texto “Salvador Dalí e as minhas gavetas internas”, publicado no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra – organizado por Eliana Moraes, 2020, Semente Editorial.

Atendo em domicílio e online.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA

 


Por Tania Salete (RJ) CE

@caminhartes.arteterapia

Desde que fomos imersos neste fenômeno chamado pandemia do coronavírus, em março de 2020, temos, de certa forma, convivido com outro fenômeno que veio a reboque: o luto coletivo. 

Desde então, de uma maneira ou de outra, fomos convivendo com as perdas: de espaços físicos, restrição da nossa fala (pelo uso constante e obrigatório das máscaras), do contato pessoal, emprego, projetos, familiares, amigos, milhares de vidas. Foram e ainda são tantas perdas que ficaremos muito tempo tentando entender o que aconteceu de verdade. Porém, como a vida transita nas oposições, temos luz e sombra, positivo e negativo, em cima e embaixo, percebemos inúmeros   avanços neste tempo. A Arteterapia, por exemplo, se reinventou, se ressignificou e o que parecia improvável e até inadmissível, agora é a nossa mais interessante e significativa ferramenta de trabalho: atendimentos online. E como tem sido incrível para aqueles que corajosamente decidiram atravessar este portal para uma nova realidade. 

Dentre as possibilidades de autocuidado, enquanto arteterapeuta, participo do Grupo Quiron¹ desde o início da proposta. A cada encontro e através das propostas vivenciais, os participantes têm a possibilidade de fazer contato consigo mesmos, com suas almas e, através de seus processos criativos e produção de imagens, nutrirem-se e reenergizarem-se. É como quem chega a um oásis, depois de caminhar por terrenos tão áridos e difíceis, poder descansar, receber acolhimento, compartilhar seu percurso e sentir-se fazendo parte de algo maior. Beber da própria fonte (a arte) é um exercício saudável, necessário e importante para os Arteterapeutas. 

No final de junho participei da palestra sobre Alexandre Calder na prática da Arteterapia, oferecida pela Eliana Moraes. As obras de Calder são instigantes justamente pela alternância entre a leveza e flexibilidade dos móbiles e a densidade e peso dos stábiles, que são obras grandiosas. 

Como proposta prática, tivemos oportunidade de, assim como Calder, experimentar desenhar com arames, percebendo suas gramaturas, espessuras e as diferentes possibilidades de criação, pois a ideia inicial era construir um móbile com arame e algumas peças que julgássemos necessárias para compor a obra. Ou seja, partir do desenho bi para o tridimensional, criando uma escultura em arame. 

            Segundo Moraes (2018), “a escultura é uma técnica construtora, estruturante. No diálogo com a imagem coloca o autor prioritariamente em relação com o volume, o tridimensional”. 

Para Calder, construir esculturas com arame era uma espécie de paixão. O famoso Circo   Calder, composto por várias esculturas de personagens, como acrobatas, palhaços,   animais,  feitos com fios, arames,  madeira, metal, pano, papel, papelão, couro, tubos de borracha, rolhas, botões, strass, limpadores de cachimbo e tampas de garrafa. Parece até que Calder tinha alguma semelhança com os Arteterapeutas na arte de juntar sucatas. 

