Por
Eliana Moraes - (MG) RJ
naopalavra@gmail.com
Nos últimos tempos tenho
pensado e estimulado aos que estão à minha volta para que pensemos sobre o
arteterapeuta e sua função no social atual. Em um texto anterior denominado “Uma arte que nos salve da loucura destes
tempos, Dadaísmo e Arteterapia” (CLIQUE AQUI) relatei minhas articulações
pessoais sobre como o movimento dadaísta poderia dar embasamento para o ofício
do arteterapeuta.
Sincronicamente, há poucas
semanas decidi reler um livro que abriu as portas para uma nova fase da minha
vida profissional, em meados de 2013, quando efetivamente me encontrei na
Arteterapia: “Do espiritual na arte”
de Wassily Kandinsky. A releitura deste livro se deu pelo desejo de retomar os
estudos sobre o caminho para a abstração, tão característico do artista, e sua
teorização sobre as potências das cores e das formas. Estudo que me servirá
como embasamentos para as palestras deste semestre e textos que estão em fase
de gestação.
Entretanto, como é
interessante reler um livro, passado algum tempo de amadurecimento profissional
e pessoal! Meus olhos foram capturados pelos primeiros capítulos desta
riquíssima obra em que Kandinsky pensa sobre o lugar do artista e da arte, na
história e no coletivo.
Tenho me dedicado à
conscientização do arteterapeuta
como portador da sensibilidade tão
singular do artista, como aquele que capta, percebe, compreende, expressa e
traduz para as mais variadas linguagens da arte as questões mais profundamente
humanas, mas especialmente aquele que
exerce a função de oferecer a arte e sustentar um território “sagrado” para que
ela aconteça. Penso que a tomada de consciência sobre a profundidade,
responsabilidade e convocação que esta
função nos implica seja essencial para a construção de um arteterapeuta.
Sendo assim, naturalmente a
leitura e o estudo sobre o que grandes artistas teorizaram sobre este lugar no
social e para a história, instrumentaliza o arteterapeuta na construção de sua
identidade profissional. Hoje, a proposta é trazer alguns fragmentos das
articulações de kandinsky sobre este tema aos quais podemos acolher como “cartas aos jovens arteterapeutas” (dentre os quais me incluo) nos dias atuais.
Uma
mudança de rumo
“Toda obra de arte é filha de seu tempo e,
muitas vezes, mãe de nossos sentimentos. Cada época de uma civilização cria uma
arte que lhe é própria e que jamais se verá renascer.” KANDINSKY
Podemos pensar a história da
arte como a história da humanidade registrada pelo olhar tão sensível do
artista. Kandinsky foi um artista que registrou e participou de um caminho de
mudanças de perspectivas na história. Até então vigorava o Iluminismo, um
movimento cultural da elite europeia que procurou mobilizar o poder da razão a
fim de reformar a sociedade do conhecimento. Ao final do século XIX, observamos
o processo de queda destes ideais, em que a ênfase à razão deu lugar à ênfase
do romantismo na emoção. Assim:
“...
Kandinsky... Sábio da arte moderna, insere-se exatamente na linhagem de todos
os que... quiseram responder à angustia com a certeza... ele assistiu ao desmoronamento de todo um
sistema baseado na exatidão de nossa visão, na coincidência entre o valor e
a realidade: o mundo que nossos sentidos
nos desvendam, é um conjunto de fenômenos que têm poucas relações com a
realidade das coisas.” SERS in KANDINSKY
Em última análise, uma mudança
de perspectiva como esta possibilitou à Freud,
poucos anos mais tarde, postular uma outra instância no psiquismo humano
para além da consciência: o inconsciente, nosso objeto de busca como
arteterapeutas.
Rumo
à “necessidade interior”: um caminho para a abstração
“Quando a religião, a ciência e a moral
(esta última pela mão rude de Nietzsche) são abaladas, e quando os apoios
exteriores ameaçam ruir, o homem desvia seu olhar das contingências exteriores
e dirige-o para si mesmo.” KANDINSKY
Assim, Kandinsky propunha:
“...Uma
evolução da arte afastada das redundâncias do
materialismo para se tornar um instrumento com o qual se comunicam emoções
‘puras’ obtidas por meio do impacto sensorial e psíquico de formas e
cores.” VERSARI
Kandinsky recusava toda arte
que fosse tão somente decorativa, a “arte pela arte” que é filha de seu século
e permanece inteiramente no exterior. A arte deveria corresponder a uma “necessidade interior”. Neste
pensamento, deveria tornar-se abstrata, esta mudança de rumo exigia o
desaparecimento do objeto. Mas então, substituir o objeto pelo que?
“... a partir do instante em que...a
experiência íntima do artista e a força de emoção que a torna comunicável aos
outros transparece, a arte entra no caminho... do qual reencontrará o que
perdeu... O objeto de sua busca não é o objeto material concreto
a que o artista se prendia exclusivamente na época precedente... mas será o próprio conteúdo da arte, sua
essência, sua alma... Esse conteúdo, só a arte pode captá-lo, só ela pode
exprimi-lo claramente com os meios que lhe pertencem.”
KANDINSKY
Interessante ressaltar que o
livro “Do espiritual na arte” foi
concluído em 1910 e no mesmo ano kandinsky pinta seu primeiro quadro abstrato,
demonstrando a estreita ligação entre o investimento na teoria e em sua experiência.
