Por Tania Salete – RJ, atualmente
residindo em Fortaleza CE
taniasalete@gmail.com
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Introdução
Em diversas partes do país há um intenso
movimento de resgate desta tão antiga e prazerosa arte que é o bordado. Uma busca pelo seu encantamento
e suas possibilidades, com cada vez mais jovens se interessando, revisitando
diferentes técnicas com mais diversos intuitos, seja como atividade manual pura
e simples, seja como atividade econômica para gerar recursos em meio a beleza
dos pontos e linhas, seja pelo viés político e de denúncia contra abusos, como
as Apilleras, citadas no texto anterior (CLIQUE AQUI), ou ainda para dar visibilidade de
maneira criativa às suas ideologias tão marcantes em nossos dias. Entretanto,
em praticamente todas as áreas o pano de fundo é o desejo de expressar as
emoções, narrar as histórias, as dores, amores, alegrias, a vida. Enfim, é
também um vislumbre de uma das técnicas utilizadas no universo da Arteterapia.
Nosso convite hoje é conhecermos um artista
natural de Fortaleza, Ceará, cuja obra tornou-se referência de arte
contemporânea. Faremos um recorte na obra singular, no que diz respeito ao bordado como técnica
expressiva e que Leonilson soube utilizar com rara simplicidade e profundidade.
José
Leonilson Bezerra Dias nasceu em Fortaleza, em 1° de março de 1957. Quando
tinha 4 anos, a família mudou-se para São Paulo. Cursou Educação Artística na
FAAP, foi aluno de renomados artistas da época. Em 1981, viajou para
Madri e realizou sua primeira exposição individual na Galeria Casa do Brasil e
em seguida foi para diversos países da Europa. Retornou em 1982 e começou a
delinear sua carreira aqui, no Brasil dos anos 80, ainda no Regime Militar. Em
1985, o artista já havia alcançado reconhecimento público, tendo exposto seus
trabalhos nas Bienais de São Paulo e Paris.
Participou
do principal marco da tendência artística da época que foi a exposição “Como
vai você, Geração 80?”, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage
(RJ) ao lado de mais de cem artistas, como Leda Catunda, Sergio Romagnolo,
Beatriz Milhazes e Luiz Pizarro.
A
trajetória de Leonilson é permeada por trabalhos considerados autobiográficos,
com uma intimidade poética e verdadeira que toca e mexe com o imaginário e as
emoções do público. Ele era visto por alguns como uma espécie de mito,
anti-herói por suas ideias marcantes em relação ao mercado da arte: o artista
abominava o mundo das galerias: “...eu quero que meus trabalhos me
levem a mim, e não a uma conta bancária”.
Seus
textos, desenhos, pinturas e, sobretudo, os bordados eram uma maneira bem
peculiar de declarar ao mundo seus sentimentos mais profundos e controversos,
suas crises existenciais e relacionais, fazendo surgir uma obra permeada de
pequenas confissões, como em um diário - além disso, um diálogo do artista com
o espectador. Talvez, justamente por isso, a obra tenha esse toque de
atualidade com nossas redes sociais, pois é visível que Leonilson deixava se
expor, numa busca intensa pelo outro.
Outra
característica relevante encontrada em sua obra, são as variadas possibilidades
interpretativas, como um ponto de reflexão pessoal que o artista desejava
provocar em seu público.
Em entrevista, relatada no livro Truth,
Fiction, Leonilson responde:
“Acho que sempre há oportunidade de a pessoa parar e pensar um pouquinho
no que está escrito ali, e eu tenho a impressão de que, por mais sutil que
seja, sempre faz a pessoa refletir um pouco, porque isso também é uma característica
da arte; é um ponto de reflexão.”
Em suas
declarações, sejam pintadas, desenhadas, escritas ou bordadas, percebe-se um
indivíduo extremamente sensível, perspicaz e atento ao mundo que o rodeia e às
pessoas, com uma preocupação em relatar a verdade, “em dizer a verdade sobre si
mesmo”.
“De uns tempos para cá meus trabalhos ficaram mais maduros, ao mesmo
tempo que penso mais sobre minha sexualidade, a forma de me relacionar com as
pessoas, de encarar o mundo, de viver o dia a dia. Eu acho que o trabalho não
deixa de ser um diário...”
Leonilson, (Truth, Ficton), 1994
No final
da década de 1980, o trabalho de Leonilson, mais amadurecido avança para uma
cartografia própria que se fundirá com diálogos com o corpo, os órgãos e
sentimentos. O uso de várias técnicas demonstrava que o artista não se prendia
necessariamente a um estilo, preferindo a mistura destas linguagens. Costuma se
autodenominar como “andarilho”, “curioso” e suas peças como “objetos de
curiosidade”. Mas, para final desta década, tem início uma dinâmica diferenciada em seu trabalho com
inclusão de botões, pedrarias, costura e o bordado, imprimindo uma nova versão
poética de suas obras. Os bordados passaram a ser, junto com os desenhos, a sua
principal produção a partir de 1989, refletindo um retorno às tradições
familiares. Seu pai era comerciante do ramo de tecidos e sua mãe costurava e
bordava, junto com sua avó e irmãs. O bordado era uma atividade bastante
natural para Leonilson.