Embora a proposta fosse animadora, estava vivendo um momento de profunda tristeza, pois no dia anterior havia perdido uma grande amiga para a Covid. Estava emocionalmente abalada e até preocupada se conseguiria chegar ao final da palestra. Mas, confiando mais uma vez na potência e ação da Arteterapia, deixei que a intuição me guiasse e simplesmente fui dando voltas no arame mais maleável (aquele momento já era suficientemente duro para lidar com um material resistente ao manuseio). Porém, ao final, foi solicitado que o trabalho tivesse estabilidade, ou seja, precisaria de uma base mais firme. Tentei vários objetos e não conseguia mantê-lo em pé tempo suficiente. Até corporalmente, minha postura não era de ficar “em pé”.  Enfim, usando pedaços de placas de isopor, consegui estabilizar a peça. Minha intenção inicial foi que aquelas voltas simbolizassem os mistérios da vida e o quão impotente ficamos diante, por exemplo, da morte repentina de alguém. Entretanto, durante a confecção, a peça foi se transformando num ramo de árvore, bem leve, balançando ao vento. Enfeitei-a com flores brancas feitas com EVA e na base, colei dois corações vermelhos (também de EVA), com algumas flores que caíram do cacho. Coloquei a peça em pé e logo pensei que assim como a árvore, precisaria equilibrar também minhas emoções, por maior que fosse a tristeza. Respirei fundo e quando vi a peça pronta, equilibrada, decidi que seria minha homenagem para minha amiga querida. Fui tomada por uma sensação de completude, de acomodação e paz. Era como se a dor tivesse tomado assento no meu coração e se acomodasse num lugar seguro. Foi algo revelador e muito emocionante. Citando Moraes: “Colocar o sujeito na experiência com o material significa colocá-lo para agir sobre ele em suas questões psíquicas”. (MORAES, 2019, 72)

  Ainda segundo Carrano:

 

... manipular os materiais duros esculpindo-os pode ser um ato transformador, pois, no     decorrer do processo terapêutico, quando o homem interage com o material, ele é levado a perceber que, ao trabalhar sobre a matéria, esta ao mesmo tempo trabalhando seus conteúdos internos, ou seja, sobre si próprio, e , dessa relação, pode resultar em uma transformação tanto externa (expressa no resultado da obra) quanto interna (observadas nas modificações de        comportamento por meio de uma maior conscientização do mesmo e nas relações feitas durante o processo terapêutico). (CARRANO, 2013, p.164)

 



Em seguida, utilizando um material mais firme, grosso, como um papelão, por exemplo, deveríamos construir uma peça simbolicamente grande como um stábile, mas que trouxesse amparo, solidez, segurança, estabilidade. Em apenas três movimentos com papelão, surgiu uma casa, mas sem portas. Parecia um grande galpão que foi enfeitado com placas redondas de EVA e no “teto” uma espécie de móbile daqueles tipo cata-vento. Ao ser solicitado que ambos fossem colocados um ao lado do outro, pude perceber que se completavam, apesar das proporções bem diferentes, e até antagônicas. Simbolicamente representava um local de passagem, onde se entraria de uma forma, receberia acolhimento, teria possiblidade de através da arte e dos materiais disponíveis, houvesse uma transformação e saísse do outro lado, diferente e mais firme. Chamei de Casa da Arte. 

 Segundo  Carrano:

 

A arte é sensorial, pois no ato da criação, ela conecta o homem com seus sentidos, ao se                                                             relacionar com o material e é nessa manipulação que a percepção se manifesta agindo por meio do tato, da visão, da audição; despertando a imaginação, que é esculpida, lapidada e incentivada a cada momento. Ao atuar sobre as sensações mais viscerais, o ato de esculpir vai trabalhar a percepção, desenvolvendo a intuição, trazendo autoconfiança pelo fato de conseguir transformar, dando uma nova forma a uma matéria, que ao ser tocada e manuseada, é transformada, trazendo uma sensação de força e poder. (CARRANO 2013,p.164) 

Conclusão 

             O trabalho de Calder foi uma inspiração mais que apropriada, um disparador de processos muito reais e vividos naquele momento. É licito sentir dor, é humano chorar, mas a possibilidade de ressignificar a dor é importante e saudável para continuar sua caminhada.

            A fluidez delicada e flexível do móbile com a concretude, acolhimento e proteção do stábile que para mim se complementaram numa só imagem, foi um momento incrível e que mais uma vez, validou o quanto é bom praticar a Arteterapia e usufruir de sua potência, na vida e na arte.

