Por Tania Salete – RJ, atualmente residindo em Fortaleza CE
taniasalete@gmail.com
“A criatividade exige a coragem de deixar as certezas de lado”
Erich Fromm
Sobreviventes há
cinco meses deste inusitado fenômeno denominado pandemia. O estilo de vida
acelerado, com agendas lotadas de compromissos, planos e projetos, excesso de
atividades; tudo foi paralisado diante desse inimigo invisível e avassalador. O
isolamento social, sem dúvida, tem sido a parte mais difícil de todo esse
processo e com consequências bem visíveis. Nem todas as pessoas deram
conta de olhar para seus espaços internos de maneira positiva: seja na
convivência familiar integral (ou ausência dela), seja consigo mesmo. É como
viver numa casa de espelhos o tempo todo, sem descanso, sem refúgios, sem
personas.
Foram inúmeros
os relatos de sentimento de perda, luto contínuo,
angústia, sentimento de esvaziamento, de aprisionamento, estresse, raiva, depressão,
medo da morte, do futuro, tristeza, desânimo, insegurança, ansiedade e até
dores no corpo (estes relatos fazem parte de uma pesquisa com 15 mulheres sobre
quais sintomas foram mais percebidos durante estes meses).
Apesar de parte da
vida ter migrado quase naturalmente para o virtual, como home office,
aulas virtuais, muitas lives e uma enorme oferta de várias atividades
online, essa transferência foi insuficiente para mitigar ou modificar os
sintomas reclamados por alguns, até pela dificuldade em lidar com a tecnologia
que exigiu modificações rápidas de comportamento e de consumo.
Diante deste cenário
de desconstrução da rotina, a Arteterapia despontou e sobressaiu como
ferramenta eficaz para estimular a criatividade, organização, flexibilidade, reestruturação
dos espaços internos e abertura para um novo jeito de olhar para vida.
Estendendo a rede
Depois de participar
de uma palestra com a Eliana Moraes, captei o devido estímulo para avançar em
algo ainda novo e, de certa forma, corajoso para o momento: um grupo para
mulheres online, com objetivo de ser suporte e apoio através de práticas
criativas com o viés da Arteterapia.
Pesquisei o público
alvo, as demandas e formatei teoricamente como funcionaria o grupo neste novo jeito
de atuar e para o universo da Internet que, como sabemos, carece bastante de
contornos. O desafio seria criar e proteger minimamente o têmenos como
lugar sagrado e sustentar este espaço com o devido
equilíbrio, sensibilidade e relevância nas propostas apresentadas, tendo
em vista que o público alvo era de pessoas leigas, ou seja, mulheres que nem
sabiam ao certo o que era Arteterapia.
Segundo Philippini.
a história de um
grupo constrói-se e configura-se a partir das vivências que seus participantes
possam compartilhar em determinado território e tanto quanto possível,
atividades realizadas, atendendo aos objetivos, com regularidade de horário e
tempo de duração previamente determinado. (p. 30)
Em seguida, precisava
de um nome que fizesse o link da proposta com a realidade do lugar onde estou
inserida (resido atualmente em Fortaleza, Ceará). E assim, nasceu a REDE –
Práticas Criativas em Arteterapia para mulheres. A rede tem um significado
muito interessante para o nordestino, pois configura um lugar de descanso, de
aconchego, segurança para recarga de energias físicas. É um utensílio que faz
parte do cotidiano, de maneira bem peculiar, pois dificilmente se restringe ao
espaço de uma varanda, por exemplo. Podem ser facilmente encontradas nas salas
e, sobretudo, nos quartos, substituindo tranquilamente as camas.
Relato de casos: Vem
pra Rede!
A proposta para este grupo online foi estruturada
em 12 encontros, divididos em três ciclos de 4, sendo um por semana, com
aproximadamente 1h30min de duração, ou seja, um grupo breve e fechado, com no
máximo seis pessoas. Depois do terceiro encontro, novas
interessadas ficam aguardando pelo próximo grupo a ser formado.