Em entrevista à crítica Lisette Lagnado,
provavelmente sua última entrevista, Leonilson menciona a influência do
trabalho do Bispo do Rosário e seu próprio prazer em costurar e bordar à mão:
“- Você costura à mão?”
- “É, porque o negócio da mão é o prazer de
dar o ponto, de errar, de cortar e de voltar de novo. Se você reparar, tem um
ponto para as letras... Um ponto grande e um ponto pequeno…”
“Quando
vi a exposição do Bispo no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo, fiquei fascinado. Não consigo
vê-lo como louco. Vejo o Bispo como uma pessoa normal, só que ele tinha uma
história com ele mesmo que as pessoas não conseguem entender direito.”
Quando a Arte se junta à terapia e
transcende
"Gigante com flores" 1992
Foi em 1991 que Leonilson descobriu ser
portador do vírus da AIDS, fato que desencadeou forte influência, mudança e
inflexão em suas produções, projetando questões relacionadas à sua nova
condição diante dos enfrentamentos que a doença lhe impôs.
Interessante, pois justamente nesse
período que a produção de Leonilson se intensificou, ficou mais encorpada,
profunda e ainda mais próxima das
pessoas. O tempo era importante, produzir era forma de resistência e arraigamento à vida. Devido às complicações, o
artista desenvolveu uma alergia a tintas, (lembrei-me de Matisse
1869-1954), impossibilitando-o de usá-las. Entretanto, versátil e inquieto como
era, o bordado já fazia parte de seu repertório há algum tempo, sendo apenas
uma legitimação da técnica como algo bem natural, usada até em seus últimos dias, pois segundo
relatos de sua irmã Anna Lenice, mesmo estando hospitalizado, bordava.
Leonilson
fez da arte seu principal recurso para lidar com a questão da AIDS. Voltou-se
para si mesmo, e sua produção refletiu seu enfrentamento da doença, na qual os
desenhos, bordados e palavras eram mínimos, como um relicário, mas com extrema
potência. Ele foi retirando do seu interior, obras tão impactantes, verdadeiras
e com tanta dignidade que emocionam e trazem reflexões sobre a vida, morte e o
legado para mundo.
São inúmeros trabalhos, mas alguns refletem
bem este tempo, como O Perigoso, instigando seu público a pensar sobre a
condição de portador de AIDS naquela época.
“Eu sou uma pessoa perigosa no mundo. Ninguém
pode me beijar. Eu não posso transar. Se eu me corto, ninguém pode cuidar dos
meus cortes, eu tenho que ir numa clínica. Tem gente perigosa porque tem uma
arma na mão. Eu tenho uma coisa dentro de mim que me torna perigoso. Não
preciso de arma”. (Leonilson)
Lizette
Lagnado, em entrevista com o artista, relata como Leonilson sentia-se
amparado pela sua arte e como era imperiosa a necessidade de expressar
seus sentimentos:
“Já
estive bem mal, mas não penso em suicídio. Fico pensando que em qualquer
situação do mundo, se você tem um pequeno suporte para fazer uma garatuja, vai
ter sempre alguém que vai olhar para aquilo e ver a importância que você deu.
(...) Acho que estou numa situação que não é muito fácil. Apesar de não estar
com medo... Administrar qualquer tipo de vida já é muito difícil... Fico muito
cansado. O trabalho me ajuda. Nele, coloco minha força. Ele não me deixa
esmaecer. Fico fazendo esses trabalhos como orações, da mesma maneira que os
hindus fazem bordados. É como uma religião que fornece os símbolos. Acreditando
neles, você pode chegar a algum lugar. Nas religiões primitivas, há um
repertório de objetos, você pode pintar o corpo, fazer performances, tudo se
liga a uma entidade superior. Meu trabalho é mais guiado por esse sentido do
que pelo valor estético. Isso não os impede de guardar uma sutileza.” (
Lagnado, L, pag 119)
Nas palavras de Leonilson há similaridades com as premissas do trabalho da
Arteterapia quando discorre sobre como percebia a arte:
“(...)
Da mesma forma não vejo razão para observar-se a arte com o conceito de feio ou
bonito. Arte não é conceitual, ela pode quando muito ser dita ‘prática’ ou na
boa forma, mas apenas nos casos específicos. Não existe arte feia ou bonita, pode
haver maior ou menor integração de forma, cores, relevo, partes ou contornos,
mas isso não implica em bonito ou feio, (...) toda arte é importante, ela é
documentação de um momento de círculo vital e de uma corrente humana; ela deve
ser livre expressão de um pensamento ou sentimento, sem pré-conceitos, padrões,
vergonhas, futilidades e censuras básicas ou cortantes; ela deve ser solta,
deve voar, pousar, atingir, coagir, educar, instruir e relaxar”.
(LEONILSON,
1978 – artigo de Renata Perim A Lopes, UFES)
Encerrando
um ciclo
"O traidor" 1991
Leonilson ilustrou entre março de 1991 e maio
de 1993 para coluna da jornalista Barbara Gancia na Folha de S. Paulo, em torno
de 102 desenhos que foram posteriormente agrupados no volume "Leonilson -
Use, É Lindo, Eu Garanto".
