segunda-feira, 18 de março de 2024

A RELAÇÃO ARTETERAPEUTA-MATERIAL

 

Por Eliana Moraes

naopalavra@gmail.com

@naopalavra

 

Compreendemos que, dentre as modalidades terapêuticas, a Arteterapia possui uma especificidade: a entrada do terceiro elemento, o material e tudo o que ele envolve. Assim, na dinâmica do setting arteterapêutico forma-se uma tríade: paciente-arteterapeuta-material.




 

Parte essencial do nosso estudo se dá na observação do fenômeno que se constela entre paciente e material. Entretanto, a via da relação entre o material e o arteterapeuta também se dá como um eixo estruturante desse profissional. Considerando que o arteterapeuta pretende se colocar como facilitador do processo criativo de outros experienciadores, sabemos da importância de que ele conheça e seja capaz de manejar bem as múltiplas materialidades possíveis, para que possa oferecer cada uma delas com conhecimento técnico bem como de instrumentalizar os experienciadores com muita ou pouca experiência criativa. Entretanto, como a Arteterapia se constitui como uma formação que recebe pessoas com diversas formações anteriores, muitas vezes a vivência do próprio processo criativo e a construção de intimidade com os materiais são, muitas vezes, construídas a partir do curso. E assim, deve seguir em desenvolvimento enquanto o profissional se pretender atuar na área.

 

Essa é uma temática que venho ecoando e escrevendo, para que possa permanentemente lembrar ao arteterapeuta de sua importância. Esse é um tema que por vezes parece óbvio, mas justamente não raras vezes, o óbvio sai do nosso campo de visão e ele se perde. E quanto ao tema mencionado, observo no meu cotidiano como supervisora de estudantes e arteterapeutas formados o quanto a experiência pessoal com a materialidade, com a criatividade e com as imagens produzidas fazem falta no cotidiano do arteterapeuta.

 

Para corroborar com essa pesquisa, hoje contemplaremos as palavras de Angela Philippini em seu livro “Cartografias da coragem”, mais especificamente o capítulo “O arteterapeuta: acompanhante especial”.

 

Segundo a autora:

 

Favorecer a expressão e expansão das atividades criativas de cada cliente através do convívio terapêutico será facilitado também pela construção e ampliação das próprias vivências criativas do arteterapeuta. (PHILIPPINI, 2013, 25)

 

Contudo, esse se mostra um desafio desde o início da formação:

 

Esta é, certamente, um das primeiras dificuldades no trabalho de formação de novos arteterapeutas pois muitos chegam ao processo com pouca ou nenhuma intimidade com a arte e suas manifestações. E se uma das tarefas do arteterapeuta é resgatar as possibilidades criativas de seus clientes, mantendo um convívio terapêutico diário com o processo criativo, é fundamental que possa construir e ampliar suas próprias vivências criativas. (PHILIPPINI, 2013, 23-24)

 

Formar-se em Arteterapia é mais do que um aprendizado. A verdadeira formação se inicia com a experiência do “fenômeno” proporcionado pela vivência arteterapêutica. Todo arteterapeuta reconhece, por teoria e prática, que o fenômeno arteterapêutico deve acontecer primeiro em si. Somente através da experiência será possível associar o fenômeno com os embasamentos teóricos. Somente a partir da união desses recursos o arteterapeuta poderá fazer o bom convite para que outro experienciador se aventure ao desbravar de uma nova caminhada expressiva e terapêutica, oferecendo-lhe segurança para que encontre seus próprios recursos e caminho. Nas palavras de Philippini:

 

Para transformar-se em observador presente, ativo, empático companheiro nesta aventura do construir-se e transformar-se pela via das imagens, precisará o arteterapeuta do contínuo trabalho de auto desvelar-se expressivo do ateliê. Precisará do aprofundamento da pesquisa em sua linguagem plástica particular, a qual deve ser reciclada e renovada continuamente, para que assegure uma comunicação fluente através de estratégias expressivas diversas. Deste modo, estará efetivamente contribuindo para amenizar bloqueios no processo criativo de seus clientes e facilitando que estes possam encontrar e/ou construir suas próprias alternativas de reconhecimento e transformação através da sua produção imagética. A necessária contemplação advêm do contínuo estudo no modelo teórico escolhido para nortear sua prática terapêutica e do persistente trabalho de autoconhecimento em seu próprio processo terapêutico. (PHILIPPINI, 2013, 26)

