segunda-feira, 18 de outubro de 2021

RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL COM A CERÂMICA


Por Isabel Pires

bel.antigin@gmail.com

Em arteterapia, sabe-se que o uso de diferentes materiais obedece à linguagem subjetiva e às qualidades terapêuticas deles. Cada material artístico tem o seu momento mais adequado de aplicação no processo terapêutico e responde melhor à necessidade do indivíduo em um determinado momento, pois desperta nele diferentes respostas emocionais. Segundo Carrano e Requião (2013), para um mesmo material, diferentes técnicas poderão ser utilizadas, gerando resultados também diversos. A relação com os materiais artísticos gera no indivíduo experiências sensoriais, sensações de prazer e desprazer, pela textura, a temperatura, o cheiro... “levando a lembranças mais remotas, tudo isso acontecendo ao mesmo tempo por meio da ponte erguida entre o material de arte e os sentidos” (CARRANO & REQUIÃO, 2013, p. 13). 

A argila (ou barro) é frequentemente usada no processo arteterapêutico. Por trabalhar no campo tridimensional, já que pertence à técnica de modelagem, geralmente é usada depois de algumas experiências no campo bidimensional. De acordo com Philippini (2009, p. 72), a argila desperta conteúdos inconscientes mais rapidamente e “mobiliza intensas e ativas conexões arquetípicas”. Além disso, na minha própria experiência, possui um caráter introspectivo e reflexivo, conforme vou relatar a seguir. 

Há algum tempo, na minha primeira aula de cerâmica, enquanto trabalhava a argila, fiz várias reflexões e associações entre o processo de criar um produto de cerâmica, as relações do quotidiano e o processo de individuação. Enquanto o professor me explicava as etapas do processo, fiz uma “viagem mental filosófica”. 

Primeiro, ele me disse para beliscar e amassar a argila (técnica do belisco), para equilibrar as moléculas de água presentes no material. Aí, pensando no árduo processo de amassar e beliscar o barro (que exigem energia e presença corporal), lembrei-me do quão difícil também são os começos na vida: de trabalho, de relacionamento, de um novo aprendizado. Depois, ele me falou para fazer uma bola, que, por ter a forma mais perfeita na natureza, era a que distribuía as moléculas de água de forma mais equilibrada. Claro que me lembrei imediatamente de Jung, ao nos falar do círculo e dos mandalas, como símbolos do Self e do equilíbrio, ou da busca do equilíbrio da psique. Em seguida, fazer um furo central na massa e começar a moldá-la, de dentro para fora. Começar do centro, de dentro para fora, exatamente como funciona a individuação descrita por Jung - o Self é o centro regulador da psique humana. 

Continuei trabalhando e viajando mentalmente. “É preciso ter cuidado com as rachaduras, porque senão, ao ir ao forno, vão fazer com que a peça se quebre”, o professor me alertou. Então, eu pensei em como temos que cuidar de nossas rachaduras internas, na nossa psique e nos nossos relacionamentos, porque, senão, mais tarde, vão explodir em problemas sérios, rupturas, sintomas, doenças. E, por fim, o professor arremata: “Agora, para tornar a peça homogênea, é necessário alisar muito suavemente com o dedo, fazendo um movimento leve de arrastar o dedo pela argila, senão ela (a argila) não vai aceitar e vai rachar”. Que difícil encontrar essa suavidade, essa leveza! Queria me impor à massa, mas isso só piorava as coisas. Até que, por fim, encontrei a paciência necessária e acertei a mão, o ritmo e o jeito de alisar a argila. Não é assim na vida? Se brigarmos com as situações, tudo piora, racha, dá errado. Mas, se tivermos calma e paciência e soubermos equilibrar nossa própria agressividade, encontraremos o jeito certo para lidar com quaisquer situações que a vida nos oferecer. 

