segunda-feira, 26 de junho de 2023

O ADOLESCENTE NA VIRTUALIDADE DA PSICANÁLISE: APRESENTAÇÃO DE LIVRO



Por Igor Capelatto

capuccinoprod@gmail.com

Instagram @igorcapelatto

“O adolescente na virtualidade da psicanálise” nasce de uma pesquisa teórico-prática fundamentada nos estudos durante minha formação (Cefas, Campinas, SP) e ao longo das observações clínicas dos atendimentos de adolescentes, uma das especificidades que me propus atuar. A adolescência, apesar de termo, nesta estrutura das fases do desenvolvimento humano, como uma etapa da vida psicossocial e fisiológica, ser aplicado desde o século XIX, ainda hoje, compreender a adolescência ainda é algo um tanto misterioso. Alguns comportamentos e mudanças corporais ainda permeiam desde que adolescente é adolescente, mas com as transformações sociais, culturais, tecnológicas, dentre outras,        o modo de ser do adolescente vai modificando. O olhar do adolescente pelo ponto de vista de um adulto é um tanto comum, seja do pai, da mãe, sejam dos professores nas escolas, sejam dos profissionais que cuidam do adolescente (médicos, terapeutas), seja da sociedade de modo geral. Durante os atendimentos clínicos, ao longo desta pesquisa, observei um abismo entre o adolescente e os adultos. O que havia de falta ali na comunicação? Percebi que pouco se fala do adolescente pelo próprio adolescente. Falar na linguagem do adolescente, entender a linguagem do adolescente.

Entender as necessidades do adolescente da contemporaneidade, seu lugar, sua fala, seus gestos, seus desejos, seus medos e suas angústias. O que os adolescentes mais relatam é o incomodo da frase “isso é coisa de adolescente” como se fosse uma teimosia, ou como se fosse algo que o adolescente exagera. Os conflitos internos do adolescente sendo colocados como se fossem algo superficial e de fácil superação. No entanto, é uma das fases, senão a fase mais difícil de se viver: parece prazeroso sair com amigos, curtir uma baladinha, ir ao cinema, um lanche, namorar... mas as cobranças e mudanças são tão intensas que as angústias muitas vezes cobrem todo esse lugar do prazer e da elaboração e desejos. Entrar na adolescência é perder a infância, é deixar de lado tantas ofertas de cuidado, tantas regalias, e ter que começar a fazer tantas coisas que antes tinham alguém para fazer. É ter que lidar com um corpo estranho a cada dia, a cada mudança, hormônios borbulhando, mudanças sociais, do brincar para um lugar dos estudos e do pensar na vida adulta. É uma fase onde se vive a dor da perda do passado e a angústia, as incertezas e portanto o medo do futuro, sem espaço, muitas vezes para viver o presente. Os quadros depressivos começam a crescer conforme as demandas atuais começam a cobrar mais e mais, muitas vezes cobrando além do que a adolescência deveria ser cobrada, ocupando o lugar do adolescente de ser adolescente. Consequentemente, temos observado a crescente procura por profissionais da saúde mental, para atendimento dos adolescentes. Às vezes por orientação da escola, na maioria por pais preocupados com os comportamentos dos filhos. Mas comportamentos estes que começam a chamar atenção quando se tornam “crônicos”. Quando não querem mais comer, quando começam a faltar na escola ou ir mal nos estudos, quando param de falar com seus familiares ou deixam de lado os vínculos sociais, quando se envolvem com bebidas, drogas, se cortam, tentam suicídio.

Outra situação que nos dias atuais tem preocupado é a demanda da virtualidade, as redes sociais, os programas de conversa, os sites de vídeos, que tem ocupado a maior parte do tempo, da atenção dos adolescentes. Alguns comunicam com seus pais, dentro da própria casa, apenas pro mensagens de texto, o mesmo com colegas, namoros, e a até mesmo em parte das atividades escolares (o que intensificou com a pandemia e a reclusão da quarentena onde os estudos se tornaram online). Muitos conteúdos e muito sujeito perverso na internet atingindo o emocional destes adolescentes que desamparados começam a buscar na virtualidade um lugar de pertencimento. Pensando e pondo em prática o atuar da virtualidade surgiu um paradoxo nesta pesquisa que foi o ponto importante para propor em escrever o conteúdo que, adaptado para uma linguagem coloquial, se transformou em um livro pela editora Papirus, com intuito de orientar os pais e os próprios adolescentes. E, com um destaque maior os psicanalistas (e psicólogos). E, um dos pontos importantes que se tornou destaque na pesquisa, foi o atendimento online dos adolescentes. Com a pandemia e a quarentena, os atendimentos psicanalíticos se tornaram online por meio de aplicativos de videochamada. Mas como colocar o adolescente diante do computador ou celular, sem a dispersão, mantendo-o na análise, e pensando neste novo setting terapêutico (a sala do analista agora seccionada entre o escritório do home-office e a casa do paciente), neste novo mecanismo de comunicação a distância, sem a presença física. Em casa, o pai, a mãe, os irmãos, a empregada, a vó, a tia, o papagaio, o cachorro, estão todos lá e a dinâmica precisa ser mudada para que a análise possa acontecer. Dentre esta e muitas outras questões, as preocupações em pensar essa nova clínica e esse novo olhar sobre o adolescente estão de maneira pratica apresentadas ao longo dos capítulos deste livro, que foi estruturado de modo a mesclar tanto a parte clínica do profissional quando o lugar da família, do pai, da mãe e o lugar do próprio adolescente, de modo que todos possam desfrutar deste tema (a adolescência) e da relação com essa demanda da virtualidade. 