 

É importante destacar que a autora descreve como imperativo à sustentação do arteterapeuta a terapia pessoal, e na mesma proporção da experiência pessoal com a arte:

 

[...] é inaceitável que um arteterapeuta, ou qualquer outro terapeuta, aventure-se ao trabalho terapêutico sem o essencial suporte de sua própria terapia, seja individual ou grupal.

 

Do mesmo modo, se não criar continuamente, não estará apto a desbloquear o processo criativo de ninguém e tão pouco poderá ser produtivo como terapeuta, se não estiver em contínuo processo de ver-se, rever-se, ouvir-se, e desvelar-se [...]  (PHILIPPINI, 2013, 26)

 

Compreendendo a Arteterapia como um procedimento terapêutico baseado na psicologia profunda e nos caminhos do inconsciente, constatamos ser estrutural que o arteterapeuta também se dedique a sua própria produção de imagens e diálogo com seu próprio universo simbólico para investir em sua estrutura pessoal  e diferenciar-se da produção simbólica de seu paciente, o que por vezes mostra-se desafiador:

Em contrapartida, o papel de acompanhante do processo arteterapêutico assegura o privilégio de ser estimulado por singulares processos de criação, ser instigado e sacudido por imagens fascinantes e surpreendentes, e também, eventualmente, ser confrontado por formas as quais poderão ser vividas como difíceis e ameaçadoras.

 

Acredito que estas são boas razões para que o arteterapeuta cuide de estar em bons termos com suas próprias imagens internas, o que poderá ser favorecido pela frequência regular a um ateliê ou oficina de criação onde possa pesquisar e desenvolver sua própria linguagem expressiva. (PHILIPPINI, 2013, 24)

 

Tenho defendido que é nesse ponto que se encontra o potencial de constratransferência específica do arteterapeuta. No texto “O arquétipo do curador ferido e o arteterapeuta” (2023) descrevo:

E aqui reside uma das especificidades mais caras do arteterapeuta: sua contratransferência aparece quando este projeta seu próprio universo simbólico no processo criativo e nas formas produzidas por seu paciente [...] Enfim, é essencial que o arteterapeuta esteja de posse da sua relação pessoal com seus símbolos recorrentes, seus gestos, traços e cores, os materiais e linguagens que lhe acessam ou provocam resistência, para assim evitar que seu universo simbólico arteterapêutico seja projetado nas imagens, processos, materialidades, temáticas, e consignas trabalhadas com seus pacientes. 

É importante destacar que o arteterapeuta lidando com conteúdos “não palavra”, o potencial projetivo se dá de forma mais sensível e ampliada. O antídoto para evitar a contratransferência imagética está na manutenção de um espaço e tempo separado para que o arteterapeuta permaneça em contato pessoal com as materialidades, seu processo criativo e produção de imagens pessoais. (MORAES, 2023)

 

Retomando o início de nossa reflexão, a Arteterapia como um procedimento terapêutico que se diferencia por basear-se na tríade paciente-terapeuta-material para fins clínicos, possui suas especificidades e singularidade. Faz-se importante que o arteterapeuta reconheça a unicidade dessa prática tão potente e não se deixe cair em sutis convites para a desconexão com sua essência. Philippini recorda que:

Allen (1992) aponta os riscos de síndrome da clinificação que pode acontecer aos arteterapeutas, comprometendo sua produção artística [...] arteterapeutas são terapeutas muito singulares, por utilizarem a arte como mediadora e suas atividades clínicas e seu bom desempenho depende fundamentalmente da manutenção e exercício constante de sua própria prática expressiva...