 

1.      1- Um projeto oferecido pelo Não Palavra, da Eliana Moraes e em parceria com Espaço Crisântemo, da Arteterapeuta Regina Rasmussen

 

Bibliografia:

1. MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia Volume 2. Semente Editorial, ES. 2019. 

2. CARRANO, Eveline, REQUIÃO, Maria Helena. Materiais de Arte – Sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. WAK Editora, Rio de Janeiro, 2013. 

3. Biografia do escultor Alexander Calder - Disponível em: https://comjeitoearte.blogspot.com/2012/07/hoje-aconteceu-aniversario-do-escultor.html

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Sobre a autora: Tania Salete



Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia/UERJ.  Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atendimentos online - individuais e Grupos de Mulheres (REDE), crianças e adolescentes.   Atualmente residindo em Fortaleza/CE

Contatos: @caminhartes.arteterapia (Instagram e Facebook)


segunda-feira, 9 de agosto de 2021

GRANDES ARTISTAS NAS PRÁTICAS DA ARTETERAPIA: ALEXANDER CALDER

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com 

Em meu repertório de estímulos projetivos a partir de grandes artistas para práticas em Arteterapia, um dos artistas mais antigos é Alexander Calder. Honestamente não me lembro quando exatamente ocorreu meu primeiro encontro com Calder, só sei dizer que ele sempre esteve presente no meu pensar arteterapêutico, mas também imprimindo sua marca em minha experiência criativa pessoal.  

Recentemente me dei conta de meu lapso por nunca ter escrito ou criado uma palestra específica sobre este artista que tanto me encanta. E antes tarde do que nunca, hoje dedico este texto a Alexander Calder, o “poeta do arame” segundo Juan Miró. 

Alexander Calder (1898-1976) 


"Viúva Negra" Alexander Calder, no Instituto Moreira Sales, SP

Também conhecido por Sandy, Calder era americano, filho de pais artistas: seu pai era escultor e sua mãe pintora. Convivendo com esse universo, foi incentivado desde cedo a criar. Formou-se em Engenharia Mecânica em 1919 e teve vários trabalhos como engenheiro hidráulico e engenheiro de automóveis. 

Em 1926, mudou-se para Paris, onde conheceu os dadaístas, os surrealistas, e os componentes do grupo De Stijl, experiência que influenciou toda sua arte posterior. Em 1933 Calder voltou aos Estados Unidos. Em 1948 e 49 viajou à América do Sul. 

Calder participou de algumas exposições no Brasil,  tendo vindo pessoalmente ao país por três vezes. Era apaixonado pelo samba e adaptou os passos de nosso ritmo aos seus trabalhos. Morou no Rio de Janeiro por um pequeno período, no bairro de Botafogo, e fez inúmeros amigos. Entre eles, o crítico de arte Mário Pedrosa que, durante 30 anos, escreveu sobre o escultor. Em gratidão à sua relação com os brasileiros, Calder doou um de seus móbiles que hoje se encontra no Instituto Moreira Sales em São Paulo. 

Calder influenciou toda uma geração de artistas brasileiros como Hélio Oiticica, Lygia Pape, Willys de Castro e Abraham Palatnik. Em 2016 ocorreu em São Paulo a exposição “Calder e a arte brasileira”, com registros no youtube. Outra forma de conhecer mais sobre o artista é através do documentário “Sculptor o air” também disponível no youtube. 

As fases da obra de Calder 

Antes de alcançar seu ápice, a obra de Calder passou por algumas fases, como por exemplo, o “Circo Calder”, que consistia em miniaturas de artistas, objetos circenses e animais, feitos com arames, madeira, couro, tecido, entre outros. Suas esculturas foram projetadas para serem por ele manipuladas, de uma forma que pudesse levá-las por onde ele quisesse. A sua primeira apresentação foi para um grupo de amigos e colegas, para posteriormente apresentar em Paris e Nova York, fazendo com que sua performance fosse executada durante quarenta anos. O Circo Calder ainda era figurativo, mas o movimento já se fazia presente. 