O livro está a venda em todas as plataformas de venda de e-book, no formato epub que pode ser lido pelo Kindle ou por aplicativos gratuitos para celular ou computador ou tablet de leitura de livros digitais.


O Adolescente na virtualidade da psicanálise

Autor: Igor Alexandre Capelatto

Ano: 2023

Editora Papirus

Formato: E-Book

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Sobre o autor: Igor Alexenadre Capelatto



Mestre e Doutor em Multimeios pela Unicamp, Psicanalista Clínico e Professor. Ministra disciplinas em curso de psicanalise e arteterapia. Palestrante. Colaborador do Instituto Shakespeare do Brasil, Casa da Crítica e Casa Papagaio. Colunista do site da Band.


segunda-feira, 19 de junho de 2023

O SENTIDO DA CRIATIVIDADE E DOS PROCESSOS CRIATIVOS EM ARTETERAPIA



Por Heloísa Pires de Lucca - Natal (RN)

heloisapsicanalista@gmail.com

             Este artigo foi escrito a partir do meu TCC de Especialização em Arteterapia e Expressões Criativas, concluído em meados de 2022, denominado “Arteterapia de Abordagem Junguiana: o sentido da criatividade e dos processos criativos”. Tem como bases teóricas alguns conceitos da psicologia analítica de Jung em diálogo com Fayga Ostrower e com autoras que tratam dos processos criativos em Arteterapia.

Quando observamos o cotidiano da nossa própria existência, podemos perceber a criatividade atuando a todo momento, a cada escolha que fazemos. A maneira como resolvemos as pequenas coisas do dia a dia, como mudamos uma receita para aproveitar os ingredientes que dispomos, a maneira como executamos uma tarefa de maneira mais organizada ou mais fácil, como resolvemos os desafios e superamos dificuldades em casa, no trabalho, nos relacionamentos, como um constante recriar de nós mesmos. Às vezes, quando uma situação parece estar fadada ao fracasso, uma energia individual ou coletiva surge e evidencia uma capacidade de transformação ou sustentação ou ainda de resistência.  No entanto, nem sempre é assim. Diante de algumas situações, surgem medos que nos bloqueiam e nos paralisam. Isso acontece, por exemplo, quando iniciamos atendimento com clientes adultos em arteterapia. É comum ouvirmos quando propomos a realização de um desenho: “Eu não sei desenhar”; como se para isso fosse necessária uma habilidade especial. Quando pequenos, na pré-escola, desenhamos antes de escrever. E antes disso, em casa, desenhamos nas paredes, fazemos garatujas e, com liberdade, nos expressamos por imagens. Depois que aprendemos a falar, a escrever, paramos de desenhar, de criar imagens no papel, como se isso não fosse coisa séria e sim coisa de criança, ou apenas de quem tem “dom artístico”. Por que isso acontece? Um aspecto apontado por Lopes (2014, p.39), é que a precariedade da vida afetiva gera um empobrecimento criador. Os bloqueios à ação criativa são gerados pela baixa autoestima; falta de confiança em si próprio; medo; ansiedade; conformismo; excesso de julgamento; falta de autoconfiança.

Seria a criatividade algo que o ser humano aprende ou ele é naturalmente criativo? Jung (2011, p.76, §115) afirma: “O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai o seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem.” Para Jung, (2013, p.64, §245) “[...] o homem é distintivamente dotado da capacidade de criar coisas novas no verdadeiro sentido da palavra, justamente da mesma forma que a natureza”.  Assim, o fenômeno criativo é compulsivo como um instinto, mas Jung prefere designar “a força criativa como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto.” (ibid., §245. Grifos do autor).

Ostrower parte do princípio de que o ser humano é um ser criativo e que a criatividade é um potencial inerente ao homem. A realização desse potencial é uma de suas necessidades. Criar e viver se interligam. Afirma Ostrower (2014, p.53) que “a criatividade e os processos de criação são estados e comportamentos naturais da humanidade. [...] A criatividade é, portanto, inerente à condição humana.” Para a autora, o ato criador abrange a capacidade de compreender e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. Ostrower (2014, p.9) diz: “Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo”. Desde as primeiras culturas, o ser humano é capaz de relacionar múltiplos fenômenos que ocorrem ao redor e dentro dele e lhes dar um significado. Nós nos movemos entre formas e tudo o que observamos à nossa volta é impregnado de formas. São formas em que as coisas se configuram para nós, as quais nós relacionamos e ordenamos. Ao relacionarmos os fenômenos, nós os ligamos entre si e os vinculamos a nós mesmos. Nessa busca de ordenações e de significados reside a motivação humana de criar. Segundo a autora, o homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa. Ele só pode crescer, enquanto ser humano, ordenando, dando forma, criando.

A criatividade não é, portanto, privilégio de artistas ou de alguns poucos escolhidos. Para Lopes (2014, p. 33): “Existem alguns tabus e ideias preconcebidas a respeito da criatividade: muitos nos remetem a um universo mágico somente permitido a alguns iluminados por este dom.” No entanto, como vimos com Jung e Ostrower, este potencial, é inerente ao ser humano, portanto, a criatividade está “presente em todos, independentemente de classe social, grupo étnico, profissão. Sendo a criatividade um potencial, necessita ser desenvolvido.”

