Figura 1 – Diálogo
Por Bruna Della - SP
@arteterapias.online
Existe quase que uma dança entre
arteterapeuta e cliente que, no início da nossa clínica, podemos não perceber.
Vou me explicar contando uma situação fictícia.
O Senhor Alfredo iniciou suas
sessões de arteterapia com o propósito de lidar com a perda da esposa. Os
filhos de Alfredo, que o encaminharam para a arteterapia, esperavam que ele
pudesse encontrar um espaço de acolhimento. Após poucos meses conhecendo o
Alfredo e algumas produções, a arteterapeuta Leandra começou a sentir-se
angustiada toda vez que o horário da sessão de Alfredo chegava. Alfredo parecia
não se engajar muito nas atividades, e Leandra ficava com receio do que falar,
do que perguntar e de qual a melhor materialidade ou atividade para o que o
Senhor Alfredo trazia.
Leandra começou a se sentir
angustiada: comprou cursos, participou de workshops, comprou livros e consumiu
diversos artigos sobre luto, terceira idade e outros temas. Mesmo assim, aquele
sentimento surgia. Era interessante, pois Leandra lidava com outros processos
de luto, e nenhum a fazia sentir-se assim. Ela começou a refletir sobre a
possibilidade de encaminhar o cliente, também sentia que ele não estava
interessado nas sessões. Antes de tomar qualquer atitude, levou o caso para a
supervisão e lá, sentindo-se à vontade, desabafou sobre o quanto se sentia
perdida e angustiada toda vez que ia atender o Senhor Alfredo.
Foi em uma situação parecida que
minha supervisora me questionou (usarei a situação fictícia como exemplo):
“Leandra, o quanto o Senhor
Alfredo não deve estar sentindo-se angustiado e perdido?”
(Choque.)
“Olhe para as produções
desinteressadas e inseguras do Senhor Alfredo, observe essas imagens e as
respostas que ele te dá. Uma pessoa que viveu a vida toda casado não vai se
sentir inseguro e desinteressado pela vida durante essa perda?”
(Outro choque.)
“A angústia que você sente não
é sua, é do cliente. Isso é a contratransferência.”
E foi mais ou menos assim que
percebi na prática do que se tratava a contratransferência.
Com a orientação da supervisora,
Leandra levou essas palavras e sensações para o cliente, que afirmou no mesmo
instante que era exatamente daquele jeito que ele se sentia: perdido, sem chão,
com medo e angustiado. O Senhor Alfredo falou que às vezes ficava até com raiva
e fingia para os filhos que não se importava, exatamente a postura que ele
adotava nas sessões. Após esse diálogo, as sessões de arteterapia tomaram outro
rumo. Leandra levou esse assunto também para a própria terapeuta e constatou
que ela também precisava olhar para algumas questões suas que estavam
emergindo.
Foi imersa nessa palavra que
passei a me interessar mais pelo tema e a observar mais as sensações com cada
cliente. Desse interesse e com esse olhar atento, comecei a ler livros, e eu e
uma colega até contratamos um ex-professor da pós-graduação para nos dar uma
aula específica sobre transferência e contratransferência na visão do Jung, da
qual fiz ainda mais conexão entre teoria e prática.
É esse entendimento que quero
compartilhar com vocês por aqui.
Vamos nos lembrar que nossos
conteúdos inconscientes são percebidos nos outros; o que está dentro se projeta
em algo que está fora. Ao acordarmos e vermos pela janela que o dia está
chuvoso, cada um de nós reagirá de uma forma específica: alguns animados,
outros com vontade de nem sair das cobertas, alguns melancólicos e até algumas
crianças, que estavam animadas para ir à praia, sentirão raiva por não poderem
sair de casa. Não dá para acreditarmos que a relação cliente-arteterapeuta
sairia impune, né? Para Jung, já na escolha do arteterapeuta, a projeção — que,
em relação ao processo terapêutico, chamamos de transferência, já começa a
ocorrer. Existe um motivo para o cliente encontrar o gancho em você e não em
outros diversos profissionais existentes mundo afora.
Segundo Jung (1875-1961, p. 10):
"Na relação
médico-paciente, há, no fundo, dois sistemas psíquicos que se
inter-relacionam."