 

Assim, que os arteterapeutas apostem na diferença e não na tentativa improdutiva de semelhança a outras abordagens clínicas. A produtividade da Arteterapia reside basicamente na possibilidade de facilitar caminhos expressivos singulares para cada cliente e o fluir neste processo vem da prática, experimentação e estudo de modalidades expressivas diversas. Evitando cair na armadilha de ter que unificar a linguagem ou utilizar práticas homogeinizadoras, cabe zelar pelos territórios de criação, sejam internos ou externos. (PHILIPPINI, 2013, 24)

 

A Psicanálise, e por decorrência a Psicologia, orientam que a sustentação de um bom analista/psicoterapeuta deve ter como base um tripé: a terapia pessoal, a supervisão e o estudo teórico individual e grupal. Tendo em vista a especificidade da Arteterapia desenvolvida nesse texto, tenho escrito sobre a “quarta perna” que sustenta o arteterapeuta: a experiência pessoal com os materiais, o processo criativo e produção de imagens. Assim, construímos “o quadripé” que sustenta o arteterapeuta representado pelo esquema abaixo:

 


Esquema desenvolvido pela autora

Com a produção de textos sobre esse tema e outras especificidades da Arteterapia pretendemos cooperar para que o arteterapeuta se reconheça naquilo que nos diferencia de outras modalidades terapêuticas, que se sinta seguro em atuar com a técnica arteterapêutica, reconhecendo a grande potência contida na Arteterapia em si. Nosso desejo é que:

Assim, em Arteterapia, que se possa apostar naquilo que nos distingue como terapeutas, a promoção de saúde por meio da Arte e do exercício constante na prática expressiva. Para tanto, cabe evitar algumas armadilhas, cuidando de manter bem protegido e bem cuidado o próprio território de criação. E, sobretudo, aprendendo a criar mecanismos de livre expressão, fortalecendo a própria autonomia criativa.(PHILIPPINI, 2013, 25)

 ______________________________________________________________________________

Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

segunda-feira, 11 de março de 2024

A EXPERIÊNCIA DE LAR

 


Por Eliana Moraes

naopalavra@gmail.com

@naopalavra 

Temos vivenciado no grupo Quíron reflexões sobre nossos caminho de vida, sobre a condição humana de ser um peregrino. Muitas vezes, nossas reflexões são aquecidas pelas palavras da querida Beatriz Cardella, psicóloga, gestalt terapeuta e professora formadora de terapeutas, que tão precocemente nos deixou na última semana. Em espercial, Bia – como gostava de ser chamada – nos acompanha através do livro “De Volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica contemporânea”.

Pessoalmente, meu encontro com Beatriz e seu livro, aconteceu em 2020, tornando-se uma leitura estrutural para o processo de meu retorno à minha cidade natal, Belo Horionte, no ano seguinte. Não há dúvidas de que os escritos de Beatriz atravessam nossa vida profissional e deixam marcas em nossa vida pessoal.

 Contudo, é fundamental destacar que para Beatriz, a volta para “casa” não se refere necessariamente à moradia, mas antes, uma questão existencial:

 

Tratar da morada é fundamental, já que umas das principais problemáticas do mundo contemporâneo são os desenraizamentos nas suas diferentes formas...

Estamos todos, de certa forma, desalojados, esquecidos das raízes, da origem, desabrigados, impossibilitados de habitar e encontrar lugar entre os outros. De certa forma somos todos sem-teto existenciais. E sofremos. Precisamos voltar para casa e nos recordar que somos humanos. (CARDELLA, 2020, 28)  

Em seu livro Beatriz discorre sobre vários aspectos dessa angústia existencial atualizada na escuta clínica cotidiana. Em síntese a autora defende que:

 

Na clínica isto significa que o terapeuta precisará reconhecer asnecessidades fundamentais da dignidade humana que constintuem o ETHOS, como por exemplo: a hospitalidade, o pertencimento, o reconhecimento, a singularidade, a criatividade, a responsabilidade, a transcendência, entre outras…

Essas formas de sofrimento se caracterizam como Desenraizamentos, a perda das raízes na condição humana. (CARDELLA, 2020, 52-53) 

