segunda-feira, 18 de junho de 2018

FAZER ARTE É COISA SÉRIA




Por Valéria Diniz - RJ
valdiniz.td@gmail.com
Instagram @valeriadiniz50

Olhos grudados no tablet, dedinhos ágeis passam as fases de algum jogo, ouvidos atentos ao discurso preocupado dos pais. A escola encaminhou aos “doutores” entendidos de crianças. Laudos, papéis, receitas, avaliações são apresentados a mim. Espanto-me com a quantidade de papel que acompanha  a história de Viny, 8 anos de idade.
Não gosta da escola, tem dificuldades de aprendizado, não tem amigos porque é agressivo. Larga tudo que começa. O Inglês, o Judô, a Natação. Nem ao “play” ele vai.
Ouço, compreendo e pergunto:
- Quando é que ele brinca?
É nesse momento que sinto aqueles olhinhos desgrudarem do jogo e rapidamente me encontram.

Sempre que ouço expressões do tipo; “fulaninho é muito arteiro!” ou “essa criança só sabe fazer arte!” me surpreendo com o tom de desaprovação. É como se fosse algo proibido e feio.
Mas o que é “fazer arte”?

Arte, do latim “Ars”, significa técnica e/ou habilidade.
Fazer (transitivo direto) - Produzir através de determinada ação, realizar.

Logo:
Fazer arte - Produzir habilidades através da ação.

Fazendo arte, aprende-se do corpo, dos limites, ganha e desenvolve habilidades.
Fazendo arte, expressa-se emoções mesmo antes de saber falar.
Fazendo arte, conhece de si, dos outros e do meio.
Fazer arte é o meio disponível onde a criança encontra uma forma de entender esse mundo e esses adultos tão impossíveis, contraditórios e estranhos.

Criança não brinca apena para se divertir. Brinca para entender. Faz arte para desenvolver seu potencial e habilidades importantes e necessárias para a vida. E, que fique entendido, brincar e fazer arte é muito diferente de ficar preso por horas em alguma tela luminosa retangular.

- Então, vamos brincar Viny?
Ao nosso redor estão caixas de jogos, bonecos de todo os tipos, monstros, heróis, princesas, panelas. Pincéis, tintas, lápis coloridos.
Meu convite é recusado.
A tela luminosa se apresenta menos assustadora. Bloqueia o contato, impede que tenha novas experiências.
Permito que ele traga o tablet para o atendimento e que use como quiser.
Uma hora de encontro com alguém que me desdenha, menospreza e troca monossílabos.
Revejo as teorias e técnicas.
Faço contato com minha impotência e frustração. 
... 
- Hoje quero te propor um jogo.
Explico as regras, mostro, dou exemplos. Ganho nova recusa. E outra e mais algumas.
Olho para aquele menino com um mundo de possibilidades ao seu redor, mas que decide ficar preso em sua confortável missão de passar fases e ganhar bônus apenas mexendo os dedos.
Busco ajuda em minha curiosa criança interior que ainda se encanta diante de coloridas tintas.
Sento no chão e começo a pintar com os dedos. Surgem flores, borboletas, figuras abstratas.
Vamos ver quem faz coisas mais interessantes?  Se ele é rápido no jogo, sou potente com as tintas. Agora é guerra!!
- “Você está sujando a mão”.
- É bom!

E Viny foi fazendo sua arte, foi descobrindo.
Aprendeu que jogos (qualquer um que não seja uma tela, varetas, pega-pega, esconde-esconde, dentre inúmeras possibilidades) implicam em perder ou ganhar. Que tem dias e momentos de perdas e ganhos. Que regras precisam ser cumpridas. É gratificante ganhar, é frustrante perder. Mas, que bom mesmo é quando a “gente empata”!


Com cola, tesoura, recortes, escolhas e ajustes percebeu que limites servem para respeitar, a si e aos outros. Descobriu que podemos nos expressar através das cores. Que nem sempre conseguimos controlar, que borramos, que erramos. Que se ficar difícil é preciso tentar e tentar de novo. Mas que se “prestar atenção dá mais certinho”!

Com argila criou monstros e destruiu e recriou com novos poderes. E foi entendendo que os monstros podiam ser “até legais”.  Já não precisava mais agredir os colegas e podia fazer bons amigos. Nos desenhos foi sabendo de si. Que era um menino curioso, inteligente, criativo, bonito. Um “cara bom”!

Agora está em nova “fase”. Resolveu desmontar alguns objetos de sua casa. Relógios, carrinhos, liquidificador porque quer saber como “as coisas funcionam”. E sabendo das coisas vai entendendo desse mundo que se apresenta diante dele com imensas possibilidades para além de uma tela virtual.

Eu também sigo tentando entender de mim e do mundo através da minha própria arte. 

Então, vamos fazer arte?!

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Sobre a autora: Valéria Diniz




Psicóloga 
Gestalt terapeuta
Mestra em Saúde Mental

3 comentários:

  1. Adorei o texto e a experiência. Obrigada por compartilhar :)

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  2. Muito bom o texto. Vamos às artes e que elas venham conosco!

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  3. Gostei demais! Transportei-me para esse lugar incrível de contato com a criança bloqueada a minha frente e com a criança desejosa de descobrir a "mágica" das artes! Parabéns! Que a arte continue fluindo em nós, nos tratando e transbordando para alcançar outros!

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