segunda-feira, 9 de junho de 2025

CONTRATRANSFERÊNCIA: UMA DANÇA ENTRE ARTETERAPEUTA E CLIENTE QUE MERECE ATENÇÃO

 

Figura 1 – Diálogo

Por Bruna Della - SP

@arteterapias.online


Existe quase que uma dança entre arteterapeuta e cliente que, no início da nossa clínica, podemos não perceber. Vou me explicar contando uma situação fictícia.

O Senhor Alfredo iniciou suas sessões de arteterapia com o propósito de lidar com a perda da esposa. Os filhos de Alfredo, que o encaminharam para a arteterapia, esperavam que ele pudesse encontrar um espaço de acolhimento. Após poucos meses conhecendo o Alfredo e algumas produções, a arteterapeuta Leandra começou a sentir-se angustiada toda vez que o horário da sessão de Alfredo chegava. Alfredo parecia não se engajar muito nas atividades, e Leandra ficava com receio do que falar, do que perguntar e de qual a melhor materialidade ou atividade para o que o Senhor Alfredo trazia.

Leandra começou a se sentir angustiada: comprou cursos, participou de workshops, comprou livros e consumiu diversos artigos sobre luto, terceira idade e outros temas. Mesmo assim, aquele sentimento surgia. Era interessante, pois Leandra lidava com outros processos de luto, e nenhum a fazia sentir-se assim. Ela começou a refletir sobre a possibilidade de encaminhar o cliente, também sentia que ele não estava interessado nas sessões. Antes de tomar qualquer atitude, levou o caso para a supervisão e lá, sentindo-se à vontade, desabafou sobre o quanto se sentia perdida e angustiada toda vez que ia atender o Senhor Alfredo.

Foi em uma situação parecida que minha supervisora me questionou (usarei a situação fictícia como exemplo):

“Leandra, o quanto o Senhor Alfredo não deve estar sentindo-se angustiado e perdido?”

(Choque.)

“Olhe para as produções desinteressadas e inseguras do Senhor Alfredo, observe essas imagens e as respostas que ele te dá. Uma pessoa que viveu a vida toda casado não vai se sentir inseguro e desinteressado pela vida durante essa perda?”

(Outro choque.)

“A angústia que você sente não é sua, é do cliente. Isso é a contratransferência.”

E foi mais ou menos assim que percebi na prática do que se tratava a contratransferência.

Com a orientação da supervisora, Leandra levou essas palavras e sensações para o cliente, que afirmou no mesmo instante que era exatamente daquele jeito que ele se sentia: perdido, sem chão, com medo e angustiado. O Senhor Alfredo falou que às vezes ficava até com raiva e fingia para os filhos que não se importava, exatamente a postura que ele adotava nas sessões. Após esse diálogo, as sessões de arteterapia tomaram outro rumo. Leandra levou esse assunto também para a própria terapeuta e constatou que ela também precisava olhar para algumas questões suas que estavam emergindo.

Foi imersa nessa palavra que passei a me interessar mais pelo tema e a observar mais as sensações com cada cliente. Desse interesse e com esse olhar atento, comecei a ler livros, e eu e uma colega até contratamos um ex-professor da pós-graduação para nos dar uma aula específica sobre transferência e contratransferência na visão do Jung, da qual fiz ainda mais conexão entre teoria e prática.

É esse entendimento que quero compartilhar com vocês por aqui.

Vamos nos lembrar que nossos conteúdos inconscientes são percebidos nos outros; o que está dentro se projeta em algo que está fora. Ao acordarmos e vermos pela janela que o dia está chuvoso, cada um de nós reagirá de uma forma específica: alguns animados, outros com vontade de nem sair das cobertas, alguns melancólicos e até algumas crianças, que estavam animadas para ir à praia, sentirão raiva por não poderem sair de casa. Não dá para acreditarmos que a relação cliente-arteterapeuta sairia impune, né? Para Jung, já na escolha do arteterapeuta, a projeção — que, em relação ao processo terapêutico, chamamos de transferência, já começa a ocorrer. Existe um motivo para o cliente encontrar o gancho em você e não em outros diversos profissionais existentes mundo afora.