A partir desse trabalho com o Circo Calder, o escultor percebeu que gostava de trabalhar com fios e arames, fazendo várias outras esculturas, até que em 1928 Calder fez sua primeira exposição na Nova York. Vale notar que esta é uma primeira inspiração que o artista nos fornece à Arteterapia, ao propormos que o experienciador experimente em sua produção de imagens, a passagem do bi para o tridimensional, do desenho para a escultura, ou ainda o “desenhar com o arame”. 

Nesta fase ainda observamos um Calder figurativo. Até que o artista teve a oportunidade de visitar o ateliê de Piet Mondrian, o que lhe abriu a percepção para a arte abstrata, estimulando assim a grande virada de sua produção artística. 

Os móbiles 



Atravessado por suas referências, Calder alcança seu ápice ao criar uma forma de escultura em arame que Marcel Duchamp denominou como móbile, que, em suas palavras, “é a sublimação de uma árvore ao vento”. Calder tornou-se o primeiro a explorar o movimento na escultura, utilizando placas e discos metálicos unidos entre si por fios que se agitam  e entram em movimento tocados pelo vento ou uma corrente de ar, assumindo as formas mais imprevistas, com um jogo de peso e contrapeso. Calder retrata a leveza, o equilíbrio e o movimento através de seus móbiles. A partir destes, Cader é considerado o precursor da Arte Cinética:

 

O movimento da Arte Cinética, conforme hoje é conhecido, pode ser considerado como datando [a partir de] Alexander Calder... [Ele] resolveu o problema da força motriz de um modo que era simultaneamente simples, elegante e óbvio. Calder usou o movimento do ar. Assim, não tinha necessidade de esconder sua fonte de energia ou de tentar fazer dela uma parte integrante da obra. No começo da década de 1930, começou produzindo o que denominou móbiles [que] consistiam em chapas de metal, pintadas de preto-e-branco ou nas cores primárias... As chapas eram suspensas em varetas e articuladas de tal maneira que podiam movimentar-se livremente em qualquer direção. Quando postos em movimento por uma corrente de ar, os móbiles giram suavemente, em velocidades variáveis, e estabelecem uma espécie de contraponto de movimento...

 

Durante largo tempo, Calder foi o único artista de importância que trabalhou com escultura cinética... Mas depois da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, desde os anos 1950, a Arte Cinética passou a atrair cada vez mais a atenção de artistas sérios. (BARRET in STANGOS, p 187-188)

Outra grande referência para Calder estava em sua longa amizade com Juan Miró. Os artistas se conheceram em 1928 e por cinquenta anos brincaram com a amizade entre a pintura e a escultura. Podemos observar inclusive alguma relação pictórica entre as obras de Miró e Calder. 

Os stábiles


Formado em Engenharia Mecânica, Calder também ficou conhecido por suas esculturas de grande porte, uma última fase das mais conhecidas do artista. Jean Arp denominou esta forma de escultura como “stábiles”, que, ao contrário dos móbiles que têm uma estrutura leve, eram esculturas mais pesadas e densas, feitas com o intuito de serem grandiosas, imponentes. 

O diálogo entre os móbiles e os stábiles, eis uma riquíssima proposta arteterapêutica inspirada em Alexander Calder. 

Práticas arteterapêuticas 

Esta é uma proposta feita em dois tempos. No primeiro momento, experimentaremos o móbile, produção de uma escultura que estimula as propriedades de uma construção tridimensional, com as características do movimento, leveza e equilíbrio. Os materiais utilizados serão arame, EVAs ou papéis coloridos e opcionalmente fio de nylon e palitos de churrasco. 

Em um segundo momento experimentaremos o stábile, produção de uma escultura que estimula as propriedades de uma construção tridimensional, com as características da estabilidade,  consistência, solidez e imponência. Os materiais utilizados serão papéis de gramatura grossa, como cartão kraft grosso, Duplex ou Triplex, ou papelão reaproveitado, além de tesoura, cola cascorez, grampeador, opcionalmente fita adesiva, clips, grampo, tachinha tipo bailarina. Caso o experienciador deseje trazer cor para seu stábile, poderá fazer através da colagem com papéis coloridos ou com pastel oleoso. 