Logo,
quando começamos a atender em nosso setting arteterapêutico, não estamos imunes
às transferências do cliente e tampouco a sermos tocados pelas demandas. O
inverso também é verdadeiro: o terapeuta não é nenhum ser superior e está
vivenciando o processo junto com o cliente. Daí a importância de estarmos em
nossas supervisões e, principalmente, também estarmos em terapia.
Quando iniciamos um processo
arteterapêutico com um cliente, os egos concordam, mas temos nossos lados
inconscientes que também estão em jogo. Em O encontro analítico, de Mario
Jacoby, ele nos apresenta um diagrama que nos mostra a complexidade dos encontros
terapêuticos.
Figura 2 – Fonte: Desenho criativo adaptado do modelo de Mario Jacoby (1984, p. 37).
Nesse mesmo livro, Jacoby diz
que, muitas vezes, o paciente se comporta e reage ao terapeuta da mesma forma
que reage a todas as pessoas com quem mantém um relacionamento próximo. Em meus
estudos com o professor, chegamos à conclusão que a transferência é algo que o
cliente projeta em cima do terapeuta (informação verbal¹).
Logo, a contratransferência é a
resposta emocional inconsciente e pode ter relação com a transferência do
cliente ou até ser questão do próprio terapeuta (informação verbal¹).
Segundo o livro de Jacoby,
existem alguns tipos de contratransferência, e perceber nossas emoções,
sensações e sentimentos diante de cada cliente pode nos ajudar a compreender
melhor os caminhos possíveis dentro das sessões, onde e quando cutucar algumas
coisas, onde e quando sustentar e onde e quando não sustentar.
Se não tivesse uma supervisora
atenta que me chamasse atenção para isso, talvez eu teria desistido do caso e
não teria crescido tanto como arteterapeuta. Não teria percebido que o processo
estava sim acontecendo, o Senhor Alfredo não teria sentido-se escutado e
Leandra continuaria frustrada.
Arteterapeutas, estarmos atentos
a essa dança é também estarmos atentos ao não-palavra, como o nome do blog diz.
É um exercício constante de recalcular rotas, de perceber o invisível e nos
transformarmos como pessoas e como arteterapeutas.
“O encontro de duas
personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no
caso de se dar uma reação, ambas se transformam” (Jung, 1875-1961, p. 68).
E por aí, como esses encontros
têm te transformado?
Referências Bibliográficas:
¹ Fala do professor Claudio Akira
Fujii no curso online de Transferência e Contratransferência em 02 de novembro
de 2024.
Figura 1 – Fonte: Bruna Della
Figura 2 – Fonte: Desenho
criativo adaptado do modelo de Mario Jacoby (1984, p. 37).
JUNG, C. G. A prática da
psicoterapia. 16ª ed. Vozes, 1961.
JACOBY, Mario. O encontro
analítico: transferência e relacionamento humano. 16ª ed. Vozes, 1984.
AATESP 799/0521
Formação: Arteterapia de Abordagem Junguiana - Universidade de São Caetano do Sul (2023), MBA em História da Arte - Universidade de São Caetano do Sul (2019), Licenciatura em Artes Cênicas - Faculdade Paulista de Artes (2018), Licenciatura em Letras - Inglês (2024) e Pedagogia (2025) - Centro Institucional de Cursos Educacionais e Profissionalizantes, Tecnólogo em Marketing - Faculdade Descomplica. (2023).
Área de atuação: Arteterapeuta de
Abordagem Junguiana com foco em acompanhamento individual e em grupo online e
vivências presenciais em São Paulo e ABC Paulista. Atualmente vem focando nos
atendimentos de mulheres, em especial jovens adultas e profissionais da
educação e artistas de todas as idades.
A importância de estarmos atentos ao invisível que mora em nós e no outro. Texto maravilhoso!
ResponderExcluirParabéns pelo texto honesto, sincero, pertinente e corajoso. Sair deste lugar de "suposto saber" e compreender o que nos pertence e ao outro é um ato de coragem e crescimento. Compartilhar nossas dúvidas e ter um supervisor atento, companheiro de jornada é como ter um chão firme para pisar e impulso para continuar caminhando. Caminhe com arte e coragem. Belo texto. Tania Moreira
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