Outro item importante a ser
considerado está relacionado a escolha dos materiais que serão usados nas
propostas. Partimos do princípio que utilizaremos o que estiver disponível na
casa de cada uma, inclusive sucatas, alguns alimentos (temperos, farinha de mesa,
fubá, grãos), linhas, fitas, papeis de
presentes, caixas e embalagens.
Como diz
Nachmanovitch:
Mas a necessidade nos
obriga a improvisar com o material que temos à mão, a recorrer de uma
engenhosidade e uma inventividade que talvez não emergissem se pudéssemos
adquirir soluções prontas. (p. 81)
E haja inventividade
para lidar com as ferramentas da tecnologia e o mundo virtual, pois a
possibilidade de imprevistos ligados à instabilidade na conexão, ajustes que
são feitos na hora quanto ao uso das ferramentas acontecem, apesar dos testes
que antecedem os encontros. É um teste também para nosso equilíbrio emocional,
pois como salienta o mesmo autor: “Muitas vezes essas situações nos levam a
estruturar, focalizar e mobilizar nossos recursos interiores de maneira
surpreendente.” (p. 90)
Dentre as propostas
apresentadas, sublinho duas que foram marcantes e mobilizaram o grupo durante
alguns dias, promovendo descobertas, reflexões aprofundadas e excelentes
compartilhamentos.
1- Mandalas dos “Eus”
A proposta era uma
leitura da poesia de Fernando Pessoa: “Não sei quantas almas eu tenho”.
Depois, cada uma destacaria a parte do texto que lhe fosse mais chamativa e
seria feito um breve compartilhamento. Depois, de posse de um círculo
vincado em 8 partes (mandala), foram convidadas a pensar e registrar de quantos
“eus” (almas), quantas personas elas são compostas e para cada parte, uma cor
significativa. No encontro seguinte, demos seguimento à proposta
anterior, objetivando ampliar o processo, porém fazendo um link com a realidade
imposta pela Pandemia, que nos aponta para simplificação, para retirada dos
excessos na vida. Transportamos esse conceito para a atividade, na qual o
círculo foi dobrado apenas em 4 e o convite era escolher apenas 4
papéis, os “eus” que realmente eram essenciais na sua composição enquanto indivíduo,
sem os quais ficariam descaracterizadas. Para cada um destes papéis deveriam
designar: uma cor, um adjetivo, um animal e um objeto, respondendo às
perguntas: Se esse “eu” fosse uma cor, qual cor seria? Se fosse um objeto, qual
seria?
Algumas perguntas
para reflexão: Qual “eu” está mais dominante? Qual está mais enfraquecido ou
sombrio? Quem está em oposição a quem ou quem complementa o outro? Estas
perguntas geraram muitas descobertas para cada uma delas, compreensão de
processos antigos e comportamentos equivocados foram percebidos. As expressões
faciais demonstraram um misto de surpresa e encantamento, como um desvelar de
algo nunca antes percebido.
A afirmação de Fayga
Ostrower fez total sentido neste dia:
...criar representa
uma intensificação do viver, um vivenciar-se no fazer; é uma realidade nova que
adquire dimensões novas pelo fato de nos articularmos, em nós e perante nós
mesmos, em níveis de consciência mais elevados e mais complexos.(pg. 28)
2. Beleza na aspereza
Em outro encontro,
trouxemos a proposta de despertar a sensibilidade e a descoberta
de beleza e singeleza em tudo que vemos ao redor. Perceber os detalhes do
cotidiano. Naquele momento, algumas experienciavam situações bem difíceis, ásperas
e duras (tanto no âmbito familiar quanto profissional), além da cidade estar em
lockdown. Ao redor havia medo, insegurança e incerteza sobre o futuro
além de perdas traumáticas de parentes próximos.
