segunda-feira, 12 de junho de 2023

A ARTETERAPIA E A IMPORTÂNCIA DO PROCESSO

 


Por Eliana Moraes – MG

Desde que iniciei meus atendimentos em Arteterapia em 2009, um dos fenômenos que mais me chamaram a atenção está em tudo aquilo que acontece durante o processo de criação do paciente/cliente. Meus primeiros textos escritos para o blog e compilados no livro “Pensando a Arteterapia Volume 1” são registros dessas reflexões advindas das práticas e atendimentos clínicos, que gosto de chamar de “o chão da vida do arteterapeuta”.

Minha formação em Arteterapia baseou-se amplamente na Psicologia Analítica de Jung, teoria que em muito nos instrumentaliza para a escuta e manejo quanto às produções simbólicas dos pacientes/clientes. Entretanto, a consciência de que estas são resultados de um processo criativo, abriu um vasto campo de observação, escuta e consequentemente, estudo para minha construção profissional.

Um primeiro embasamento teórico que muito me orientou foram os escritos de Fayga Ostrower em seu clássico livro “Criatividade e Processos de Criação”. Há alguns anos mantenho um grupo de estudos que tem essa literatura como orientadora, e estudamos tantas ramificações possíveis, originadas no processo criativo dentro de um setting arteterapêutico, ou seja, o fenômeno da criação orientado para o autoconhecimento e movimentos ressignificadores de um paciente/cliente.

Fayga é uma teórica da Arte. Nossa leitura de seu livro tem como objetivo beber da fonte dessa teoria para aplicar na prática arteterapêutica propriamente dita. Esse estudo já resultou na produção de textos e palestras, além de um esquema que nos espelha que a Arteterapia possui “duas pernas” para caminhar: o processo e a imagem; E que a partir dessas duas bases, surgem as teorias da Arteterapia propriamente dita. A partir dessa compreensão, é necessário que o arteterapeuta amplie seu olhar para a multiplicidade de embasamentos teóricos que lhe sustenta para seu caminhar com as “duas pernas” e o seu protagonismo como arteterapeuta em suas especificidades.

 


Uma referência bibliográfica em Arteterapia sobre o processo

No seguimento do estudo da importância do processo na Arteterapia, encontrei-me com o livro “O caminho do imaginário” de Alexandra Duchastel. Tenho lido este livro também em companhia de Vera de Freitas, minha parceira de estudos e atualmente na produção de conteúdos sobre o ateliê arteterapêutico. Em nosso último evento online utilizamos a primeira parte do livro de Duchastel como embasamento teórico. Hoje trago para esse texto um fragmento de nossas reflexões, mas já indicando sua leitura integral aos amigos do Não Palavra.

O “Caminho do imaginário” é um método criado pela arteterapeuta canadense Alexandra Duchastel, registrado em seu livro de mesmo nome. Refere-se à “... uma abordagem multidisciplinar em arte-terapia, centrada sobre o processo...” (DUCHASTEL, 2010, 9). Ou seja, um manejo arteterapêutico “onde o processo criativo é também importante, se não mais, que a obra final...” (DUCHASTEL, 2010, 7).

Partindo desse princípio, é interessante abrir essa reflexão com a noção de criatividade da autora:

A criatividade é essa força misteriosa que gera transformações incessantes de cada uma de nossas células. É um dom universal que não tem nada a ver com o talento artístico e que nos permite apreender a realidade diferentemente, reorganizá-la de uma maneira que serve melhor à vida. Naturalmente, a criatividade pode se expressar em todos os setores da vida: no trabalho, em nossas relações pessoais, na cozinha, no jardim ou mesmo em um laboratório. Mas a expressão artística constitui o meio mais direto de reatar com essa extraordinária capacidade de transformar as coisas, pois nela, tudo é possível. (DUCHASTEL, 2010, 11-12)

Aqui reside uma articulação entre as palavras de Duchastel e as de Fayga Ostrower: “Criar e viver se interligam.” Assim compreendemos que a criatividade não está associada diretamente apenas às atividades artísticas, mas pensar criativamente é um modo de ser e funcionar em todos os setores da vida. Como arteterapeutas, compreendemos que parte de nossa função é promover um (re)encontro entre os experienciadores da Arteterapia e essa “capacidade de transformar as coisas” para que estes retornem às suas vidas encontrando soluções criativas para ela.

Mas em seu método, Duchastel nos mostra um caminho específico para esse (re)encontro: a abertura para o processo e o prazer de caminhar sobre ele, sem o imperativo de já se ter algo construído em mente. Nas primeiras páginas de seu livro, ela faz um compartilhamento pessoal:

... eu me divertia simplesmente com as linhas, as formas, as cores...

Eu lembro de que o objetivo desse exercício não era a estética; eu queria, antes, encontrar o simples prazer de brincar...

Acabava de compreender que o essencial da experiência artística não se encontra necessariamente no produto final, mas na maneira pela qual nos submetemos às forças das linhas, das formas e das cores.

