segunda-feira, 5 de junho de 2023

O ARQUÉTIPO DO CURADOR FERIDO E O ARTETERAPEUTA



Por Eliana Moraes - MG 

naopalavra@gmail.com 

O ciclo de palestras mensais promovidos pelo Não Palavra em parceria com o Espaço Crisântemo tem em 2023 seu quarto ciclo, e assim nos consolidamos como um grupo de estudos aberto, que visa colaborar com a formação continuada do arteterapeuta. Nosso objetivo é estimular o desenvolvimento da escuta arteterapêutica e o pertencimento através do fortalecimento de uma rede de (hetero e auto) suporte. 

Em nossos estudos buscamos a articulação de diversas teorias com a Arteterapia, dentre elas a Psicologia Analítica. No mês de fevereiro nos aprofundamos no estudo sobre o arquétipo do curador ferido a partir dos livros “O curador ferido: mito e formação junguiana” (2019) de Rejane Maria Gomes Leite Natel, que baseou sua escrita no Capítulo “Vocação e Profissão” do livro “Psicoterapia” Marie-Louise von Franz (1990/2021). 

Desde 2020 temos utilizado a manifestação grega desse arquétipo, o mito de Quíron, como inspiração para o grupo arteterapêutico mantido pelo Não Palavra e Crisântemo, que promove encontros entre os arteterapeutas em suas feridas com aquilo que eles oferecem como “curadores”. Este estudo mostrou-se bastante instigante ao abrir nosso olhar para a amplitude e riqueza das manifestações desse arquétipo e o quanto ele espelha nosso caminho como terapeutas. 

O curador ferido como um arquétipo 

O curador ferido é um arquétipo que se constela em variadas tradições, culturas e se atualiza em diversas biografias. Nos dois livros que hoje nos embasam, é estabelecida a articulação entre esse arquétipo, o xamã e o analista junguiano.

 

O universo xamânico e sua representação na figura do xamã… apresenta sua correspondência no mito do curador ferido em várias mitologias. O mitologema central traz o homem ferido (meio homem - meio deus) que, ao curar-se, passa, por meio da sua dor e sofrimento, poder curar a dor da Humanidade. Assim, nesse universo mitológico, encontramos, na mitologia grega, sua representação e interpretação. Na mitologia grega (Asclepius e Quíron), como em outras, ele é aquele que, por sua dor e sofrimento, deu um sentido e significado às suas experiências, tendo acesso direto com as divindades desse Sistema mitológico. (NATEL, 2019,  p. 55)

 

Essa imagem arquetípica se expressa em várias culturas, desde Kyron ou Quiron, na antiga Grécia, até o orixá Obaluaê, na cultura nagô, na Nigéria, e nos candomblés e umbandas no Brasil. O mito deixa claro que a capacidade do curador está associada à ferida reconhecida e constantemente aberta de quem se disponibiliza a arte da cura. O saber-se ferido, conhecer a dor e entender seus mecanismos é o ponto fundamental que possibilita entender a dor e seus caminhos de maneira mais ampla e completa. Por outro lado, a ferida do curador é o que o mantém aberto ao outro; a ferida na pele deixa o contato mais autêntico. (MORAES, in NATEL, 2019,  p. 9) 

Neste contexto, o arquétipo do curador ferido também se manifesta na figura dos terapeutas, seres humanos que possuem suas feridas, marcas, traumas, sensibilidades, vulnerabilidades, mas que de posse dessa experiência é despertado e capacitado para uma empatia, compaixão e disponibilidade à colaborar com a “cura” do outro. Compreendemos então o mito do curador ferido como um dos regetes do caminho do terapeuta e a consciência dessa vocação faz parte de sua jornada de individuação:

 

Assim, as afirmações da autora [von Franz] vão, de forma circular, colocando-nos em contato com… a vocação para o ofício… como uma profissão, um ofício, ser escolhido e escolher, em suma, um processo. E são esses determinantes que orientam e definem nossos papéis e funções na sociedade em que estamos inseridos. As características inatas, a história de vida e, o lugar que ocupamos no mundo nos remete a vivermos mitos que, ao longo da vida, retratam o Ser completo que buscamos ser no nosso processo de individuação, o nosso Self.