Para Beatriz, somos todos peregrinos, caminhantes, vivendo experiências e passagens que geram sofrimentos, aprendizados e resiliência. Porém, é possível que essa jornada seja aquecida por uma específica “experiência de casa”: aquela que um setting terapêutico, que comporta uma relação terapêutica, pode gerar:

 

Ao longo de trinta anos de trabalho como psicoterapeuta percebi que a casa é uma das metáforas fundamentais para tratar o trabalho clínico e da relação terapêutica, lugar de hospitalidade, ternura e cuidado... (CARDELLA, 2020, 27)

 

Nessa perspectiva, o trabalho terapêutico só pode acontecer se a relação se configurar morada, lugar, onde a pessoa que busca ajuda possa encontrar o terapeuta-anfitrião, o outro-raiz, que a acolha em sua humanidade, recordando-a de si mesma. (CARDELLA, 2020, 29) 

Esse ponto de assossego, em meio à caminhada peregrina, proporciona refrigério, nutrição, enraizamento, estrutura, mas não direcionada para o fim do caminho. Segundo a autora, é a “experiência de lar” que possibilita a diferenciação entre o ser peregrino e o perambulante, perdido e desorientado: 

Acolhemos a pessoa para que ela possa partir, para que ao invés de viver perambulando possa de fato, caminhar, realizando a obra de ser si mesma mirando o horizonte de seus valores fundamentais. (CARDELLA, 2020, 29) 

Com Beatriz Cardella aprendemos sobre a profunda importância de nos oferecermos uma “experiência de lar”, seja ela qual for, mas que para nós faça sentido, pois:

 

Paradoxalmente, essa é a única possibilidade de resgatarmos nossa condição peregrina, caminhante, e mirarmos o horizonte da existência a partir da singularidade que nos caracteriza, tornando a vida uma criação, a possibilidade de habitar poeticamente o mundo. (CARDELLA, 28) 


O paradoxo da "experiência de lar" para a vivência de uma condição peregrina foi lindamente traduzido por uma das participantes do Grupo Quíron que, generosamente, permitiu que sua imagem ilustrasse nossa caminhada. Nela, uma casa apoiada em um skate em movimento, orientada pela palavra "vida" que dentro de sua composição, encontramos a palavra "ida". 




A casa como símbolo 

Corroborando com as reflexões de Beatriz Cardella e orientada pelos seus escritos, na clínica arteterapêutica por vezes emerge o símbolo da casa como reflexão. Pude perceber que através desse símbolo podemos delinear algumas camadas como: 



Casa-eu

Casa-corpo

Casa-psíquica

Casa-alma

Casa-moradia

Casa-trabalho

Casa-religiosidade

Casa-espaço geográfico

Casa-cultura

Casa-relações

Casa-pertencimento... 

Para aquecer a reflexão e dar forma aos conteúdos subjetivos do paciente, tenho utilizado o origami de casa, bidimensional ou tridimensional – a depender do perfil do experienciador. Com essa proposta observamos o que Fayga Ostrower descreve como a matéria objetivando a linguagem, e dessa forma possibilitando que o criador dialogue frente a frente com sua “experiência de lar”, em qual camada lhe convidar à reflexão naquele momento. 



Para encerrar esse texto, devolvo à Beatriz Cardella a poesia que dedicou à memória de Fritz Perls em seu livro “De volta para casa”. Hoje, colocamo-nos todos, respeitosamente, no lugar de discípulos, bendizemos Beatriz e tudo o que ela nos ensinou.

 

A discípula

 

Bendita a espécie extinta,

A que voltou ao repouso em sua origem

E não peregrina mais,

Benditos todos que no cativeiro

Por ânsia de eternidade multiplicam-se,

Bendito o modo como tudo é feito.

Ancestrais, luxuoso nome

Para quem apenas errou antes de nós!

Benditos,

Bendita hora da tarde

Em que uma serva repousa

Descansada de dor e consolo.