Como estímulo
projetivo, usamos as esculturas do artista Marco Cochrane, em especial a “Truth
is Beauty”, feita para o festival Burning Man que acontece no Black Rock
Desert, em Nevada, EUA. É algo semelhante ao Rock in Rio, porém totalmente
voluntário, sustentável (cada um leva o que consome e não pode deixar rastros)
e reúne todo tipo de artistas e pessoas criativas do mundo, nas mais variadas
performances para um público de mais de 50 mil pessoas.
Foi importante uma
breve apresentação sobre as esculturas e conhecer o propósito do artista em
defesa das mulheres no mundo. As obras causam um impacto pela grandiosidade (são
feitas em aço, com mais de 17 metros de altura e pesam 5 toneladas) e ao mesmo
tempo uma expressão de delicadeza em meio a secura, escassez e dureza do
deserto. Então, o grupo foi convidado a trazer para aquele espaço a
imagem ou sentimento captado diante das obras e deveriam usar como suporte
lixas de madeira número 100 ou 120 e giz de cera (este material foi solicitado
com antecedência), podendo ser colorido ou monocromático.
Alguns relatos interessantes:
“Fiz na lixa 180 para madeira, um pouco fina. Desenhei uma pessoa ou uma menina, na beira de um grande abismo. Havia muito vento e uma tempestade de areia. Olho para baixo e vejo um abismo, mas não tenho medo.”
“Queria colorir, mas não estava saindo porque era muito áspero. Mas não desisti e consegui fazer um traço bem melhor, mais do que eu esperava. Gostei do coração, ficou bem colorido”.
“O que eu vi aqui neste trabalho é que a gente tem que aprender a lidar
com as asperezas de fora para dentro e aqui você tem que lidar com uma coisa
difícil, áspera e tirar o melhor dele. Gostei muito. Foi produtivo.”
“Foi uma grata surpresa participar desses encontros. Visitei lugares tão distantes e profundos dentro de mim, que eu mesma desconhecia que existissem. Foi um verdadeiro rebuliço nas memórias inconscientes, nos afetos adormecidos, nos sonhos procrastinados. Participar de cada encontro foi respirar ar puro apesar da atmosfera tóxica do medo, da incerteza, do enclausuramento que nos cercou neste tempo de isolamento social. Só posso agradecer a sua sensibilidade, persistência e amor em preparar tudo que nos foi oferecido ao longo desses 3 meses. Tenho certeza que quem se permitir ingressar nas próximas turmas, terá uma experiência ímpar!” F.S
Conclusão:
Mesmo diante do
estranhamento que este tempo nos causa, foi possível reafirmar, comprovar e se reencantar
com a potência transformadora da Arteterapia. A sensação de ser esticada para
alcançar pessoas que estavam vivendo um processo real de sofrimento e
necessitavam de um lugar seguro e acolhedor como uma REDE foi compensador. Foi
como reescrever o sentido de propósito da vida e da missão de Arteterapeuta.
Concluo
com as palavras de Nachmanovitch:
“Vivemos hoje, como
indivíduos um período de intensa transformação, muitas vezes desconcertante.
Podemos nos agarrar ao que está passando ou já passou, ou podemos nos manter
abertos e acessíveis - até mesmo entregues ao processo criativo, sem insistir
em conhecer de antemão o resultado final que nos advirá... Quem aceitar esse
desafio estará acalentando a liberdade, abraçando a vida e encontrando um
sentido para ela.” (p.170)
Tania Moreira Moreira
-Arteterapeuta
ASBART 0212/0520
Fortaleza/CE
BIBLIOGRAFIA:
NACHMANOVITCH, Stephen - Ser Criativo - o poder da improvisação na vida e na arte, 5a edição, Summus Editorial, SP, 1993
OSTROWER, Fayga - Criatividade e processos de criação - Editora Vozes, 30a Edição, Petrópolis, RJ, 2016
PHILIPPINI, Angela -
Grupos em Arteterapia = Redes criativas para colorir vidas, Wak Editora, 2011
Linguagens
e Materiais expressivos em Arteterapia:uso, indicações e propriedades, Rio de
Janeiro, Wak Editora, 2009
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Sobre a autora: Tania Salete
Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.