 

Nossos temores e dores nos ajudam nessa escolha. É comum vermos adultos que na infância sofreram doenças graves e ao se curarem, transformaram-se em grandes médicos, grandes curadores. E assim, o mito do curador ferido, mantem-se vivo em nosso inconsciente pessoal e coletivo. E esse ofício vem carregado de uma carga afetiva, que só identificamos muitas vezes ao longo da vida. (NATEL, 2019,  p. 42-43) 

Para as autoras, a vocação do terapeuta está ligada a seu papel no mundo e a realização de sua jornada de individuação, mas “está relacionada com algo ainda mais profundo e essencial – a ligação com Deus ou com os deuses, ou seja, com as forças que se manifestam dentro da psique.” (VON FRANZ, 2021, p 326-327). Assim, encontrar sua vocação está relacionado com algo de divino na experiência do terapeuta e o único caminho possível para esse encontro é descendo às profundezas do inconsciente:

 

A pessoa que não tenha tido acesso às profundezas do inconsciente, e visto ali “a natureza de todos os espíritos da doença”, dificilmente pode possuir empatia real e suficiente com relação ao grave sofrimento psíquico dos seus semelhantes. Ela só os tratará de acordo com as regras, sem jamais ser capaz de sentir empatia por eles, e este é frequentemente o fator chave para os pacientes.

 

[O terapeuta] sofre sua doença iniciatória não por causa de uma fraqueza, e sim a fim de se familiarizar com “todos os tipos de doenças”, para saber, a partir da sua experiência, o que significam a possessão, a depressão, a dissociação esquizóide, e assim por diante.

Tampouco seu desmembramento iniciatóio é esquizofrenia. De acordo com a descrição mitológica, trata-se de uma redução ao esqueleto. (VON FRANZ, 2021, 330-332) 

A partir desses trechos observamos a importância do terapeuta rever-se em sua história pessoal e trazer à consciência as experiências que o constroem como ser humano e no chamado para ser terapeuta, em especial os momentos em que foi “reduzido ao esqueleto” em sofrimento de suas dores e feridas. 

Tenho testemunhado a jornada de individuação de alguns terapeutas, na condição de sua terapeuta ou supervisora e não raras vezes ouço suas dúvidas sobre a condição de exercerem o ofício uma vez que sofrem de questões e dores tão profundas. Acolho esses questionamentos com muita empatia (afinal, em minha humanidade, também os experimento em alguns momentos difíceis a mim) e lembro à estes terapeutas as palavras de Von Franz que nomeia a experiência desses sintomas como “doenças iniciatórias” para que o terapeuta vivencie-se em sua humanidade e desenvolva, além de seu treinamento intelectual, o contato com o coração, o sentimento e o desenvolvimento da empatia, base estrutural de qualquer vínculo terapêutico.

 

Embora esse problema [a formação] diga principalmente respeito ao treinamento intelectual e ao conhecimento do futuro analista, não devemos nos esquecer do sentimento, ou seja do coração. Por mais inteligente que um analista insensível possa ser, nunca vi nenhuma pessoa desse tipo curar ninguém! E o “coração” não pode ser instilado. A pessoa que não o possui, na minha opinião, é a menos adequada para essa profissão. (VON FRANZ, 2021, p 325-326) 

Entretanto, para dar real suporte às feridas do curador:

 

Há uma necessidade de passarmos por uma análise profunda para obtermos conhecimento do nosso próprio mundo interior, e da aproximação necessária de vivências e encontros com o Si-mesmo, processo pelo qual ela [Von Franz] e Jung se submeteram…” (NATEL, 2019,  p. 21) 

Afinal,

Como analistas, nada poderemos fazer se nós mesmos não nos dispusermos a  passar por esse processo. (NATEL, 2019,  p. 21)

A recusa do terapeuta de vivenciar um processo terapêutico e de autoconhecimento profundo pode causar diversos danos em si e na relação com seus pacientes, como por exemplo a manifestação de aspectos sombrios do arquétipo do curador ferido. Um  potencial aspecto sombrio citado por Von Franz é o complexo de poder na relação terapêutica:

 