Em um diálogo final, o arteterapeuta irá propor a observação atenta entre as duas esculturas em suas especificidades. É interessante observar o que elas têm em comum e em diferenciais. Qual delas foi mais confortável, de fácil manejo ou desconfortável, de difícil execução ao longo da experiência. Contudo, a reflexão mais importante se dá através da pergunta: como estas características espelham sua maneira de fazer  construções de vida, de forma “móbile” ou “stábile”? 

Referências Bibliográficas:

BARRET, Cyril in STANGOS, Nikos (org) Conceitos de Arte Moderna

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

DIÁLOGOS ENTRE ARTE, TERAPIA E TARÔ: A PAPISA, HILMA AF KLINT E AS RELAÇÕES DE GÊNERO

 Por Mercedes Duarte - RJ

duarte.mercedes@gmail.com

Dando sequência às reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a aspectos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos, trago hoje o Arcano II, a Papisa, em diálogo com uma artista plástica que manteve em segredo durante a sua vida, e vinte anos após a sua morte, boa parte de sua obra: Hilma af Klint.  

O intuito desse diálogo, entre arte e tarô, é o de proporcionar reflexões propositivas, possibilidades terapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[1] - que permeiam esses elementos em diálogo, inspirando assim uma possível ampliação do repertório arteterapêutico. 

A Papisa e o mergulho em si 

Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo

Guimarães Rosa

 

A medida que com minhas palavras tiro das coisas o véu que as cobre, me pasmo ao avisar que fui capaz de observar infinitamente mais do que posso dizer

 Virginia Woolf

 

A Papisa está ancorada no número 2. Enquanto o Mago, número 1, representa a ação, o movimento consciente, o elemento fogo e o princípio yang primário, a Papisa expressa sua contraparte, seu desdobramento, o outro de si, considerada a anima do Mago (NICHOLS, 1997), o primeiro elemento feminino dos arcanos maiores do tarô. Ela está associada ao elemento água, à polaridade yin, ao princípio feminino que se liga à receptividade, aceitação e não-ação. 

A Papisa, entronada, é guardiã de um templo, onde reside uma sabedoria oculta, interna, e o próprio inconsciente coletivo. Sua missão é a de ser um portal do espírito, um veículo por onde a divindade é recebida, entretanto ela não a controla. Assim como a Lei, materializada no livro, ou papiro, encontrada em suas mãos, não foi produzida por ela, mas é ela que a recebe e guarda. 

Em muitas de suas representações ela possui véus que representam o conhecimento velado, o lado misterioso da lua, que guarda sentimentos profundos e sabedoria ancestral. Seus dons se relacionam ao conhecimento interior, à introspecção, ao silêncio da mente, e à intuição. Se se quer conhecê-la há que calar e voltar-se para dentro, compreendendo um tempo que extrapola nosso ritmo imediatista. Desse modo, a paciência é uma de suas artes, assim como a aceitação. A aceitação, não enquanto submissão, mas como acolhimento das sombras, pois para integrá-las é necessário primeiramente conhecê-las e aceitá-las (NICHOLS, 1997).

Diferentemente da magia do Mago - que através da manipulação dos elementos manifesta no mundo material, de modo consciente, sua criação - a magia da Papisa faz parte do mundo dos sonhos, da imaginação, das imagens internas, espirituais e inspiradoras.           