Nesse sentido, Fayga Ostrower nos aponta algo importante e necessário para o desenvolvimento da criatividade e do processo criativo que é o conhecimento da materialidade a ser trabalhada. Se não conhecermos a materialidade, se não vivenciamos a materialidade, torna-se impossível ter noção do processo de criação, porque o material tem a sua linguagem. Ostrower (2014, p.35) exemplifica este pensamento por meio da música. Se não conhecemos a materialidade da música, não sabemos o que em realidade significa imaginar musicalmente. Para imaginar formas específicas, lidamos com todo um sistema de signos que são referidos a uma matéria específica.  “[...] O único caminho aberto para nós, seria conhecer bem uma dada materialidade no próprio fazer.”

Segundo Ostrower (2014, p.39) “a imaginação criativa nasce do interesse, do entusiasmo de um indivíduo pelas possibilidades maiores de certas matérias ou certas realidades. Provém de sua capacidade de se relacionar com elas.” Para a autora, o interesse e o entusiasmo por certa matéria “constituem formas de relacionamento afetivo.” “[...] O que, portanto, coloca-se aqui é que, para poder ser criativa, a imaginação necessita identificar-se com uma materialidade.

Quando pronunciamos a palavra Arteterapia, pensamos logo na junção da arte com a psicologia, ou, na psicoterapia por meio da arte. Quais seriam os pontos de conexão entre a criatividade puramente artística e a criatividade em processos psicoterapêuticos? Quando Jung (OC 15, §97) fala da relação psicologia e arte, está falando do processo psíquico da criação artística e não da arte em si. “Apenas aquele aspecto da arte que existe no processo de criação artística pode ser objeto da psicologia, não aquele que constitui o próprio ser da arte”.  A arte em si não pode ser objeto de considerações psicológicas, mas apenas estético-artísticas. Nesse sentido, o valor artístico não é o foco das técnicas expressivas utilizadas por Jung.

A arte pode ser utilizada como recurso metodológico em diversas áreas psicoterápicas. A Arteterapia consiste em uso amplo de técnicas expressivas, pois estas falam de forma direta a linguagem do inconsciente, que se expressa por imagens, símbolos e fantasias. Contudo, a descida ao inconsciente é uma parte do processo, pois, nas produções artísticas, por meio do processo criativo, estabelece-se uma ponte entre o consciente e o inconsciente. Aos arteterapeutas cabe o desafio de possibilitar meios para que o paciente/cliente traga à tona, os conflitos internos, emoções, desejos, fantasias e pensamentos limitantes, bem como o impulso de criar. Segundo Ostrower (2014, p.55): “O impulso elementar e a força vital para criar provém de áreas ocultas do ser”. Assim, conforme Andrade (2000, p.33) citado por Lopes (2014, P. 49), “o criar e o produto da criação podem se tornar o porta-voz desse ensaio de resolução de conflitos”.

A prática da Arteterapia facilita o entendimento do mundo interno, por meio da criação de imagens, possibilitando a consciência de seus conteúdos pela análise dos elementos que a constituem. De acordo com Urrutigaray (2011, p.41): Quando um sujeito “reage” confrontando-se com um símbolo objetivado, ele transforma essa realidade simbólica e se transforma concomitantemente, possibilitando a passagem de energia de um nível a outro, pelo desenvolvimento da criatividade.

Uma das especificidades da Arteterapia, conforme Moraes (2018, p.75), “está no fato de que no setting arteterapêutico o cliente/paciente é convidado a não apenas falar sobre sua questão, mas agir sobre ela, a partir da criação.” A autora propõe o conceito do agir criativo como uma especificidade da Arteterapia.

 “O convite a criar apresenta-se como um vetor de saúde para pacientes tão embotados e empobrecidos em seus investimentos e desejos. [...] Ele amplia o olhar viciado e reduzido quando apresenta novas possibilidades. Estimula que ele exercite sua mente, se esforce e busque soluções, fazendo com que amplie seu repertório. Ao se ver capaz de dar forma e transformar seus conteúdos em cores, formas e imagens, o paciente acessa sua autoestima. Todo esse processo produz algum prazer e estimula o paciente a resgatar seus desejos de vida!” (MORAES, 2019, 102).

Conforme Lopes (2014, p.59), o terapeuta cria quando propõe técnicas específicas, para promover uma aproximação entre o mundo simbólico e a consciência a partir do mergulho na história trazida pelo paciente/cliente. Por sua vez, o paciente/cliente cria “no momento em que abre a sua caixa simbólica e começa a fazer novas relações a respeito da sua própria história.”

O sentido do ato criativo nos mostra a possibilidade de desenvolvermos novas formas, modificar as existentes, recriar a partir concretização das imagens expressas na materialidade manipulada. É partir rumo ao desconhecido em uma viajem interior que possibilita o encontro de tesouros reluzentes, que trazidos à consciência, irão expandi-la mais e mais. No ato criativo reformamos a nossa casa interior, consertamos o que está quebrado ou identificamos, separamos e jogamos fora o que não serve mais. Limpamos e reorganizamos os espaços, redefinimos as conexões e as funções internas, iluminamos e arejamos os ambientes, atualizamos as cores que queremos preservar ou colocamos novas, criamos espaços de conviver e espaços de intimidade e aconchego.

A criatividade e os processos criativos são a matéria prima da Arteterapia. É possível afirmar que não é possível pensar e fazer Arteterapia sem agregar a criatividade e os processos criativos como parte dela. A Arteterapia é conduzida pelo potencial criativo do arteterapeuta e especialmente do próprio cliente no seu fazer, e ao mesmo tempo alimenta e desenvolve esse potencial. Assim, a criatividade é algo inerente e orgânico à Arteterapia.

 

REFERÊNCIAS

·         JUNG, Carl Gustav. OC 15. O espírito na arte e na ciência - 6ª ed – Petrópolis, Vozes, 2011.