… o curador também tem uma sombra específica, ou seja, essa vocação também possui um contra-aspecto sombrio. Trata-se da figura do xamã ou curandeiro demoníaco. A forma mais superficial disso é o terapeuta que é governado por um complexo de poder. É evidente que nessa profissão, na qual o indivíduo é seu próprio senhor e amo, e na qual as outras pessoas frequentemente se agarram a ele de maneira ingênua e infantil, o abuso do poder representa enorme tentação. Por exemplo, o analista pode se ver tentado a assumir o papel de pai ou do sábio, aquele que sabe o que está certo. (VON FRANZ, 2021, 332) 

Além de sair de seu lugar e ocupar a figura paterna, também compõe o potencial sombrio do arquétipo, ser possuído pelo complexo materno:

 

Um problema difícil se apresenta pelos possíveis estagiários que são possuídos pelo arquétipo da cura. A imagem arquetípica do curador está relacionada com a do puer aeternus, o filho-deus criativo da Grande Mãe. Número considerável de jovens que têm um complexo materno e a tendência de se identificar com esse arquétipo. Eles costumam manifestar uma qualidade “maternal” com relação a todos que são indefesos ou sofredores, e frequentemente também têm um dom para o ensino...

 

Um trabalho árduo, portanto, aliado aos necessários esclarecimentos através da análise, com frequência tornam possível superar a inflação. É importante para essas pessoas compreender que é o inconsciente que, em última análise, causa e dirige o processo de cura, e que o analista é apenas aquele que ajuda e apoia o processo, e não seu autor. (VON FRANZ, 2021, 320) 

A palavra norteadora nos oferecida por Von Franz é inflação. Seja inflar-se pelo complexo de poder, paterno ou materno, de toda forma o aspecto sombrio que pode devorar o terapeuta que não se conhece, envolve sua inflação perante seu paciente. Para a autora, o grande antídoto para evitar esse fenômeno é um trabalho árduo em análise e a tomada de consciência de que o terapeuta não é autor do processo de “cura” do outro, mas sim o agente facilitador dos caminhos do inconsciente de cada sujeito. 

Em síntese, Natel defende que:

 

… para exercermos nossa função de psicoterapeutas (Junguianos) temos que mergulhar num processo de autoconhecimento e, assim, atingirmos um status, uma especialização, que nos permita estar a serviço do outro.

 

Ao nos depararmos com o nosso próprio sofrimento e dúvidas, vivenciando-os em nosso processo onírico, nossas fantasias e símbolos, é que poderemos nos identificar com o mito do curador ferido… (NATEL, 2019,  p. 26-27) 

Como método, a escuta analítica está voltada para o universo simbólico de cada paciente. Entretanto, para o seu bom manejo é essencial que o terapeuta tenha a consciência (possível) de seu próprio universo simbólico:

 

… ao submergirmos como analistas no universo simbólico de nossos pacientes, devemos ter obtido um conhecimento de nosso próprio universo simbólico para poder acompanhá-lo em sua cura e promover um contato com o inconsciente capaz de resgatá-lo em sua individualidade, emergido em seu cotidiano e em interação com o coletivo. A percepção de seu eu deve se dar por meio dos símbolos contidos no Si-mesmo e no coletivo, e para poder acompanhar esse processo o analista deve tê-lo feito em seu caminho pessoal, pois só dessa forma poderá ajudar a diferenciação que o paciente terá que fazer daquilo que é dele e o que é do universo psíquico e espiritual que é imposto ao cliente em sua coletividade. (NATEL, 2019,  p. 17) 

Ou seja, o autoconhecimento do terapeuta envolve conhecer seu universo simbólico pessoal, para diferenciar-se do universo simbólico do paciente e colaborar que este diferencie seus símbolos pessoais da sua coletividade. Para exercer tal ofício, ao terapeuta:


É preciso entender e ressignificar símbolos contidos no inconsciente pessoal e coletivo. E, finalmente, remete-nos à questão da vocação, o chamado dos deuses… Aquilo que faz sentido em nossas vidas, nossa trajetória em direção ao Self. (NATEL, 2019,  p. 40) 

Da Psicologia Analítica à Arteterapia: o arteterapeuta e suas especificidades 

Uma das especificidades da Arteterapia está no método de “dar forma” às imagens do universo simbólico de cada paciente (entendendo este “dar forma” como algo material ou não) através da arte, da criação, das diversas materialidades e linguagens. É com o manejo do ato criativo e das imagens resultantes que um arteterapeuta exerce seu ofício específico.