E a vida se renova nesta rede...! Parabéns pelo seu belo trabalho!😍🙏
ResponderExcluirE a vida se renova nesta rede...! Parabéns pelo seu belo trabalho!😍🙏
ResponderExcluirE a vida se renova nesta rede...! Parabéns pelo seu belo trabalho!😍🙏
ResponderExcluirMuito grata por ter participado da REDE, a estimulação criativa ajudou-me a viver meu autoconhecimento de maior mais rápida e leve.
ResponderExcluirOnde tem "maior", leia-se "maneira"
ExcluirTânia, lindo texto e incrível experiência! Obrigada por compartilhar. Amei as atividades e o nome do grupo. Parabéns pela iniciativa!!! Beijos.
ResponderExcluirObrigada. Temos vivido experiencias lindas e crescido juntas.
ExcluirMudou minha vida, pode soar um pouco exagerada, mas de fato em cada amanhecer eu me peegunto qual " alma" dará as ordens eheheheh
ResponderExcluirParabéns,Tania! Com certeza continuaremos a "acalentar a liberdade e a abraçar a vida",pois esta poética faz parte , tanto de seu trabalho, como de ótima Arteteapteuta e ser humano que és! Obrigada por este seu trabalho com o próximo !
ResponderExcluirObrigada, Luigina! Sua amizade e carinho tem sido um importante apoio neste tempo!
ExcluirParabéns pra vc! Incentivos na faltam nesse momento. Encontrar o Não Palavra foium presente. E seu relato chega em um momento muito importante pra mim. Estou desenhando online o que estava projetado o formato presencial. É preciso coragem! Vamos nos! Desejo chuva de flores em sua vida!!!!
ResponderExcluirMilena, que lindo! Muito grata pelas palavras! Que a coragem venha te visitar e que seus grupos surjam e que voce seja a rede que acolhe. Um abraço.
ExcluirTania,
ResponderExcluirque delícia ler mais um texto seu ! Adorei ler sobre a rede, as citações, a prática, como sempre nos inspirando, e principalmente os relatos. Deixou um gostinho de “quero mais” ! Parabéns !!!!
Um grande beijo, Claudia Abe
Gratidão, amiga, Claudia pelas palavras e pelo incentivo de sempre!
ExcluirTania, PARABÉNS! Experiência riquíssima, por meio da REDE você DESENREDOU essas mulheres, potencializando-as com o que elas têm de melhor: a essência de cada uma foi desvelada por meio da Arteterapia. Que venham muitos outros grupos!!! Que a REDE alimente com carinho e amor todas as mulheres que por ela passarem, dando o suporte necessário! Beijossss floridosss
ResponderExcluirLidia, gratidão por suas palavras!
ResponderExcluirTania...que lindo e inspirador seu texto. Tenho trabalhado com grupos e sei o quanto é desafiador ao mesmo tempo que fascina. Rede...o quão poético a escolha deste nome. Que esta rede envolva seu trabalho em luz. Parabéns!!!
ResponderExcluirMuito grata pelas palavras generosas e inspiradoras, Silvia!
ExcluirTania! Que texto lindo e cheio de significados!
ResponderExcluirA gente se sente inspirada em ler cada pedacinho desse texto!
A arte realmente resgata e falo isso de experiência própria!
Parabéns por essa iniciativa maravilhosa!
Obrigada, Denise! Que a Arte continue nos trazendo alivio e respostas em tempos tão estranhos.
ExcluirExperiência linda num período tão duro. Arteterapia sempre libertando os sentimentos. Parabéns Tânia por seu texto tão envolvente
ResponderExcluirTânia, lindo e inspirador seu trabalho. Senti vontade de participar da REDE junto com essas mulheres. Parabéns!!
ResponderExcluirQue texto...reflete exatamente o que estamos passando com o seu olhar sensível e experiente. Parabéns Tânia.
ResponderExcluirExperiência muito especial, Tânia!❤️
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