Segundo Jung (1875-1961, p. 10):

"Na relação médico-paciente, há, no fundo, dois sistemas psíquicos que se inter-relacionam."

                Logo, quando começamos a atender em nosso setting arteterapêutico, não estamos imunes às transferências do cliente e tampouco a sermos tocados pelas demandas. O inverso também é verdadeiro: o terapeuta não é nenhum ser superior e está vivenciando o processo junto com o cliente. Daí a importância de estarmos em nossas supervisões e, principalmente, também estarmos em terapia.

Quando iniciamos um processo arteterapêutico com um cliente, os egos concordam, mas temos nossos lados inconscientes que também estão em jogo. Em O encontro analítico, de Mario Jacoby, ele nos apresenta um diagrama que nos mostra a complexidade dos encontros terapêuticos.

 



Figura 2 – Fonte: Desenho criativo adaptado do modelo de Mario Jacoby (1984, p. 37).


Nesse mesmo livro, Jacoby diz que, muitas vezes, o paciente se comporta e reage ao terapeuta da mesma forma que reage a todas as pessoas com quem mantém um relacionamento próximo. Em meus estudos com o professor, chegamos à conclusão que a transferência é algo que o cliente projeta em cima do terapeuta (informação verbal¹).

Logo, a contratransferência é a resposta emocional inconsciente e pode ter relação com a transferência do cliente ou até ser questão do próprio terapeuta (informação verbal¹).

Segundo o livro de Jacoby, existem alguns tipos de contratransferência, e perceber nossas emoções, sensações e sentimentos diante de cada cliente pode nos ajudar a compreender melhor os caminhos possíveis dentro das sessões, onde e quando cutucar algumas coisas, onde e quando sustentar e onde e quando não sustentar.

Se não tivesse uma supervisora atenta que me chamasse atenção para isso, talvez eu teria desistido do caso e não teria crescido tanto como arteterapeuta. Não teria percebido que o processo estava sim acontecendo, o Senhor Alfredo não teria sentido-se escutado e Leandra continuaria frustrada.

Arteterapeutas, estarmos atentos a essa dança é também estarmos atentos ao não-palavra, como o nome do blog diz. É um exercício constante de recalcular rotas, de perceber o invisível e nos transformarmos como pessoas e como arteterapeutas.



“O encontro de duas personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam” (Jung, 1875-1961, p. 68).

 

E por aí, como esses encontros têm te transformado?

 

Referências Bibliográficas:

¹ Fala do professor Claudio Akira Fujii no curso online de Transferência e Contratransferência em 02 de novembro de 2024.

Figura 1 – Fonte: Bruna Della

Figura 2 – Fonte: Desenho criativo adaptado do modelo de Mario Jacoby (1984, p. 37).

JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. 16ª ed. Vozes, 1961.

JACOBY, Mario. O encontro analítico: transferência e relacionamento humano. 16ª ed. Vozes, 1984.

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Sobre a autora? Bruna Della

AATESP 799/0521




Formação: Arteterapia de Abordagem Junguiana - Universidade de São Caetano do Sul (2023), MBA em História da Arte - Universidade de São Caetano do Sul (2019),  Licenciatura em Artes Cênicas - Faculdade Paulista de Artes (2018), Licenciatura em Letras - Inglês (2024) e Pedagogia (2025) - Centro Institucional de Cursos Educacionais e Profissionalizantes, Tecnólogo em Marketing - Faculdade Descomplica. (2023).

Área de atuação: Arteterapeuta de Abordagem Junguiana com foco em acompanhamento individual e em grupo online e vivências presenciais em São Paulo e ABC Paulista. Atualmente vem focando nos atendimentos de mulheres, em especial jovens adultas e profissionais da educação e artistas de todas as idades. 

2 comentários:

  1. A importância de estarmos atentos ao invisível que mora em nós e no outro. Texto maravilhoso!

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  2. Parabéns pelo texto honesto, sincero, pertinente e corajoso. Sair deste lugar de "suposto saber" e compreender o que nos pertence e ao outro é um ato de coragem e crescimento. Compartilhar nossas dúvidas e ter um supervisor atento, companheiro de jornada é como ter um chão firme para pisar e impulso para continuar caminhando. Caminhe com arte e coragem. Belo texto. Tania Moreira

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