O Mago, número Um, como supramencionado, marca o princípio ativo, consciente, relacionado ao masculino, e a Papisa, número Dois, o princípio receptivo, inconsciente, associado ao feminino. Por motivos óbvios, relativos às desigualdades de gênero e desvalorização do feminino ao longo da história, é possível recebermos essas associações com alguma resistência e desconfiança. A própria autora do livro Jung e o Tarô: uma Jornada Arquetípica (1997), Sallie Nichols, das referências desse texto, ao apresentar a Papisa, desenvolve reflexões nesse sentido, e busca, de algum modo, apresentar compensações a respeito desse arquétipo ocupar o segundo lugar na ordem dos arcanos. Desenvolve, nesse sentido, a ideia da consciência, princípio yang, emergir do inconsciente, princípio yin. Enfatiza, desse modo, uma espécie de anterioridade desse princípio que rege a Papisa, baseada nos mitos da criação: 

O elemento que se liga a ela [Papisa] é a água. Na maioria dos mitos da criação, a água é descrita com o poder original receptivo, produtivo e construtor de forma. Das profundezas do oceano, do berço eternamente balouçante, se ergueu toda a criação – todas as formas de vida. Das profundezas do inconsciente se ergueu a própria consciência. Pois assim como o embrião individual está contido e alimentado no líquido amniótico, assim cada identidade individual está contida e é alimentada no profundo inconsciente de todo recém-nascido. Assim sendo, é do inconsciente que nasce a consciência (1997, p.89). 

Portanto, em conversa com a Papisa através de uma meditação, a autora é convencida de que a sequência numérica não indica a preeminência de um arcano sobre o outro. Ambos são fundamentais. A disparidade entre eles, portanto, marca diferença e não importância. E a ordem dependeria então da direção que se lê. Entretanto, ainda que possamos concluir que é do inconsciente que a consciência surge, a discussão se torna estéril diante da grandeza simbólica, complementar e, ao mesmo tempo, autônoma de cada arquétipo, e de sua importância simbólica na vida de todo ser humano, sejam eles considerados mulheres ou homens. 

Hilma af Klint 


The Swan, No. 12, Group IX SUW, 1915

Imagem retirada de https://arthistoryproject.com/artists/hilma-af-klint/group-ix-swan-no-12/ 

Para me acercar da Papisa, a partir do contato com elementos de natureza artística, por recomendação de minha terapeuta, mergulhei no universo de Hilma af Klint. Hilma poderia representar quase que fielmente o universo da Papisa. Quanto mais conhecia sua história e seu trabalho, mais me sentia próxima ao arquétipo em questão. Hilma af Klint foi uma artista plástica sueca que viveu entre o período de 1862 a 1944. A artista, “talentosa, enigmática e atemporal, conciliou sua intensa vida religiosa e artística como propósito único de sua existência” (CRUZ, 2019, p.44). Klint produziu mais de 124 cadernos com mais de 26.000 páginas de manuscritos e 1.200 pinturas, tanto de caráter figurativo, quanto abstrato de cunho esotérico. Formada na Real Academia de Belas Artes de Estocolmo, em 1887, se tornou uma artista retratista, mas ocultamente elaborava suas obras abstratas. 

Klint estudou muitos movimentos religiosos, mas manteve maior envolvimento com a Teosofia de Helena Blavatsky (1831-1891)[2] e de Rudolf Steiner (1861-1925). É com essa inclinação aos estudos esotéricos e às experiências mediúnicas que Klint, em 1896, passa a se encontrar com mais cinco artistas mulheres para estabelecerem contato com o plano espiritual. Funda então o grupo De Fem, ou “As Cinco”, onde, nas sessões regulares realizadas por mais de dez anos, expressam o contato com entidades espirituais através da escrita automática e de desenhos de caráter mediúnico. Klint, dez anos mais tarde, em 1906, recebe uma proposta de um dos mestres espirituais e a aceita. Consistia em uma “Encomenda para o Templo”, que pretendia a produção oculta de um número volumoso de obras. Klint realizou essa missão entre os anos de 1906 e 1915, seguindo, especialmente no início desse período, a orientação minuciosa do mestre na construção de cada imagem de seu trabalho. 