 

Adélia Prado – Oráculos de Maio

 

Referência Bibliográfica: 

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos “De Volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica contemporânea”. 2020

 _______________________________________________________________________________

Sobre a autora: Eliana Moraes




Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

ARTETERAPIA COMO ESTRATÉGIA DE AUTOCUIDADO DE TERAPEUTAS DE CRIANÇAS TEAs

 

Por Tania Moreira, RJ/Fortaleza/CE

caminhartes@hotmail.com

 

“O cuidado de si é a memória

do cuidado de um outro.”

 

Beatriz Cardella

 

            Janeiro é o mês escolhido para refletir, debater e conscientizar a sociedade sobre a saúde mental. Por definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde mental pode ser considerada um estado de bem-estar vivido pelo indivíduo, que possibilita o desenvolvimento de suas habilidades pessoais para responder aos desafios da vida e contribuir com a comunidade. O bem-estar de uma pessoa está intrinsecamente ligado a uma série de condições fundamentais, que vão muito além do aspecto exclusivamente psicológico. Além dos aspectos individuais, a saúde mental é também socialmente determinada. Por isso, deve-se considerar que a saúde mental resulta da interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais, ou seja, tem aspectos e características biopsicossociais.

Condições graves em saúde mental já são consideradas as doenças do século XXI. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), dentre elas, a depressão assume lugar de destaque, podendo ser considerada até 2030, o transtorno mental mais comum. Estima-se que em todo mundo há mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, que sofrem com este transtorno, sendo que as mulheres são mais afetadas do que os homens. O fato é que sem saúde mental não se tem saúde de verdade.

Em 2019, quase um bilhão de pessoas – incluindo 14% dos adolescentes do mundo – viviam com algum transtorno mental. O suicídio foi responsável por mais de uma em cada 100 mortes e 58% dos suicídios ocorreram antes dos 50 anos de idade. Os transtornos mentais são a principal causa de incapacidade, causando um em cada seis anos vividos com incapacidade. Pessoas com condições graves de saúde mental morrem em média 10 a 20 anos mais cedo do que a população em geral, principalmente devido a doenças físicas evitáveis. (Organização Pan Americana de Saúde, junho 2022)

           Diante de números tão expressivos, podemos pensar que os profissionais da saúde não estão isentos destas estatísticas. Pelo contrário, pois não é novidade que também estes profissionais são submetidos a situações-limites diariamente no exercício de seu ofício, seja por lidar com o sofrimento humano, pelas condições de trabalho inapropriadas, seja por questões de baixa remuneração, carga horária excessiva e até falta de reconhecimento social.

 

Neste quadro geral, faremos um recorte para os profissionais da saúde, denominados terapeutas e, dentre estes, especificamente, os inúmeros terapeutas que atendem crianças no espectro do transtorno autista. É um público bem específico, porém que não difere dos demais, pois o trabalho com crianças TEAs pode ser muito desafiador, desgastante, com potencial elevado de ocasionar frustração e estresse prolongado diante da rotina, das demandas dos próprios atendimentos e da família da criança.

 

Buscou-se referencial teórico sobre este tema nas bases de dados disponíveis, mas não foram encontradas fontes relevantes para enriquecer essa discussão. Tal lacuna não apenas chama a atenção, mas também motiva e pode direcionar o aprofundamento nesse tema crucial, especialmente em um momento em que as pesquisas sobre o autismo estão em constante avanço e bastante aquecidas, sendo possível observar inúmeros congressos multidisciplinares por todo país, proporcionando espaços valiosos para discussão e aprimoramento deste complexo e multifacetado aspecto da saúde mental, cada vez mais presente na sociedade.

 

           É comum falarmos sobre o autocuidado para famílias de pessoas TEAs, para os cuidadores mais próximos, muitas vezes as mães, estimulando-as que busquem atentar para seus sentimentos e emoções, pois é fácil perceber os sinais de sobrecarga, estresse e em muitos casos, depressão, pelas situações cotidianas muito demandantes e cansativas. A rotina de cuidados, consultas, terapias e inúmeras renúncias as quais são submetidas realmente podem acarretar prejuízos significativos à saúde mental destas famílias.