Essa experiência continua a ser uma inspiração cada vez que a crítica de arte interior em mim julga desfavoravelmente meu trabalho e tenta, assim frear meu élan de expressão. Essa lembrança detém um convite a reencontrar o prazer de criar, de estar no momento presente, totalmente autêntico, fiel a mim mesma. (DUCHASTEL, 2010, 18-20)

Quando leio as palavras de Duchastel, ouço um eco do meu próprio processo criativo. Quando estou diante de uma materialidade, muitas vezes sinto a propensão à um bloqueio caso meu ponto te partida se dê em uma imagem pré concebida mentalmente. “A crítica de arte” dentro de mim prontamente se manifesta, trazendo dúvidas sobre minha capacidade de traduzir o que eu sinto na imagem pensada. Encontrar o caminho das linhas, formas e cores espontâneas também foi para mim a descoberta de um prazer criativo altamente desbloqueador para mim. E uma vez em movimento, é possível que emerja um símbolo figurativo espontâneo, advindo diretamente do inconsciente, como diz a própria Duchastel: “Para minha grande surpresa a imagem arquetípica de um velho homem triste, mas sábio, apareceu...”

Um outro ponto abordado por Duchastel que espelha em muito o início de minhas observações nas práticas arteterapêuticas é o limite da palavra para a expressão da angústia do paciente/cliente. No livro “Pensando a Arteterapia Volume 1”, os primeiros textos compilados se referem à quando o falar pela palavra está interditado – eventos que se atualizam em muitos casos clínicos meus e de meus supervisionandos. Há momentos em que o paciente/cliente descreve grande angústia mas, por estar tão inconsciente de si, não consegue associá-la à alguma causa raiz. Em momentos de uma dor exacerbada – como por exemplo a dor do luto pela perda de um ente querido – não é possível falar dela através da palavra por causar a sensação de “colocar o dedo na ferida”. Ou ainda, em casos de expressões racionais, teóricas, um discurso viciado no campo já conhecido. Esses são apenas alguns exemplos de quando a palavra está associada à uma resistência e a Arteterapia se mostra como um caminho de desbloqueio expressivo:

Contrariamente às abordagens  psicoterapêuticas tradicionais, onde se relata principalmente eventos dolorosos ou traumatizantes decorridos no passado, a arte-terapia implica uma experiência imediata, que é vivida aqui e agora. Voltando ao instante presente, evita-se uma armadilha frequentemente vista em terapia: o aprisionamento do cliente em seu mito pessoal. A pessoa conhece e conta sua história pessoal como se tratasse de um cenário imutável, e com frequência, estéril. (DUCHASTEL, 2010, p 32)

A ampliação da linguagem para outras expressões “não palavra” se mostra um caminho tão potente quanto eficaz para a construção de um “novo vocabulário”:

A utilização de diferentes meios de expressão... permite um contato direto com a sabedoria inconsciente e estimula a emergência de emoções bloqueadas. O terapeuta ajuda o cliente a observar seus modos de funcionamento e ultrapassá-los, introduzindo uma nova experiência. Essa experiência imediata no plano da relação terapêutica, oferece a possibilidade de ser surpreendido pelo poder das imagens e descobrir novas facetas de sua personalidade. Assim, aumentamos seu “vocabulário” de reações a diferentes situações da vida. (DUCHASTEL, 2010, 32)

As palavras de Duchastel me lembraram uma citação de Angela Philippini que é uma das minhas bússolas orientadoras como arteterapeuta:

A experiência criativa  nos “transpassa” e permite que “trans-bordemos” e atravessamos limites e interdições,  resgatando “notícias de nós mesmos”, nem sempre claras e acessíveis no meio dos inúmeros ruídos e dispersões da vida cotidiana...“ (PHILIPPINI, 137)

Em movimento contrário ao pensamento e expressão verbal paralisados no pouco que o sujeito acessa em sua consciência adoecida, a Arteterapia age resgatando “notícias de nós mesmos”, lampejos de saúde esquecidos no campo do inconsciente. E Duchastel segue seu texto nos lembrando que o processo criativo carrega em si um potencial de transformação da matéria física em reflexo das transformações interiores:

A matéria que se transformou sobre minhas mãos era o eco de uma transformação muito mais profunda em meu interior. Encontrei soluções inovadoras para problemas que anteriormente me pareciam sem solução. Tudo parecia desbloquear minha vida. Eu me pus a recuperar o tempo perdido... A partir desse momento, soube que tinha o poder de transformar minha vida. (DUCHASTEL, 2010, 20)

Longe de esgotar as ricas reflexões provocadas por este livro, hoje encerramos essa primeira reflexão com a consciência arteterapêutica que “Através dos meios artísticos, a pessoa exprime o que ela não saberia revelar de outra forma.” (DUCHASTEL, 2010, 32) E que “Para se revelar, a alma precisa desse contato contemplativo com a imagem, o gesto, o ritual. (DUCHASTEL, 2010,33) Ou seja, com a imagem, mas antes dela, o processo.

Em um próximo texto daremos seguimento à reflexão sobre o “Caminho do Imaginário”.

 

 

Referências Bibliográficas:

DUCHASTEL, Alexandra. O caminho do imaginário.

OSTROWER, FAYGA. Criatividade e Processos de Criação.

PHILIPPINI, Angela. “Linguagens e materiais expressivos”

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