Faleceu em São Paulo, dia 28 de março de 1993
em decorrências de complicações da AIDS aos 36 anos, no auge de sua carreira
artística.
Em 2016, foi lançado o filme “A Paixão de
JL”, sobre a vida e a obra do artista com direção de Carlos Nader, seu amigo
pessoal, e que foi vencedor do prêmio de melhor longa-metragem. O
documentário está baseado em fitas cassetes que Leonilson gravou desde 1990,
narrando os últimos dois anos de sua vida.
Em 1994 a família e amigos criam o Projeto
Leonilson que objetiva reunir toda obra do artista, catalogando e preparando
para diversas exposições, perpetuando seu legado e para ser um centro de
referência de pesquisa.
Após 22 anos de árduo trabalho, o Projeto
Leonilson em parceria com a Fundação Edson Queiroz da Universidade de Fortaleza
(UNIFOR), lançaram em junho de 2017 o raisonné de José Leonilson.
O catálogo do artista tem três volumes, com 3.400 obras, 1.100 páginas, e
foi considerado o primeiro do gênero dedicado a um artista brasileiro
contemporâneo.
CONCLUSÃO
"Quem comprou a verdade" 1991
Concluo, me solidarizando com a experiencia
de José Castello, jornalista, escritor, mestre em comunicação pela UFRJ, diante
de um bordado do Leonilson, pois fui capturada da mesma forma e essa sensação
ainda permanece em mim. Creio que continuarei dialogando por muito tempo com
essas obras, exatamente como Leonilson propusera.
“O
diálogo sutil. A conexão invisível. Até que vem o susto. Creio, sempre
acreditei, que toda conexão com a arte se dá através de um susto. É no choque;
é em estado de choque que alguma coisa acontece. É do sobressalto que a arte
arranca sua força. Sempre acreditei nisso: ainda assim, vem o escorregão.
Foi
assim, mais uma vez. De repente, em uma das paredes da sala, deparo comigo
mesmo. Isso mesmo: ali estou eu, ali está meu rosto, bem à minha frente. Ele me
encara. Noto, então, que minha face lívida está enquadrada por uma moldura
discreta. No alto, no canto direito de minha testa, há uma palavra:
"José". Um nome bordado sobre o nada que, só a muito custo, a moldura
consegue conter. Custo a entender que estou diante de uma obra de Leonilson, um
bordado com linha preta sobre voil, protegido por uma fina cobertura de vidro.” https://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/leonilson-a-palavra-566742.html
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências
Bibliográficas:
GOIS,
Wilma F. - AFETOS DA OBRA DE LEONILSON:
ARTE E VIDA, MAPAS E ESCRITA -
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes –
UFC, 2015
PEDROSA, Adriano - Leonilson: truth, fiction, 1994,
Catalogo do Museu de Artes da Universidade Federal do Ceará
O POVO 80 anos – Artistas Plásticos Cearenses
– Exemplar exclusivo do Museu de Artes da UFC
- MESQUITA, Ivo – Leonilson: Use, é lindo, eu garanto.
1997, Editora Cosac Naify
Lagnado,
Lisette. "Entrevista com o artista: a dimensão da fala - In São tantas as
verdades, 79- 136. São Paulo, Brazil: DBA Artes Gráficas; Melhoramentos, 1998.
-
LEONILSON: A NATUREZA DO SENTIR - Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Artes.
-
Lopes, Renata Perim A – Leonilson – Bordado como expressão, 2015, Revista
Colartes
Midias
- https://www.youtube.com/watch?v=PGJgzI3YV1I (Debate sobre o filme "A Paixão de JL" | CINECLUBE UNIFOR)
- https://blogs.oglobo.globo.com/jose-castello/post/leonilson-a-palavra-566742.html______________________________________________________________________
Sobre a autora:
Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.
Gostei do texto! Me identifico com essa visão de que a estetica é uma característica secundária da arte, ja que incitar sentimento e reflexao é tão mais interessante!
ResponderExcluirHannah
Parabéns, Tania! Linda e importante pesquisa, pois assim, passamos a conhecer, também seu viés de pesquisadora, como também esse "grande pessoa" que foi e é o artista LEONILSON. Este trecho chamou-me a atenção: " É, porque o negócio da mão é o prazer de dar o ponto, de errar, de cortar e de voltar de novo. Se você reparar, tem um ponto para as letras... Um ponto grande e um ponto pequeno…” Sim, esta arte do "bordar" nos leva à reflexão e nos faz situar no mundo, pois entre - o "errar", o cortar, e o voltar " - nos pontos do bordado é uma forma de RESSIGNIFICAR, que está intrínseco na Arteterapia. Sim, tem um ponto que nos leva à frente, um pequeno, um grande ....que, para mim, significam as fases de intempéries que a vida nos proporciona , para que possamos crescer interiormente.
ExcluirParabéns, mais uma vez!
Bjs.
Lucia Palermo