 

Concomitantemente, este mesmo autocuidado precisa ser despertado nos terapeutas que atuam junto às famílias diariamente nesta jornada em busca de maior bem-estar para estas crianças. Contudo, nem sempre os terapeutas conseguem abrir espaço em suas agendas para si mesmos, e por isso, vão procrastinando os importantes momentos de autocuidado e, não poucas vezes, negligenciando a própria saúde, quando não se dão conta ou subestimam os  sintomas recorrentes (dores de cabeça constantes, insônia ou sonolência, tensão muscular, cansaço extremo, ansiedade, irritabilidade, apatia, alterações de humor, baixa interação social, dificuldade em concentrar-se, falhas de memória, etc.),  que podem apontar para a síndrome de Burnout ou síndrome do esgotamento profissional, que inclusive já consta no CID 11 sob código QD85.

 

Neste ponto é pertinente a reflexão do filósofo contemporâneo, Byung-Chul Han, em seu livro, Sociedade do Cansaço:

A sociedade de desempenho é uma sociedade de     auto-exploração. O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente (burnout). Ele desenvolve nesse processo uma autoagressividade. A coação por desempenho impede que eles venham à fala. É mais simples lançar mão de antidepressivos que voltam a restabelecer o sujeito funcional e capaz de desempenho [manter-se funcionando, da mesma maneira].  (p.99,101)

Com um alerta mais poético, Cardella (2023), chama atenção para importância do autocuidado que todo terapeuta precisa dispensar a si mesmo:

[...] Acostumado a cuidar e a concentrar-se nas feridas e sofrimentos do outro, na solidão de sua consciência tende a experimentar certo desamparo ao defrontar-se com suas próprias necessidades de cuidado, desenvolvendo, muitas vezes, sofisticadas formas defensivas para proteger-se do próprio sofrimento.  O terapeuta precisa caminhar do cuidado que oferece, ao cuidado que ele é, ou seja, apropriar-se do cuidado, torná-lo próprio.  [...] Um terapeuta necessita ao longo da sua vida, como qualquer pessoa, encontrar em suas relações, o cuidado ansiado, para de fato, ser capaz de auto cuidar-se; O cuidado de si é a memória presentificada do cuidado de um outro.  O paradoxo é que, uma pessoa é capaz de cuidar do outro sem cuidar de si. (p.18,19)

            Cardella (2023), acrescenta um elemento ainda mais relevante, “a capacidade de desenvolver e experimentar a alternância de cuidados, como qualquer ser humano”, sendo tal habilidade um dos “aspectos fundamentais do processo de crescimento do terapeuta, qual seja, o reconhecimento e a aceitação de seus limites e necessidades, transcendendo, por vezes, vergonhas, culpas, constrangimentos, desamparos, medos experimentados em sua biografia e relações significativas [...]” (p.20)

 

ATINGINDOS POR UMA CERTA ONDA: RELATO DE EXPERIÊNCIA

  


        
Fui presenteada com uma vivência online pelas arteterapeutas Cláudia Abe e Rita Maria (Kairós Ateliê Terapêutico) sobre a “A Grande Onda de Kanagawa”, do artista japonês Katsushika Hokusai e nasceu o desejo de ofertar a mesma vivência, à equipe de terapeutas da instituição onde atuava. Meu objetivo era oferecer-lhes um espaço, um tempo de descompressão, de autocuidado, de reflexão e, sobretudo, a oportunidade de serem expostos à Arteterapia, mas como simples participantes. A única exigência era que eles deveriam renunciar o uniforme de terapeutas e se permitirem vivenciar aquele momento. Para maioria, este convite foi como chegar a um oásis, pois especialmente naquele momento, os tempos estavam áridos e desafiadores. A maioria da equipe estava exaurida física e emocionalmente por conta de demandas extenuantes, prolongadas e repetitivas: muitos atendimentos, redução do quadro de profissionais, muitas pessoas de licença médica, enfim, era “dor e a delícia de ser um vocacionado para cuidar” (Cardella, 2023, p.33) que estava pesando sobre os ombros de cada um. Era necessário um tempo para nutrir-se, recompor-se, restaurar-se, renovar-se, reunir as forças para continuar inteiro.  