·         JUNG, Carl Gustav. OC 13. A natureza da psique - 10ª ed – Petrópolis, Vozes, 2013.

·         LOPES, Cristina Pinto. Práticas criativas de arteterapia como intervenção na depressão: memórias da pele. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014

·         MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia. - 1ª. Ed.- Divino de São Lourenço, ES: Semente Editorial, 2018 

·         MORAES, Eliana. Pensando a arteterapia. Vol. II. Semente Editorail, 2019.

·         OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 30.ed. Petrópolis, Vozes, 2014.

·         URRUTIGARAY, Maria Cristina. Arteterapia: a transformação pessoal pelas imagens. 5ª Ed. – Rio de Janeiro: Wak, 2011.    

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      Sobre a autora: Heloísa Pires de Lucca



      Psicanalista e Arteterapeuta

Realiza atendimento clínico nos campos da Arteteterapia e Psicanálise. Atuou como assistente

social em programas habitacionais de interesse social e programas de incentivo à diversidade

cultural na Prefeitura de São Paulo. Atuou como professora em cursos de graduação no curso

de Serviço Social e pós-gradução em Políticas Públicas.

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segunda-feira, 12 de junho de 2023

A ARTETERAPIA E A IMPORTÂNCIA DO PROCESSO

 


Por Eliana Moraes – MG

Desde que iniciei meus atendimentos em Arteterapia em 2009, um dos fenômenos que mais me chamaram a atenção está em tudo aquilo que acontece durante o processo de criação do paciente/cliente. Meus primeiros textos escritos para o blog e compilados no livro “Pensando a Arteterapia Volume 1” são registros dessas reflexões advindas das práticas e atendimentos clínicos, que gosto de chamar de “o chão da vida do arteterapeuta”.

Minha formação em Arteterapia baseou-se amplamente na Psicologia Analítica de Jung, teoria que em muito nos instrumentaliza para a escuta e manejo quanto às produções simbólicas dos pacientes/clientes. Entretanto, a consciência de que estas são resultados de um processo criativo, abriu um vasto campo de observação, escuta e consequentemente, estudo para minha construção profissional.

Um primeiro embasamento teórico que muito me orientou foram os escritos de Fayga Ostrower em seu clássico livro “Criatividade e Processos de Criação”. Há alguns anos mantenho um grupo de estudos que tem essa literatura como orientadora, e estudamos tantas ramificações possíveis, originadas no processo criativo dentro de um setting arteterapêutico, ou seja, o fenômeno da criação orientado para o autoconhecimento e movimentos ressignificadores de um paciente/cliente.

Fayga é uma teórica da Arte. Nossa leitura de seu livro tem como objetivo beber da fonte dessa teoria para aplicar na prática arteterapêutica propriamente dita. Esse estudo já resultou na produção de textos e palestras, além de um esquema que nos espelha que a Arteterapia possui “duas pernas” para caminhar: o processo e a imagem; E que a partir dessas duas bases, surgem as teorias da Arteterapia propriamente dita. A partir dessa compreensão, é necessário que o arteterapeuta amplie seu olhar para a multiplicidade de embasamentos teóricos que lhe sustenta para seu caminhar com as “duas pernas” e o seu protagonismo como arteterapeuta em suas especificidades.

 


Uma referência bibliográfica em Arteterapia sobre o processo

No seguimento do estudo da importância do processo na Arteterapia, encontrei-me com o livro “O caminho do imaginário” de Alexandra Duchastel. Tenho lido este livro também em companhia de Vera de Freitas, minha parceira de estudos e atualmente na produção de conteúdos sobre o ateliê arteterapêutico. Em nosso último evento online utilizamos a primeira parte do livro de Duchastel como embasamento teórico. Hoje trago para esse texto um fragmento de nossas reflexões, mas já indicando sua leitura integral aos amigos do Não Palavra.

O “Caminho do imaginário” é um método criado pela arteterapeuta canadense Alexandra Duchastel, registrado em seu livro de mesmo nome. Refere-se à “... uma abordagem multidisciplinar em arte-terapia, centrada sobre o processo...” (DUCHASTEL, 2010, 9). Ou seja, um manejo arteterapêutico “onde o processo criativo é também importante, se não mais, que a obra final...” (DUCHASTEL, 2010, 7).

Partindo desse princípio, é interessante abrir essa reflexão com a noção de criatividade da autora:

A criatividade é essa força misteriosa que gera transformações incessantes de cada uma de nossas células. É um dom universal que não tem nada a ver com o talento artístico e que nos permite apreender a realidade diferentemente, reorganizá-la de uma maneira que serve melhor à vida. Naturalmente, a criatividade pode se expressar em todos os setores da vida: no trabalho, em nossas relações pessoais, na cozinha, no jardim ou mesmo em um laboratório. Mas a expressão artística constitui o meio mais direto de reatar com essa extraordinária capacidade de transformar as coisas, pois nela, tudo é possível. (DUCHASTEL, 2010, 11-12)

Aqui reside uma articulação entre as palavras de Duchastel e as de Fayga Ostrower: “Criar e viver se interligam.” Assim compreendemos que a criatividade não está associada diretamente apenas às atividades artísticas, mas pensar criativamente é um modo de ser e funcionar em todos os setores da vida. Como arteterapeutas, compreendemos que parte de nossa função é promover um (re)encontro entre os experienciadores da Arteterapia e essa “capacidade de transformar as coisas” para que estes retornem às suas vidas encontrando soluções criativas para ela.

