segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O USO DA LINHA NAS PRÁTICAS DA ARTETERAPIA

 


Por Eliana Moraes - MG

naopalavra@gmail.com 

No processo de formação da minha identidade profissional como arteterapeuta, entendi que era necessário me aprofundar nos estudos sobre as teorias da arte, dentre elas a História da Arte, as teorias da criação e os elementos visuais. Sem dúvida, há um vasto universo teórico no campo da arte, mas como terapeuta, minha (lenta e cuidadosa) pesquisa e estudo continuado estão norteados pelas aplicabilidades destas teorias na realidade, proposta e práticas da Arteterapia. 

Ao longo deste caminho, percebi que os elementos visuais fazem parte dos estudos do arteterapeuta, para que possamos conhecê-los e nos instrumentalizarmos de suas propriedades, para seu manejo consciente. Nas palavras de Fayga Ostrower:

 

Há um dado deveras interessante! Se fôssemos perguntar de quantos vocábulos se constitui a linguagem visual, de quantos elementos expressivos, a resposta seria: de cinco. São cinco apenas: a linha, a superfície, o volume, a luz e a cor. Com tão poucos elementos, e nem sempre reunidos, formulam-se todas as obras de arte, na imensa variedade de técnicas e estilos…

 

É verdade que os significados dos elementos visuais ficam em aberto, mas deve haver alguma coisa de definível nesses elementos para que possamos reconhecer identidades expressivas diferentes. (OSTROWER, 1983, p 65) 

É importante sinalizar que neste trecho Fayga não menciona “o ponto”, outro elemento visual carregado de simbolismos. De toda forma, a noção de que os elementos visuais carregam “identidades expressivas” específicas nos chama atenção como arteterapeutas. 

Venho escrevendo sobre o elemento cor nos últimos anos, estando alguns destes textos compilados no livro “Pensando a Arteterapia Volume 2”. Mas atualmente tenho direcionado minhas leituras, reflexões e registros de aplicabilidades do elemento linha. Dentre a vasta literatura disponível sobre o tema, no campo da arte, elegi dois teóricos que já tenho uma relação de identificação: Fayga Ostrower e Wassily Kandinsky e no texto de hoje trago o percurso construído até aqui. 

A linha

Se, porém, perguntarmos: o que vem a ser uma linha?... Seria necessário perguntar: o que faz uma linha? E mais especificamente: o que faz a linha em termos de estrutura espacial?... (OSTROWER, 1983, p 65)

 

Isso nos interessa muito, porque do tipo de espaço que a linha pode caracterizar, dependem as qualificações expressivas. (OSTROWER, 67) 

A linha possui qualificações expressivas específicas, o que fica mais claro quando a comparamos com outros elementos visuais:

 

Se compararmos, por exemplo, linhas com cores, sentimos de imediato, o clima expressivo diferente. Enquanto que a linha evoca toda uma ambiência intelectual, a cor é antes de tudo sensual. (OSTROWER, 1983, p 68)

 

Acompanhando essas explicações, mostrei dois desenhos e uma pintura. Todos datam aproximadamente da mesma época. Mas com elementos visuais diferentes – linha no desenho e cores na pintura – definem diferentes modos de ser e sentir. Comparando-as entre si, podemos observar nessas obras... o quanto o sentido de refinamento torna-se mais intelectual no desenho, muito menos sensual do que na pintura. (OSTROWER, 1983, p 68)

No aprofundamento deste estudo, podemos teorizar em diálogo com a Psicologia Analítica junguiana que o elemento cor traz como função auxiliar a função sensação, através da qual é sentida sua vibração, alcançando sua função principal, o contato com os sentimentos. Por outro lado, podemos dizer que o elemento linha, por sua propriedade mais intelectual, racional, tem como função principal a função pensamento.