            Foi disponibilizado um dia e um local apropriado para a vivência com a equipe. Após a apresentação, observação da obra impressa e relato da biografia de Hokusai, o grupo recebeu material necessário para sua produção: folhas sulfite, riscadores diversos, lápis de cor variados, cola, tesoura e outros materiais foram expostos para gerar um clima de encontro e encantamento. O grupo foi convidado a se acomodar da melhor maneira possível para um momento de relaxamento e respiração, um contato mais próximo de seus movimentos internos. Optamos por músicas orientais como fundo, no intuito de favorecer este contato consigo mesmo.

            A consigna dada naquele momento foi que o grupo poderia construir suas ondas de maneira intencional, respondendo a seguinte pergunta: Que tipo de onda você está precisando em sua vida hoje? Diante deles, foram dispostos diversos materiais, com a sugestão que cada um poderia escolher livremente o que desejasse usar. Assim, as ondas poderiam ser desenhadas ou já cortadas e no verso de cada uma, deveria ser colocado a palavra ou sentimento em resposta à pergunta feita. A primeira palavra que viesse à mente. 

Um outro convite foi feito para que o grupo, após este primeiro momento, contemplasse as suas ondas e sentisse qual a cor que cada onda estava pedindo (ou não) e quem desejasse, poderia colorir suas ondas. Sugerimos a confecção de apenas três ondas para que houvesse mais tempo de compartilhamento. Após, cada um poderia prender com clips, fita durex ou simplesmente colar suas ondas no papel A3, dobrado, de forma que um fundo, um horizonte pudesse ser visto. Ali também os participantes poderiam fazer o acabamento de seu trabalho, como um quadro, usando o material que desejassem.  Foi sugerido que assinassem o trabalho, datasse e depois, em outra folha, um realizassem um breve registro por escrito do processo de construir estas ondas.  

Foi mencionada a importância do registro por escrito daquele momento, as emoções identificadas, os pensamentos que  os atravessaram,  a escolha de cada material para enfeitar suas ondas, enfim, tudo era importante ser anotado e cada um também foi incentivado a deixar sua produção (as suas ondas) em um lugar visível, para que pudesse ser contemplada e a energia investida naquele momento da criação, os desejos e intenções com que cada onda foi criada pudesse assumir o seu lugar no coração de cada um. 

            Para o fechamento da vivência, foi feito convite ao compartilhamento, porém apenas aos que desejassem fazê-lo, respeitando o desejo e espaço de cada um.  Nem todos quiseram falar com palavras sobre sua produção. Alguns, apenas apresentaram sua obra. Outros, tomados pela emoção, conseguiram agradecer por aquele tempo de investimento e cuidado que a Arteterapia estava proporcionando ao grupo.


                
       

Alguns depoimentos:

- AG  - “A experiência de libertar a criatividade na construção da onda, articular isso com a minha vida foi um processo de autorreflexão. Ao recortar o papel e reaproveitar os pedaços, me fez pensar em quantas vezes faço o movimento de reaproveitar/ ressignificar inclusive os momentos da minha vida que são difíceis. As ondas me perpassaram e me fizeram sorrir ao ver o resultado final e reconhecer as cores do pôr do sol que utilizei inconscientemente e me trazem tanta paz. O pôr do sol que vejo no caminho de volta pra casa, após um dia de trabalho muitas vezes exaustivo.”

- BB – “Muito obrigada pela vivência. Foi maravilhosa! Creio que não foi só eu, mas todos que participaram sairam revigorados, rejuvenecidos. Estou aqui olhando minhas ondas e pensando como foi incrível.”

CONCLUSÃO

  A arte em si é terapêutica e mobilizadora sob inúmeros aspectos, entretanto quando o indivíduo se encontra em um estágio de esvaziamento e exaustão, a arte pode funcionar como uma boia, uma prancha para o resgate. 