Mas em seu método, Duchastel nos mostra um caminho específico para esse (re)encontro: a abertura para o processo e o prazer de caminhar sobre ele, sem o imperativo de já se ter algo construído em mente. Nas primeiras páginas de seu livro, ela faz um compartilhamento pessoal:

... eu me divertia simplesmente com as linhas, as formas, as cores...

Eu lembro de que o objetivo desse exercício não era a estética; eu queria, antes, encontrar o simples prazer de brincar...

Acabava de compreender que o essencial da experiência artística não se encontra necessariamente no produto final, mas na maneira pela qual nos submetemos às forças das linhas, das formas e das cores.

Essa experiência continua a ser uma inspiração cada vez que a crítica de arte interior em mim julga desfavoravelmente meu trabalho e tenta, assim frear meu élan de expressão. Essa lembrança detém um convite a reencontrar o prazer de criar, de estar no momento presente, totalmente autêntico, fiel a mim mesma. (DUCHASTEL, 2010, 18-20)

Quando leio as palavras de Duchastel, ouço um eco do meu próprio processo criativo. Quando estou diante de uma materialidade, muitas vezes sinto a propensão à um bloqueio caso meu ponto te partida se dê em uma imagem pré concebida mentalmente. “A crítica de arte” dentro de mim prontamente se manifesta, trazendo dúvidas sobre minha capacidade de traduzir o que eu sinto na imagem pensada. Encontrar o caminho das linhas, formas e cores espontâneas também foi para mim a descoberta de um prazer criativo altamente desbloqueador para mim. E uma vez em movimento, é possível que emerja um símbolo figurativo espontâneo, advindo diretamente do inconsciente, como diz a própria Duchastel: “Para minha grande surpresa a imagem arquetípica de um velho homem triste, mas sábio, apareceu...”

Um outro ponto abordado por Duchastel que espelha em muito o início de minhas observações nas práticas arteterapêuticas é o limite da palavra para a expressão da angústia do paciente/cliente. No livro “Pensando a Arteterapia Volume 1”, os primeiros textos compilados se referem à quando o falar pela palavra está interditado – eventos que se atualizam em muitos casos clínicos meus e de meus supervisionandos. Há momentos em que o paciente/cliente descreve grande angústia mas, por estar tão inconsciente de si, não consegue associá-la à alguma causa raiz. Em momentos de uma dor exacerbada – como por exemplo a dor do luto pela perda de um ente querido – não é possível falar dela através da palavra por causar a sensação de “colocar o dedo na ferida”. Ou ainda, em casos de expressões racionais, teóricas, um discurso viciado no campo já conhecido. Esses são apenas alguns exemplos de quando a palavra está associada à uma resistência e a Arteterapia se mostra como um caminho de desbloqueio expressivo:

Contrariamente às abordagens  psicoterapêuticas tradicionais, onde se relata principalmente eventos dolorosos ou traumatizantes decorridos no passado, a arte-terapia implica uma experiência imediata, que é vivida aqui e agora. Voltando ao instante presente, evita-se uma armadilha frequentemente vista em terapia: o aprisionamento do cliente em seu mito pessoal. A pessoa conhece e conta sua história pessoal como se tratasse de um cenário imutável, e com frequência, estéril. (DUCHASTEL, 2010, p 32)

A ampliação da linguagem para outras expressões “não palavra” se mostra um caminho tão potente quanto eficaz para a construção de um “novo vocabulário”:

A utilização de diferentes meios de expressão... permite um contato direto com a sabedoria inconsciente e estimula a emergência de emoções bloqueadas. O terapeuta ajuda o cliente a observar seus modos de funcionamento e ultrapassá-los, introduzindo uma nova experiência. Essa experiência imediata no plano da relação terapêutica, oferece a possibilidade de ser surpreendido pelo poder das imagens e descobrir novas facetas de sua personalidade. Assim, aumentamos seu “vocabulário” de reações a diferentes situações da vida. (DUCHASTEL, 2010, 32)

As palavras de Duchastel me lembraram uma citação de Angela Philippini que é uma das minhas bússolas orientadoras como arteterapeuta:

A experiência criativa  nos “transpassa” e permite que “trans-bordemos” e atravessamos limites e interdições,  resgatando “notícias de nós mesmos”, nem sempre claras e acessíveis no meio dos inúmeros ruídos e dispersões da vida cotidiana...“ (PHILIPPINI, 137)

Em movimento contrário ao pensamento e expressão verbal paralisados no pouco que o sujeito acessa em sua consciência adoecida, a Arteterapia age resgatando “notícias de nós mesmos”, lampejos de saúde esquecidos no campo do inconsciente. E Duchastel segue seu texto nos lembrando que o processo criativo carrega em si um potencial de transformação da matéria física em reflexo das transformações interiores:

A matéria que se transformou sobre minhas mãos era o eco de uma transformação muito mais profunda em meu interior. Encontrei soluções inovadoras para problemas que anteriormente me pareciam sem solução. Tudo parecia desbloquear minha vida. Eu me pus a recuperar o tempo perdido... A partir desse momento, soube que tinha o poder de transformar minha vida. (DUCHASTEL, 2010, 20)

Longe de esgotar as ricas reflexões provocadas por este livro, hoje encerramos essa primeira reflexão com a consciência arteterapêutica que “Através dos meios artísticos, a pessoa exprime o que ela não saberia revelar de outra forma.” (DUCHASTEL, 2010, 32) E que “Para se revelar, a alma precisa desse contato contemplativo com a imagem, o gesto, o ritual. (DUCHASTEL, 2010,33) Ou seja, com a imagem, mas antes dela, o processo.

Em um próximo texto daremos seguimento à reflexão sobre o “Caminho do Imaginário”.