As obras de kandinsky são expressões imagéticas de suas teorizações e
verdadeiros estudos sobre a relação entre as cores e as formas. (Eis aqui uma
verdadeira inspiração aos arteterapeutas que por um lado devem se alimentar das
teorias que lhes sustentam mas por outro lado nunca se perderem se suas próprias
experiências com a arte, a criatividade e o agir sobre os materiais
expressivos)
Penso que esta mudança de
perspectiva sobre a função da arte abre caminho para nossa prática como
arteterapeutas, quando a oferecemos como meio para que sujeitos (do cotidiano,
mas seres humanos com suas sensibilidades e necessidades) encontrem um caminho
rumo a sua “necessidade interior”. Por meio da arte podem se ver, se ouvir, se
apropriar de si, se retificar e retornar como autores de suas vidas.
Ao arteterapeuta cabe estar ao
lado deste sujeito em sua jornada rumo ao si mesmo, oferecer os materiais
expressivos que sejam mais facilitadores deste processo e a partir de sua escuta
instrumentalizada exercer sua vocação:
“Cada quadro encerra misteriosamente toda
uma vida, uma vida com seus sofrimentos, suas dúvidas, suas horas de entusiasmo
e de luz. Para o que tende essa vida? Para quem se volta a alma angustiada do
artista quando, também ela, participa de sua atividade criadora? O que ela quer
anunciar? ‘Projetar luz nas profundezas
do coração humano, eis a vocação do artista’, escreveu Schumann.” KANDISNKY
O
artista como um profeta:
Kandinsky defende que esta
mudança de rumo direcionada à “necessidade interior” atinge dimensões tão
profundas que alcança uma experiência espiritual ao qual ele descreve a partir
da metáfora de um triângulo. O artista, com sua sensibilidade e intuição tão
aguçada exerce uma função muito delicada, desafiadora, pesada e por vezes
solitária:
“Então sempre surge um homem, um de nós, em tudo nosso semelhante, mas que possui uma
força de ‘visão’ misteriosamente infundida nele. Ele vê o que será e o faz ver. Por vezes desejaria libertar-se
desse dom sublime, dessa pesada cruz sob a qual verga. Mas não pode. Apesar das
zombarias e do ódio, atrela-se à pesada carroça da humanidade, a fim de
soltá-la das pedras que a retêm e, com todas as suas forças, impele-a para a
frente.” KANDINSKY
“Um grande triângulo divididos em partes
desiguais, a menor e a mais aguda no ápice, representa... bem a vida
espiritual... Por vezes na ponta extrema, não há mais do que um homem sozinho. Sua visão iguala sua infinita tristeza. E os que estão mais perto
dele não o compreendem. Em sua indignação, tratam-no de impostor, de
semilouco...
Podem-se descobrir artistas em todas as
partes do triângulo. Aquele que, entre
eles, é capaz de olhar além dos limites da parte a que pertence é um profeta
para os que o cercam. Ele ajuda a
fazer avançar a carroça recalcitrante... Essa multidão tem fome – muitas
vezes sem que ela própria esteja consciente disso – o pão espiritual quem
convém às suas necessidades.” KANDINSKY
Penso que aqui está a
convocação que Kandinsky faz a nós, artistas e arteterapeutas atuantes no
século XXI. Através de nossa sensibilidade e intuição, temos a capacidade de
perceber a loucura dos nossos tempos, de ver além do estabelecido e através da
arte sermos agentes no social, contribuindo para o avanço da “pesada carroça da
humanidade.”
É digno de nota que kandinsky não
se furta de fazer menção à uma espécie de efeito colateral deste caminho para
uma experiência espiritual ao qual pode tomar o artista:
“Esse esquema da vida espiritual... [esconde]
todo um lado de sombra, uma grande face obscura, uma mancha morta. Com
demasiada frequência, esse pão converte-se no alimento de todos aqueles que se
mantém num plano mais elevado. Mas, para eles, pode vir a se tornar um veneno.
Uma pequena dose basta para agir sobre a alma... Absorvido, em dose elevada,
esse veneno arrasta a alma em sua queda brutal. Num de seus romances,
Stenkiewicz compara a vida espiritual à natação; aquele que não trabalha sem
descanso e não luta incessantemente está condenado a afundar. É então que o dom
natural do homem, o ‘talento’... pode tornar-se uma maldição para o artista que
o recebeu e também para todos aqueles que comerem desse pão envenenado.”
KANDINSKY
Penso que este fragmento serve
de alerta ao arteterapeuta para que esteja atento a si, sua biografia, suas
próprias “necessidades interiores” e que dê espaço a elas nos lugares oportunos:
a própria terapia e a supervisão. Estes são os espaços propícios para que o
arteterapeuta não se envenene, que permaneça nadando e não afunde. As
consequências para um terapeuta com a sensibilidade artística que não cuida de
si e se propõe a cuidar do outro são catastróficas para todos.
Concluo com kandinsky que
incentiva seu leitor à esta tão profunda mudança de rumo através da experiência
da arte:
“Quem quer que mergulhe nas
profundezas de sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer
essa pirâmide espiritual que chegará ao céu”. KANDINSKY
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências
Bibliográficas:
MORAES, Eliana. Uma arte que
nos salve da loucura destes tempos: Dadaísmo e Arteterapia
KANDINSKY, Wassily. Do
espiritual na Arte
VERSARI, Maria Helena. Grandes mestres: Kandinsky
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