Segundo Moraes (2019), “o convite para criar apresenta-se como um vetor de saúde para aqueles embotados, empobrecidos em seus investimentos e desejos…. amplia o olhar viciado e reduzido, desperta curiosidade, estimula a mente e amplia o repertório.” (p.102)

Nas palavras do poeta Rilke, “A Arte é… o amor mais amplo, mais desmedido. É o amor de Deus.” (p.144) 

A Arteterapia é semelhante a um portal e tem se apresentado como uma estratégia bastante interessante e potente para o autocuidado e prevenção de transtornos mentais tão presentes em nossos dias. E o arteterapeuta, como “portador da sensibilidade tão singular do artista, é como aquele que exerce a função de oferecer a arte e sustentar um território ‘sagrado’ para que ela aconteça” (Moraes, 2009), mantendo-se como um promotor de encontros verdadeiros e resgatadores para si mesmo e para todos os demais terapeutas que desejarem se beneficiar e se abrigar no espaço acolhedor e plural que se constitui a Arteterapia. 

Referências Bibliográficas:

- ARAÚJO, Carolina Guimarães – A Saúde Mental está doente! A Síndrome de Burnout em psicólogos que trabalham em Unidades Básicas de Saúde – Dissertação de Mestrado em Psicologia – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – São Paulo, 2008

-CARDELLA, Beatriz H P, O curador ferido e a clínica contemporânea – Ensaios de Gestalt-terapia, Amparo Gráfica Foca, 1ª. Edição, 2023

- CORDEIRO, RAZZOUK, LIMA, org. - Trabalho e saúde mental dos profissionais da saúde / Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2015.Petrópolis/RJ, 2017

- HAN, Byung-Chul, Sociedade do Cansaço, 2a edição ampliada, Editora Vozes, Petrópolis/RJ, 2017

- MORAES, Eliana - Pensando a Arteterapia, volume 2-1. edição - Semente Editorial, Divino de São Lourenço/ES, 2019

- THIBAUDIER, Viviane, Jung, médico da alma, Editora Paulus, São Paulo/SP, 2014

Sites acessados:

- Organização Pan Americana de Saúde https://www.paho.org/pt/topicos/depressao#:~:text=Em%20todo%20o%20mundo%2C%20estima,a%20carga%20global%20de%20doen%C3%A7as. (acessado em 22/01/2024)

- Ministério da Saúde https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-mental (acessado em 22.01.2024)

___________________________________________________________________

Sobre a Autora: Tania Moreira

 


Graduação em Fonoaudiologia, pós-graduação em psicopedagogia/UERJ.  Especialização em Arteterapia pela POMAR/RJ. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Grupos de Mulheres online (Grupo Rede). Atuou de 2021 a 2023 como Arteterapeuta na Clínica Conecta/IPREDE, compondo equipe multidisciplinar no atendimento de crianças no Transtorno do Espectro Autista.

Contatos: Instagram/Facebook:@caminhartes.arteterapia

Textos publicados no Blog:

ARTETERAPIA – DANDO VIDA E COR - RESSIGNIFICANDO HISTÓRIAS - 2016

PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇÃO - 2017

FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA MULHERES - 2017

DESENHANDO E PINTANDO COM A TESOURA COMO O VOVÔ MATISSE - 2018

O BORDADO COMO INSTRUMENTO DE ARRAIGAMENTO E CONDUTOR DE VIDA - 2018

LEONILSON – BORDANDO A VIDA, AS DORES E OS AMORES - 2018

 DOIS METROS ACIMA DO CHÃO” – AS BOAS NOVAS DE BISPO DO ROSÁRIO - 2019

ESTENDENDO A REDE – ABRINDO OS BRAÇOS PARA O NOVO - 2020

ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA – 2021

 

EXPERIENCIAR É BEBER DA PRÓPRIA FONTE – 2022

COMO UM RIO QUE FLUI: A ARTETERAPIA NO CONTEXTO DO AUTISMO - 2023

PRÁTICAS ARTETERAPÊUTICAS COM CRIANÇAS NO TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA - 2023