 

 

Referências Bibliográficas:

DUCHASTEL, Alexandra. O caminho do imaginário.

OSTROWER, FAYGA. Criatividade e Processos de Criação.

PHILIPPINI, Angela. “Linguagens e materiais expressivos”

segunda-feira, 5 de junho de 2023

O ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO E O ARTETERAPEUTA



Por Eliana Moraes - MG 

naopalavra@gmail.com 

O ciclo de palestras mensais promovidos pelo Não Palavra em parceria com o Espaço Crisântemo tem em 2023 seu quarto ciclo, e assim nos consolidamos como um grupo de estudos aberto, que visa colaborar com a formação continuada do arteterapeuta. Nosso objetivo é estimular o desenvolvimento da escuta arteterapêutica e o pertencimento através do fortalecimento de uma rede de (hetero e auto) suporte. 

Em nossos estudos buscamos a articulação de diversas teorias com a Arteterapia, dentre elas a Psicologia Analítica. No mês de fevereiro nos aprofundamos no estudo sobre o arquétipo do curador ferido a partir dos livros “O curador ferido: mito e formação junguiana” (2019) de Rejane Maria Gomes Leite Natel, que baseou sua escrita no Capítulo “Vocação e Profissão” do livro “Psicoterapia” Marie-Louise von Franz (1990/2021). 

Desde 2020 temos utilizado a manifestação grega desse arquétipo, o mito de Quíron, como inspiração para o grupo arteterapêutico mantido pelo Não Palavra e Crisântemo, que promove encontros entre os arteterapeutas em suas feridas com aquilo que eles oferecem como “curadores”. Este estudo mostrou-se bastante instigante ao abrir nosso olhar para a amplitude e riqueza das manifestações desse arquétipo e o quanto ele espelha nosso caminho como terapeutas. 

O curador ferido como um arquétipo 

O curador ferido é um arquétipo que se constela em variadas tradições, culturas e se atualiza em diversas biografias. Nos dois livros que hoje nos embasam, é estabelecida a articulação entre esse arquétipo, o xamã e o analista junguiano.

 

O universo xamânico e sua representação na figura do xamã… apresenta sua correspondência no mito do curador ferido em várias mitologias. O mitologema central traz o homem ferido (meio homem - meio deus) que, ao curar-se, passa, por meio da sua dor e sofrimento, poder curar a dor da Humanidade. Assim, nesse universo mitológico, encontramos, na mitologia grega, sua representação e interpretação. Na mitologia grega (Asclepius e Quíron), como em outras, ele é aquele que, por sua dor e sofrimento, deu um sentido e significado às suas experiências, tendo acesso direto com as divindades desse Sistema mitológico. (NATEL, 2019,  p. 55)

 

Essa imagem arquetípica se expressa em várias culturas, desde Kyron ou Quiron, na antiga Grécia, até o orixá Obaluaê, na cultura nagô, na Nigéria, e nos candomblés e umbandas no Brasil. O mito deixa claro que a capacidade do curador está associada à ferida reconhecida e constantemente aberta de quem se disponibiliza a arte da cura. O saber-se ferido, conhecer a dor e entender seus mecanismos é o ponto fundamental que possibilita entender a dor e seus caminhos de maneira mais ampla e completa. Por outro lado, a ferida do curador é o que o mantém aberto ao outro; a ferida na pele deixa o contato mais autêntico. (MORAES, in NATEL, 2019,  p. 9) 

Neste contexto, o arquétipo do curador ferido também se manifesta na figura dos terapeutas, seres humanos que possuem suas feridas, marcas, traumas, sensibilidades, vulnerabilidades, mas que de posse dessa experiência é despertado e capacitado para uma empatia, compaixão e disponibilidade à colaborar com a “cura” do outro. Compreendemos então o mito do curador ferido como um dos regetes do caminho do terapeuta e a consciência dessa vocação faz parte de sua jornada de individuação:

 

Assim, as afirmações da autora [von Franz] vão, de forma circular, colocando-nos em contato com… a vocação para o ofício… como uma profissão, um ofício, ser escolhido e escolher, em suma, um processo. E são esses determinantes que orientam e definem nossos papéis e funções na sociedade em que estamos inseridos. As características inatas, a história de vida e, o lugar que ocupamos no mundo nos remete a vivermos mitos que, ao longo da vida, retratam o Ser completo que buscamos ser no nosso processo de individuação, o nosso Self.

 

Nossos temores e dores nos ajudam nessa escolha. É comum vermos adultos que na infância sofreram doenças graves e ao se curarem, transformaram-se em grandes médicos, grandes curadores. E assim, o mito do curador ferido, mantem-se vivo em nosso inconsciente pessoal e coletivo. E esse ofício vem carregado de uma carga afetiva, que só identificamos muitas vezes ao longo da vida. (NATEL, 2019,  p. 42-43) 

Para as autoras, a vocação do terapeuta está ligada a seu papel no mundo e a realização de sua jornada de individuação, mas “está relacionada com algo ainda mais profundo e essencial – a ligação com Deus ou com os deuses, ou seja, com as forças que se manifestam dentro da psique.” (VON FRANZ, 2021, p 326-327). Assim, encontrar sua vocação está relacionado com algo de divino na experiência do terapeuta e o único caminho possível para esse encontro é descendo às profundezas do inconsciente:

 

A pessoa que não tenha tido acesso às profundezas do inconsciente, e visto ali “a natureza de todos os espíritos da doença”, dificilmente pode possuir empatia real e suficiente com relação ao grave sofrimento psíquico dos seus semelhantes. Ela só os tratará de acordo com as regras, sem jamais ser capaz de sentir empatia por eles, e este é frequentemente o fator chave para os pacientes.