Finalmente, ao lidar com a argila, deixei a massa e minhas mãos me guiarem no trabalho. Assim, inicialmente, eu queria fazer uma caneca. Mas o que veio foi uma tigela, e entendi que era isso o que aquele pedaço de barro tinha que ser. Assim também no viver, é preciso seguir o caminho com intuição e aceitar o que é. Além disso, refleti: o objeto já estava naquela argila potencialmente; coube a mim retirar-lhe os excessos, o que não lhe pertencia, trabalhar a massa para que o objeto viesse à tona. Da mesma forma, o sujeito deve fazer o caminho de ampliação de consciência, ou seja, o seu processo de individuação, para se tornar aquilo que nasceu para ser. E, nesse processo, deve abrir mão de muitos hábitos, atitudes, comportamentos que não lhe servem, eliminando os excedentes, o que não é necessário. 


            Após essa etapa, a peça de barro vai, pela primeira vez, ao forno, cuja queima se chama biscoito, que seca as moléculas de água. Aí, é possível lixar o objeto, mas suavemente (outra vez, o movimento suave é necessário) para não o arranhar e evitar deixar marcas indeléveis e indesejáveis. Realmente, muitas vezes, aquilo que fazemos ou falamos pode arranhar uma relação, deixando marcas que talvez nem o tempo possa apagar. Todo cuidado é pouco. Mas o lixar, o aparar arestas é importante, e é nesse momento que podemos eliminar relevos e formas indesejadas e o objeto ganha a forma que queremos. Nos relacionamentos, por exemplo, é preciso o diálogo que “apara as arestas” entre os sujeitos envolvidos. Profissionalmente, essa é a hora do toque final, do aperfeiçoamento, do cuidado que faz a diferença entre o que você faz e o que outro profissional menos cuidadoso oferece.
 

            Finalmente, a etapa da esmaltagem, para dar cor, brilho e proteção à obra criada. Creio que, dentro da lógica da analogia que estabeleci neste texto, podemos pensar no momento em que o relacionamento bem trabalhado, bem cuidado, ganha brilho e cor e fica mais protegido das intempéries da vida. Assim também é no processo de individuação, no qual, depois de todo o trabalho, o indivíduo se torna quem verdadeiramente, com brilho, cor própria e autonomia. 

Eis aqui o que o barro me levou a refletir. Fiquei imersa na experiência de criar e nas etapas que vinham, automaticamente, como metáforas da vida. Senti-me introvertida, reflexiva, filosófica e centrada em mim mesma. Mais importante do que as teorias, experimentar os materiais por si mesmo sempre vai trazer muitos insights importantes ao profissional de arteterapia e, assim, enriquecer o seu trabalho de forma profunda e até inusitada. Se o leitor tiver alguma experiência com esse ou outro material, é só me contar: vou gostar de saber.

           

BIBLIOGRAFIA: 

CARRANO, E. & REQUIÃO, M.H. Materiais de arte – sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013. 

PHILIPPINI, A. Linguagens e materiais expressivos em arteterapia: uso, indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2009.

 

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Sobre a autora: 



Isabel Pires é professora de línguas, psicóloga clínica e arterapeuta, com formação também em jornalismo e em antiginástica ® Thérèse Bertherat. É pós-graduanda em Psicologia Junguiana.

Idealizadora do projeto “Autocuidado e redescoberta: Mulher 45+” com atendimento grupal online, para mulheres de meia idade que passam pelo climatério.

Autora do texto “Vygotsky e a arte”, publicado no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra – organizado por Eliana Moraes. Rio de Janeiro: Semente Editorial, 2020.

Atende adultos em sessões individuais e em grupo, online e presencial. 

4 comentários:

  1. Isabel, que maravilha de texto. Senti um fio condutor, um suave caminho percorrido por reflexão tão profunda. Que beleza ter em cada etapa uma correlação com a vida...quer saber? Pareceu até mais fácil viver. Parabéns

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  2. Obrigada, Sílvia! Fiquei filosófica por causa da cerâmica! Foi uma grata surpresa para mim. Obrigada por seu carinhoso e valoroso comentário!😍🥰😘

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  3. Isabel,
    simplesmente FANTÁSTICO seu texto! Adorei todas as analogias aqui colocadas. E a última frase é um ótimo convite!
    Parabéns! Uma delícia de ler!
    Um forte abraço, Claudia Abe

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    1. Obrigada, Cláudia! As analogias vieram automatica e espontaneamente enquanto trabalhava com a argila. Foi mágico!Grata pelo carinho de sempre! Bjs🥰😍😘

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