Em 1909, Klint se aproxima de Rudolf Steiner, teósofo e posteriormente fundador da Antroposofia. Steiner dirige algumas orientações a Klint, com a permissão dos mestres espirituais. A partir de então a artista passa, pouco a pouco, a se apropriar de sua obra, construindo as imagens de modo mais autônomo, baseada em seus estudos espiritualistas. Ambos compreenderam, e também fora orientada pelos mestres, que sua produção estava muito à frente de seu tempo, e que a sociedade da época não estava preparada para recebê-la. Portanto, Klint continuou a produzir em segredo. As pessoas não podiam ter contato com sua obra, exceto Rudolf Steiner - que chegou a ter contato, ao menos uma vez, com sua obra - e as outras mulheres da De Fem que pouco a pouco desfizeram o grupo, deixando Klint sozinha em sua missão. Assim, Klint solicitou que a divulgação de sua produção fosse realizada somente vinte anos após a sua morte. 

Klint, portanto, tinha vidas paralelas. Ao longo do dia trabalhava como retratista, e à noite pintava em segredo as obras encomendadas. Somente em 1964¸ exatamente após vinte anos de sua morte, sua obra começa a ser divulgada. Entretanto, apenas em 1986 suas pinturas ganham uma primeira exposição.[3] 

A produção de Klint é extremamente relevante para a história da arte. Ela pintara imagens abstratas anos antes de Wassily Kandinsky (1939-1944), considerado precursor da arte abstrata. Desse modo, hoje em dia, seu lugar de precursora do abstracionismo é reivindicado. Em Estocolmo suas obras são expostas fazendo menção a seu pioneirismo. Entretanto, não existe um consenso sobre sua classificação. Luciana Pinheiro, escritora e pesquisadora brasileira da obra de Klint, em entrevista[4] sobre a publicação de seu livro “As Cores da Alma” (2018), considera que Hilma estaria mais associada ao Simbolismo que ao Abstracionismo, já que na época não estava inserida nesse movimento, e seu trabalho traz muitos símbolos relativos à sua “canalização” e a seus estudos espiritualistas. 

Entretanto, é interessante notar que os artistas abstracionistas dessa época, Wassily Kandinsky e Pieter Mondrian (1872-1944) também estavam associados à Teosofia de Helena Blavatsky, assim como Klint. Encontravam-se em uma sociedade em pleno desenvolvimento material e buscavam, portanto, espiritualizar a arte através de suas obras de cunho abstrato e espiritualista. 

Hilma af Klint e a Papisa 

Hilma af Klint nos oferece um universo muito próximo ao da Papisa. A artista foi escolhida para ser a guardiã dos segredos, símbolos, imagens do Espírito, que a ela lhe foram confiados. Recebeu a tarefa de canalizá-los, vela-los e não revelá-los. Klint, como a Papisa que é a guardiã do templo dos conhecimentos místicos, profundos e ocultos, recebe a missão e a ela se mantém fiel até o fim de sua vida. Especialmente até a primeira metade de sua missão, Hilma tem papel passivo, de canalizadora das imagens, não possuindo entendimento dos símbolos que recebia (CRUZ, 2019). Para ela as imagens surgiam de algum lugar que não o da consciência. Desse modo, podemos considerar, sem que seja necessário desconsiderar o lugar da espiritualidade, que o inconsciente, pessoal e coletivo, fora fundamental no papel que aceitou desempenhar. Esse modus operandis nos aproxima ainda mais da Papisa, de sua associação à imaginação, aos sonhos e ao inconsciente coletivo.

Klint precisou guardar segredo de sua missão e de sua obra. Portanto, durante cinquenta e oito anos manteve as centenas de pinturas que havia produzido no subsolo do conhecimento coletivo. Em consonância com a artista, a Papisa, por excelência, sabe calar e velar os segredos do templo, ocultando da consciência as imagens com seus véus. Ambas, desse modo, possuem uma profundidade e densidade associadas à espiritualidade e ao inconsciente.