 

[O terapeuta] sofre sua doença iniciatória não por causa de uma fraqueza, e sim a fim de se familiarizar com “todos os tipos de doenças”, para saber, a partir da sua experiência, o que significam a possessão, a depressão, a dissociação esquizóide, e assim por diante.

Tampouco seu desmembramento iniciatóio é esquizofrenia. De acordo com a descrição mitológica, trata-se de uma redução ao esqueleto. (VON FRANZ, 2021, 330-332) 

A partir desses trechos observamos a importância do terapeuta rever-se em sua história pessoal e trazer à consciência as experiências que o constroem como ser humano e no chamado para ser terapeuta, em especial os momentos em que foi “reduzido ao esqueleto” em sofrimento de suas dores e feridas. 

Tenho testemunhado a jornada de individuação de alguns terapeutas, na condição de sua terapeuta ou supervisora e não raras vezes ouço suas dúvidas sobre a condição de exercerem o ofício uma vez que sofrem de questões e dores tão profundas. Acolho esses questionamentos com muita empatia (afinal, em minha humanidade, também os experimento em alguns momentos difíceis a mim) e lembro à estes terapeutas as palavras de Von Franz que nomeia a experiência desses sintomas como “doenças iniciatórias” para que o terapeuta vivencie-se em sua humanidade e desenvolva, além de seu treinamento intelectual, o contato com o coração, o sentimento e o desenvolvimento da empatia, base estrutural de qualquer vínculo terapêutico.

 

Embora esse problema [a formação] diga principalmente respeito ao treinamento intelectual e ao conhecimento do futuro analista, não devemos nos esquecer do sentimento, ou seja do coração. Por mais inteligente que um analista insensível possa ser, nunca vi nenhuma pessoa desse tipo curar ninguém! E o “coração” não pode ser instilado. A pessoa que não o possui, na minha opinião, é a menos adequada para essa profissão. (VON FRANZ, 2021, p 325-326) 

Entretanto, para dar real suporte às feridas do curador:

 

Há uma necessidade de passarmos por uma análise profunda para obtermos conhecimento do nosso próprio mundo interior, e da aproximação necessária de vivências e encontros com o Si-mesmo, processo pelo qual ela [Von Franz] e Jung se submeteram…” (NATEL, 2019,  p. 21) 

Afinal,

Como analistas, nada poderemos fazer se nós mesmos não nos dispusermos a  passar por esse processo. (NATEL, 2019,  p. 21)

A recusa do terapeuta de vivenciar um processo terapêutico e de autoconhecimento profundo pode causar diversos danos em si e na relação com seus pacientes, como por exemplo a manifestação de aspectos sombrios do arquétipo do curador ferido. Um  potencial aspecto sombrio citado por Von Franz é o complexo de poder na relação terapêutica:

 

… o curador também tem uma sombra específica, ou seja, essa vocação também possui um contra-aspecto sombrio. Trata-se da figura do xamã ou curandeiro demoníaco. A forma mais superficial disso é o terapeuta que é governado por um complexo de poder. É evidente que nessa profissão, na qual o indivíduo é seu próprio senhor e amo, e na qual as outras pessoas frequentemente se agarram a ele de maneira ingênua e infantil, o abuso do poder representa enorme tentação. Por exemplo, o analista pode se ver tentado a assumir o papel de pai ou do sábio, aquele que sabe o que está certo. (VON FRANZ, 2021, 332) 

Além de sair de seu lugar e ocupar a figura paterna, também compõe o potencial sombrio do arquétipo, ser possuído pelo complexo materno:

 

Um problema difícil se apresenta pelos possíveis estagiários que são possuídos pelo arquétipo da cura. A imagem arquetípica do curador está relacionada com a do puer aeternus, o filho-deus criativo da Grande Mãe. Número considerável de jovens que têm um complexo materno e a tendência de se identificar com esse arquétipo. Eles costumam manifestar uma qualidade “maternal” com relação a todos que são indefesos ou sofredores, e frequentemente também têm um dom para o ensino...

 

Um trabalho árduo, portanto, aliado aos necessários esclarecimentos através da análise, com frequência tornam possível superar a inflação. É importante para essas pessoas compreender que é o inconsciente que, em última análise, causa e dirige o processo de cura, e que o analista é apenas aquele que ajuda e apoia o processo, e não seu autor. (VON FRANZ, 2021, 320) 

A palavra norteadora nos oferecida por Von Franz é inflação. Seja inflar-se pelo complexo de poder, paterno ou materno, de toda forma o aspecto sombrio que pode devorar o terapeuta que não se conhece, envolve sua inflação perante seu paciente. Para a autora, o grande antídoto para evitar esse fenômeno é um trabalho árduo em análise e a tomada de consciência de que o terapeuta não é autor do processo de “cura” do outro, mas sim o agente facilitador dos caminhos do inconsciente de cada sujeito. 

Em síntese, Natel defende que:

 

… para exercermos nossa função de psicoterapeutas (Junguianos) temos que mergulhar num processo de autoconhecimento e, assim, atingirmos um status, uma especialização, que nos permita estar a serviço do outro.