Para tanto, entendemos que para o conhecimento do próprio universo simbólico, é essencial que o terapeuta mantenha ativa sua própria experiência com as materialidades, seu processo criativo e a formação de seus símbolos pessoais. O próprio Jung assim nos inspira:

 

… em Memórias, sonhos e reflexões, Jung (1975) descreve suas experiências no período entre 1912-1920, em contato com as imagens que o inconsciente lhe impunha em sonhos e visões. Ele relata o enfrentamento com o temor em relação a essas imagens, que lhe causaram dúvidas e inquietações quanto ao que seu arsenal teórico lhe oferecia, tornando-se a base para o trabalho do resto de sua vida…

 

… Ele chegou a temer por sua saúde mental e adotou o empirismo, a vivência como pssibilidade para montar sua teoria, e assim o fez durante o período em que mudou para sua casa à beira do lago, onde passou a viver essas imagens e sonhos…

 

… Nesse período… percebe que, para ele, tudo convergia para o centro; o processo de desenvolvimento era circular, mandalas apareciam em seus sonhos e visões, sendo que ele próprio vive a experiência de criá-las e pesquisá-las. E nesse movimento circular, ele percebe as transformações que sua psique sofrera.  (NATEL, 2019,  p. 19-20) 

E aqui reside uma das especificidades mais caras do arteterapeuta: sua contratransferência aparece quando este projeta seu próprio universo simbólico no processo criativo e nas formas produzidas por seu paciente – sejam elas materializadas ou não, figurativas ou abstratas... Enfim, é essencial que o arteterapeuta esteja de posse da sua relação pessoal com seus símbolos recorrentes, seus gestos, traços e cores, os materiais e linguagens que lhe acessam ou provocam resistência, para assim evitar que seu universo simbólico arteterapêutico seja projetado nas imagens, processos, materialidades, temáticas, e consignas trabalhadas com seus pacientes. 

É importante destacar que o arteterapeuta lidando com conteúdos “não palavra”, o potencial projetivo se dá de forma mais sensível e ampliada. O antídoto para evitar a contratransferência imagética está na manutenção de um espaço e tempo separado para que o arteterapeuta permaneça em contato pessoal com as materialidades, seu processo criativo e produção de imagens pessoais. 

Compreendendo essa especificidade, desenvolvi um esquema que pode orientar o arteterapeuta para a sustentação do suporte que lhe é necessário para dar conta de sua dimensão ferida e retornar ao seu ofício de “curador”. O modelo orientado pela psicanálise para a sustentação de um bom analista, se dá em um tripé: terapia pessoal, supervisão e estudo teórico – individual e em grupo. Ao arteterapeuta é necessário acrescentar uma “quarta perna” e assim compreendemos o “quadripé” que nos sustenta: terapia pessoal, supervisão, estudo teórico e a experiência pessoal com seu processo criativo e tudo o que ele contém. 


Esquema de autoria de Eliana Moraes

Concluindo essa reflexão, tomamos as palavras de Von Franz sobre a “cura e a criação”, tão aplicável ao nosso ser arteterapeuta:

 

Um problema especial na profissão da análise é a criatividade. Sem sombra de dúvida, os melhores analistas são aqueles que, ao lado da profissão, estão envolvidos em alguma atividade criativa. Não é a toa que, nas sociedades primitivas, os curandeiros são também, de modo geral, os poetas, pintores e artistas do seu povo… Os elementos criativos e curativos são muito próximos…

 

É somente trabalhando continuamente em nossa tarefa criativa interior que podemos evitar essa deterioração. E não basta termos sentido uma única vez o chamado da vocação; o direito de praticarmos essa profissão precisa ser repetidamente conquistador dentro de nós. (VON FRANZ, 2021, 335-336)




Referências Bibliográficas: 

NATEL, Rejane Maria Gomes Leite. 2019

VON FRANZ, Marie-Louise. Psicoterapia. 2021

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

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