Já em comparação com o elemento ponto:

 

A linha... É o rasto do ponto em movimento, logo seu produto. Ela nasceu do movimento – e isso pela aniquilação da imobilidade suprema do ponto. Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico... (KANDINSKY,2016, p 49)

 

Essas linhas são totalmente estranhas ao ponto fixado no plano, nada mais tendo da calma inicial do ponto. (KANDINSKY, 2016, p 54) 

Para Kandinsky, este é o ponto zero. Na linguagem, o lugar do silêncio. É caracterizado por ser estático, imóvel. É também introvertido. Porém, o ponto também é o lugar do impulso. Extremamente fecundo, é cheio de possibilidades. Afinal, como nos diz o autor “Tudo começa num ponto.” 

Ao nascer a linha, algumas propriedades expressivas específicas são destacadas. 

Movimento 

Mas existe outra força, que nasce não no ponto mas fora dele. Essa força se precipita sobre o ponto preso no plano, arranca-o daí e empurra-o para uma direção qualquer.

 

Assim, a tensão concêntrica do ponto vê-se destruída e o ponto desaparece, dele resultando um novo ser, dotado de uma vida autônoma e submetido a outras leis.

 

É a linha. (KANDINSKY, 2016, p 45)

 

[A linha] ... nasceu do movimento... Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico... A “tensão” é a força viva do elemento. Ela constitui apenas uma parte do “movimento” ativo. A outra parte é a “direção”, também ela definida pelo “movimento”.  (KANDINSKY, 2016, p  49-50)

 

No caso da linha: ela vai configurar um espaço linear, de uma dimensão. Através dela apreendemos um espaço direcional... Essas linhas funcionam como setas, dirigindo nossa atenção e dizendo: siga nesta direção ou siga naquela. (OSTROWER, 1983, 66) 

O que compreendemos através destes trechos é que a linha nasce de uma tensão que a torna viva e desta forma aciona uma força que a coloca em movimento. Este movimento admite uma direção, como uma seta que gera e direciona possíveis caminhos. Estes caminhos registrados pelo elemento linha podem se tornar subsídios para riquíssimos experimentos arteterapêuticos. 

Tempo, Ritmo 

Como uma das principais propriedades da linha está no movimento, consequentemente, a dimensão temporal torna-se parte do campo:

 

... em todos os casos em que aparece a linha, configura-se o espaço de uma só dimensão. A essa dimensão única é acoplado o tempo, pois qualquer elaboração formal que façamos com a linha terá, necessariamente, caráter rítmico. Introduzindo-se pausas e modulando-se as velocidades das linhas, modula-se o fluir do tempo. (OSTROWER, 1983, p 67)

 

O elemento tempo é, em geral, mais perceptível na linha do que no ponto – o comprimento corresponde a uma noção de duração. Em compensação, seguir uma linha reta ou uma linha curva requer uma duração diferente, mesmo que o comprimento das duas seja semelhante, e, quanto mais uma linha curva é movimentada, mais se alonga em duração. A linha oferece, pois, quanto ao tempo, uma grande diversidade de expressão... Talvez se trate, na verdade, de comprimentos diferentes, o que poderia se explicar psicologicamente. O elemento tempo não deve, pois, ser subestimado numa composição linear... (KANDINSKY, 2016, p 86)

 

Aqui se apresenta o eixo tempo e espaço. E a linha colabora para o registro do tempo no espaço. Em seus escritos, Kandinsky frequentemente busca o diálogo entre as linguagens da arte, e aqui nos presenteia com o diálogo entre o desenho e a dança:

 

 Na dança todo o corpo e, na dança contemporânea, cada dedo desenham linhas de expressões precisas... Todo o corpo do dançarino, até a ponta dos dedos, constitui em todo instante uma composição linear ininterrupta... (KANDINSKY, 1983, p 88) 

Podemos nos inspirar neste diálogo entre a dança e o desenho em momentos dentro do setting arteterapêutico em que o terapeuta entenda ser interessante trazer para a imagem o ritmo e movimento do corpo do paciente. É possível propor que ele faça contato com seu ritmo corporal, que deixe este ritmo se apossar do seu corpo e deixe que seu braço conduza o movimento do lápis, registrando-o em uma folha de papel. Este registro do movimento corporal pode servir de valiosas elaborações e processos de autopercepções. 