É interessante notar, levando em consideração as relações de gênero, que Klint não foi reconhecida em vida. Mesmo que o quisesse, muito provavelmente encontraria resistências. Como sabemos, os nomes de artistas mulheres não foram inseridos na história da arte ocidental, cabendo algumas poucas exceções. Com isso, quero chamar atenção ao fato de que no tarô a Papisa, apesar de possuir uma classificação feminina do Papa, não possui um lugar institucionalizado no mundo, até porque é um cargo inexistente. Preenche, portanto, um lugar oculto. É o Papa, não por acaso, que possui a visibilidade institucional, recorrentemente associada ao princípio masculino, ao sol que ilumina e que traz à luz.

Tratamos de símbolos e princípios constitutivos de mulheres e homens que se expressam na vida prática. As características do yin, associado ao feminino e às mulheres, em geral, são menos valorizadas socialmente, que as do princípio yang, vinculado ao masculino e aos homens. Não por acaso, quem se institucionaliza e ganha lugar como precursor do abstracionismo é um homem[5] e não uma mulher.

No entanto, sua obra veio à luz. Hoje conhecemos Hilma af Klint e podemos conhecer sua obra. Talvez o lugar da Papisa também esteja se transformando. Quem sabe, algum dia, as características yin se tornem, em nossa sociedade, tão valorizadas quanto as características yang, e as palavras homens e mulheres possam expressar diferenças e não preeminência de uma sobre a outra.

Proposta Terapêutica

A proposta terapêutica, aplicada na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, ao facilitar a aproximação com o arquétipo da Papisa e com obra e vida de Hilma af Klint, era o de possibilitar o contato com o inconsciente coletivo e com a intuição no processo de desenvolvimento de um símbolo próprio. As obras de Klint possuem um material simbólico riquíssimo e inspirador. A proposta para a produção do trabalho plástico então consistia em compor um desenho retirando de cada obra de Klint apresentada um elemento que chamasse atenção, o integrando posteriormente através da pintura.

O trabalho que trago abaixo, de uma das participantes da oficina, é bem representativo da possibilidade de acesso às imagens do inconsciente coletivo. A autora desconhecia o símbolo da Sociedade Teosófica, que Klint fazia parte, o qual não foi apresentado na vivência. Entretanto, a participante retirou elementos de cada obra e ao final os integrou compondo uma imagem bastante similar ao símbolo da Sociedade Teosófica. Abaixo apresento ambas imagens:

 


                                                                     Título: Proteção

 


                                                        Símbolo da Sociedade Teosófica

Nesse processo, assim como Klint, a participante canalizou um símbolo, expressando a possiblidade de acesso ao inconsciente coletivo mediante a todo um processo de estímulo e preparação que envolveu visualização dirigida, contato com o arquétipo e vida da artista em questão, bem como a observação de imagens simbólicas.

 


[1] A Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas quinzenais, facilitadas por mim, inspiradas nos arcanos maiores do tarô que são associados a determinados aspectos da arte.

[2]Co-fundadora da Sociedade Teosófica em 1875 e responsável pela sistematização e modernização da Teosofia.

[3] Sua primeira exposição aconteceu em 1986, na mostra “The Spiritual in Art: Abstract Paintings 1890–1985”, realizada no Los Angeles County Museum of Art. A circulação de seus trabalhos em alguns países europeus permitiram que sua produção fosse reconhecida internacionalmente. Em 2018, obteve a primeira passagem pela América Latina. No Brasil esteve na Pinacoteca de São Paulo, com a exposição “Hilma af Klint: Mundos Possíveis” (CRUZ, 2019, p.44).

[4] Disponível em https://youtu.be/IsxQUZOAB7A. Acesso em 04/11/2020.

[5] Vale a pena ressaltar que esse homem, Kandinsky, buscava espiritualizar a arte, enquanto Klint, servir ao Espírito (CRUZ, 2019), o que marca bem os papéis sociais associados aos gêneros.

 

Referências Bibliográficas

CRUZ, A. C. C. (2019). Hilma af Klint: Do espírito à matéria. Palíndromo, v. 11, n. 24, p. 42-58, maio.

NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte

Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos