Por
Eliana Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com
A
prática da Arteterapia pode ser bastante enriquecida quando acionamos como
estímulos projetivos as obras de grandes artistas nas mais variadas linguagens
da arte. Isso se dá porque o artista é:
“‘um homem
coletivo que exprime a alma inconsciente
e ativa da humanidade’. No mistério do ato criador, o artista mergulha até
as funduras imensas do inconsciente. Ele
dá forma e traduz na linguagem de seu tempo as intuições primordiais e assim,
fazendo, torna acessíveis a todos as fontes profundas da vida.” (SILVEIRA,
2007)
Sendo suas obras a forma traduzida pelo
artista de conteúdos da alma inconsciente e ativa da humanidade, estas imagens
possuem um grande potencial projetivo e na prática se mostram estímulos bastante
acessíveis aos que chegam para a clínica da Arteterapia, sobretudo aqueles que
chamo de “pacientes leigos”.
Neste pensamento tenho me dedicado à
pesquisa de artistas e suas expressões de conteúdos que fazem eco àquilo que
escuto em minha clínica. Este repertório me compõe como arteterapeuta, acionando-o
quando entendo que um artista possa servir como uma espécie de “interlocutor”,
aquecendo o diálogo do paciente consigo mesmo em seu processo de
autoconhecimento.
Tenho me dedicado também à produção de
conteúdos para o Não Palavra, em ambientes virtuais ou presenciais, que possam
colaborar e instrumentalizar arteterapeutas a explorarem este estilo de
trabalho.
O protagonista de hoje é Edward Hopper,
que me foi apresentado na escola de psicanálise que frequento e desde então tem
atravessado minhas reflexões.
Hopper: o pintor da solidão
Edward Hopper (EUA, 1882-1967), foi um
pintor, artista gráfico e ilustrador que ficou bastante conhecido por suas
misteriosas pinturas de representações realistas da solidão na
contemporaneidade. Em cenários rurais e urbanos, suas obras refletem sua visão
pessoal sobre a vida moderna americana, em meados do século XX. Hopper viveu os
tempos da Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão Americana de 1929 e a
Segunda Grande Guerra, e naturalmente este contexto histórico influenciou
grande parte de sua obra, que em geral mostra pessoas em cenários da vida
cotidiana.
“... Hopper
traçou insistentemente em sua pintura a solidão do sujeito situado na margem,
na beira, no umbral, no limiar em relação ao real. Um poderoso silêncio pode ser
escutado em suas telas...
Precursoras
do hiper-realismo norte-americano, suas telas são muito conhecidas e algumas se
tornaram verdadeiros ícones da arte norte-americana... Hopper pinta o mundo
humano com uma acentuada frieza, e seus personagens parecem estar absortos por
uma espécie de falta de sentido...
Em suas
telas, não se vê vestígio de amor ou sexo. Entre os diferentes personagens há
apenas convívio, e todos parecem estar diante de um supremo impacto. Além
disso, todos parecem estar profundamente sós, mesmo quando partilham alguma
atividade. Em seu livro sobre o pintor, Maria Constantino afirma que ‘as
figuras solitárias que habitam as pinturas de Hopper parecem estar perdidas em
pensamento’. Não há troca de olhares entre eles, nem de sorrisos.” (JORGE)
Embora Hopper tenha pintado cenas de
seu cotidiano, sua obra nos impacta por retratarem
cenas extremamente atuais de um mundo contemporâneo em crise. Aqui me lembro de
Kandinsky que se refere à sensibilidade e intuição singular do artista,
tornando-o uma espécie de profeta da humanidade:
“Então sempre surge um homem, um de nós,
em tudo nosso semelhante, mas que possui uma força de ‘visão’ misteriosamente
infundida nele. Ele vê o que será e o
faz ver. Por vezes desejaria libertar-se desse dom sublime, dessa pesada
cruz sob a qual verga. Mas não pode. Apesar das zombarias e do ódio, atrela-se
à pesada carroça da humanidade, a fim de soltá-la das pedras que a retêm e, com
todas as suas forças, impele-a para a frente.... Aquele que, entre eles, é capaz de olhar além dos limites da parte a
que pertence é um profeta para os que o cercam.” KANDINSKY
Hopper faleceu em 1967 e não pôde
acompanhar a evolução tecnológica e sociocultural que se deu nas últimas
décadas e hoje podemos identificar. O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman,
pensador da modernidade líquida, diz que “Estamos todos numa solidão e numa
multidão ao mesmo tempo”, o que nos faz pensar a obra de Hopper de forma
extremamente atual ao retratar pessoas alienadas em si mesmas, sem ligações
afetivas, que mesmo na presença de outros mostram-se distraídas, desinteressadas
por quem está ao seu lado, vazias, transparecendo em suas feições um enorme
sentimento de solidão.
Quantos de nós não podemos observar
cenas como estas em nosso próprio cotidiano?
O arteterapeuta e a solidão nos tempos atuais
“A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é
a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a
participar da vida humana.
A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.
O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.” Vinícius de Moraes
A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.
O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.” Vinícius de Moraes
A solidão, direta ou indiretamente, é um
tema recorrente na clínica, sendo assim essencial que o terapeuta busque
embasamentos históricos e coletivos que orientem sua escuta individual perante
um cliente/paciente. Afinal somos todos sujeitos inseridos na cultura.
A arte, em suas mais variadas
linguagens, e o artista em sua capacidade de ver além do óbvio, cumprem a
função de perceber, dar forma, traduzir na linguagem de seu tempo e denunciar
aquilo que o ser humano tem produzido para si, lançando o convite para a sua
conscientização e responsabilização.
Na clínica da Arteterapia, o arteterapeuta pode ter como recurso a
utilização destas imagens como espelhamento (estímulos projetivos) àqueles que
se apresentam com a queixa de solidão. O artista e a obra servem como
“interlocutores” no fluxo de pensamentos daquele sujeito, estimulando sua
reflexão e elaboração. Mas sobretudo lançando o convite à conscientização do que
Vinícius tão bem nomeou: a pior solidão é a do ser que se ausenta, se defende,
se recusa e se encerra em si mesmo. Em seguida, o convite à responsabilização,
por si, suas emoções e pelas relações que lhe compõem.
Penso que o sair de si e oferecer afeto
é um ato de resistência nesta contemporaneidade. Oferecer um espaço terapêutico
em que os sujeitos possam levantar o olhar do estabelecido socialmente para
enxergar outros possíveis, faz parte desta micropolítica. Promover e sustentar encontros
entre pessoas, sobretudo estimulados pela arte, é ser agente de uma
contracultura.
Concluo registrando minha escuta para a
fala de arteterapeutas da minha rede de interlocução que (se) perceberam o quão
solitário pode ser o ofício do terapeuta se não buscar seus pares para trocas,
debates, estudos e construção de conhecimento. Agradeço a companhia destas
parceiras que tanto me compõem e deixo aqui o convite aos terapeutas que não
encerrem-se em si mesmos e busquem em outros aquele suporte que todo terapeuta
necessita para a sustentação de seu ofício.
Para saber mais sobre conteúdos como
este, escreva para naopalavra@gmail.com e se
inscreva em nossa mala direta.
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências Bibliográficas:
JORGE, Marco Antonio Coutinho.
Fundamentos da Psicanálise: de Freud a Lacan. Volume 2: A clínica da fantasia.
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte.
SILVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra
Mais um excelente texto de reflexão, apoio e incentivo ao nosso trabalho. Obrigada, Eliana!
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