Podemos ainda nos inspirar no que diz Fayga Ostrower: “Existem possibilidades de se modular o movimento da linha.” (OSTROWER, 1983, p 66). Assim, é possível intencionalmente promover o contato com determinado movimento em específico, como por exemplo, a partir de um estímulo musical (ritmo, movimento, vibração) ou acesso a sentimentos e memórias afetivas, e a partir do ritmo corporal por eles gerados, permitir que a linha registre este movimento tornando-o visível. 

Gera forma 

Outra das grandes propriedades da linha, nas palavras de Kandinsky: “Estamos tratando aqui de uma das características específicas da linha – seu poder de criar superfícies.” (KANDINSKY, 1983, p 53), o que chamamos também de formas. 

Como exemplo, em Arteterapia, temos em nosso repertório cotidiano o desenho cego ou desenho espontâneo, que André Masson, artista surrealista chamava de desenho automático. Esta é uma prática a qual através de um emaranhado de linhas espontâneas, propõe-se a busca de imagens, formas, superfícies. 

Esta é uma prática através da qual trabalhamos o fenômeno da projeção, pois o olhar do espectador fatalmente encontrará símbolos que o pertencem: vale destacar, símbolos espontâneos, não escolhidos, não planejados, não racionalizados, consequentemente advindos de conteúdos inconscientes riquíssimos para a leitura e escuta simbólica dentro do setting arteterapêutico. 

Limites 



Mas sem dúvida, em minha experiência clínica a propriedade da linha mais atualizada dentro de um setting terapêutico se dá ao encontro de demandas terapêuticas sobre os limites, sejam eles entre o sujeito e o outro ou os limites internos de cada indivíduo. É possível utilizá-las como metáfora no diálogo terapêutico, mas também como experimentos criativos e produção de imagens, a partir do repertório do arteterapeuta. 

As queixas terapêuticas recorrentes giram em torno de invasões, transbordamentos, excessos, dificuldade de dizer não e impor limites (a si e ao outro), dificuldade de delimitar o que pertence a um e ao outro. Neste contexto, como palavras chave para o elemento linha, podemos destacar: limites, contornos, bordas, fronteiras. Delinear, circunscrever, separar, discriminar (um e outro).  

Para compreensão da analogia, podemos trabalhar com nossos pacientes que a linha simboliza seus contornos, suas bordas, aquilo que faz o limite entre um elemento e outro, entre o que está dentro e o que está fora. É análogo à nossa pele: ela nos protege para que o que está dentro não vaze para fora e o que está fora não penetre no que está dentro.  A linha muitas vezes é protetora de invasões, nos resguarda e preserva também de transbordamentos e exposições de nossos conteúdos. Na tradução para a imagem, utilizando lápis de cor ou tintas, o experienciador poderá trabalhar o preenchimento de espaços gerados pelas linhas, respeitando os limites por ele mesmo gerado. 

Em síntese, através de experimentos com a linha podemos trabalhar a compreensão de que o limite é estruturante e também um ato de amor, ao outro e a si mesmo.

 

O estudo sobre os elementos visuais seguem seu curso. Ainda inspirada em Fayga:

 

Deveríamos poder chegar diante de um quadro e, ao olhá-lo, apreender de pronto – assim como se distinguem as palavras ouvidas numa frase – quais os principais elementos que foram elaborados pelo artista. (OSTROWER, 1983, p 69) 

Que possamos desenvolver nossa escuta terapêutica, nas linguagens da palavra ou da imagem, na arte e na Arteterapia, nas imagens já expressadas ou naquelas que buscam expressão.

 

Bibliografia:

KANDINSKY, WASSILY. “Ponto e linha sobre plano”. Editora WMF Martins Fontes, SP. 2012.

OSTROWER, FAYGA. “Universo da Arte”. Editora Campus, 1983.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

2 comentários:

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  2. Perfeito, como sempre! Arte e Não-Palavra e Eliana sempre acrescentando novas criações, ampliando os olhares em Arteterapia. Belo texto. Parabéns Avanteeee

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