 

Ao nos depararmos com o nosso próprio sofrimento e dúvidas, vivenciando-os em nosso processo onírico, nossas fantasias e símbolos, é que poderemos nos identificar com o mito do curador ferido… (NATEL, 2019,  p. 26-27) 

Como método, a escuta analítica está voltada para o universo simbólico de cada paciente. Entretanto, para o seu bom manejo é essencial que o terapeuta tenha a consciência (possível) de seu próprio universo simbólico:

 

… ao submergirmos como analistas no universo simbólico de nossos pacientes, devemos ter obtido um conhecimento de nosso próprio universo simbólico para poder acompanhá-lo em sua cura e promover um contato com o inconsciente capaz de resgatá-lo em sua individualidade, emergido em seu cotidiano e em interação com o coletivo. A percepção de seu eu deve se dar por meio dos símbolos contidos no Si-mesmo e no coletivo, e para poder acompanhar esse processo o analista deve tê-lo feito em seu caminho pessoal, pois só dessa forma poderá ajudar a diferenciação que o paciente terá que fazer daquilo que é dele e o que é do universo psíquico e espiritual que é imposto ao cliente em sua coletividade. (NATEL, 2019,  p. 17) 

Ou seja, o autoconhecimento do terapeuta envolve conhecer seu universo simbólico pessoal, para diferenciar-se do universo simbólico do paciente e colaborar que este diferencie seus símbolos pessoais da sua coletividade. Para exercer tal ofício, ao terapeuta:


É preciso entender e ressignificar símbolos contidos no inconsciente pessoal e coletivo. E, finalmente, remete-nos à questão da vocação, o chamado dos deuses… Aquilo que faz sentido em nossas vidas, nossa trajetória em direção ao Self. (NATEL, 2019,  p. 40) 

Da Psicologia Analítica à Arteterapia: o arteterapeuta e suas especificidades 

Uma das especificidades da Arteterapia está no método de “dar forma” às imagens do universo simbólico de cada paciente (entendendo este “dar forma” como algo material ou não) através da arte, da criação, das diversas materialidades e linguagens. É com o manejo do ato criativo e das imagens resultantes que um arteterapeuta exerce seu ofício específico.

Para tanto, entendemos que para o conhecimento do próprio universo simbólico, é essencial que o terapeuta mantenha ativa sua própria experiência com as materialidades, seu processo criativo e a formação de seus símbolos pessoais. O próprio Jung assim nos inspira:

 

… em Memórias, sonhos e reflexões, Jung (1975) descreve suas experiências no período entre 1912-1920, em contato com as imagens que o inconsciente lhe impunha em sonhos e visões. Ele relata o enfrentamento com o temor em relação a essas imagens, que lhe causaram dúvidas e inquietações quanto ao que seu arsenal teórico lhe oferecia, tornando-se a base para o trabalho do resto de sua vida…

 

… Ele chegou a temer por sua saúde mental e adotou o empirismo, a vivência como pssibilidade para montar sua teoria, e assim o fez durante o período em que mudou para sua casa à beira do lago, onde passou a viver essas imagens e sonhos…

 

… Nesse período… percebe que, para ele, tudo convergia para o centro; o processo de desenvolvimento era circular, mandalas apareciam em seus sonhos e visões, sendo que ele próprio vive a experiência de criá-las e pesquisá-las. E nesse movimento circular, ele percebe as transformações que sua psique sofrera.  (NATEL, 2019,  p. 19-20) 

E aqui reside uma das especificidades mais caras do arteterapeuta: sua contratransferência aparece quando este projeta seu próprio universo simbólico no processo criativo e nas formas produzidas por seu paciente – sejam elas materializadas ou não, figurativas ou abstratas... Enfim, é essencial que o arteterapeuta esteja de posse da sua relação pessoal com seus símbolos recorrentes, seus gestos, traços e cores, os materiais e linguagens que lhe acessam ou provocam resistência, para assim evitar que seu universo simbólico arteterapêutico seja projetado nas imagens, processos, materialidades, temáticas, e consignas trabalhadas com seus pacientes. 

É importante destacar que o arteterapeuta lidando com conteúdos “não palavra”, o potencial projetivo se dá de forma mais sensível e ampliada. O antídoto para evitar a contratransferência imagética está na manutenção de um espaço e tempo separado para que o arteterapeuta permaneça em contato pessoal com as materialidades, seu processo criativo e produção de imagens pessoais. 

Compreendendo essa especificidade, desenvolvi um esquema que pode orientar o arteterapeuta para a sustentação do suporte que lhe é necessário para dar conta de sua dimensão ferida e retornar ao seu ofício de “curador”. O modelo orientado pela psicanálise para a sustentação de um bom analista, se dá em um tripé: terapia pessoal, supervisão e estudo teórico – individual e em grupo. Ao arteterapeuta é necessário acrescentar uma “quarta perna” e assim compreendemos o “quadripé” que nos sustenta: terapia pessoal, supervisão, estudo teórico e a experiência pessoal com seu processo criativo e tudo o que ele contém. 


Esquema de autoria de Eliana Moraes

Concluindo essa reflexão, tomamos as palavras de Von Franz sobre a “cura e a criação”, tão aplicável ao nosso ser arteterapeuta:

 

Um problema especial na profissão da análise é a criatividade. Sem sombra de dúvida, os melhores analistas são aqueles que, ao lado da profissão, estão envolvidos em alguma atividade criativa. Não é a toa que, nas sociedades primitivas, os curandeiros são também, de modo geral, os poetas, pintores e artistas do seu povo… Os elementos criativos e curativos são muito próximos…

 

É somente trabalhando continuamente em nossa tarefa criativa interior que podemos evitar essa deterioração. E não basta termos sentido uma única vez o chamado da vocação; o direito de praticarmos essa profissão precisa ser repetidamente conquistador dentro de nós. (VON FRANZ, 2021, 335-336)




Referências Bibliográficas: 

NATEL, Rejane Maria Gomes Leite. 2019

VON FRANZ, Marie-Louise. Psicoterapia. 2021

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"