segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

DIÁLOGOS ENTRE ARTE, TARÔ E ARTETERAPIA: O ENAMORADO E OS OBJETOS RELACIONAIS DE LYGIA CLARK

 

Por Mercedes Duarte – RJ 

Esse é mais um texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos. Nesse artigo, trago o Arcano VI, o Enamorado, em diálogo com os Objetos relacionais da artista Lygia Clark.

Aqui não há a pretensão de esgotar as dimensões do arquétipo, o que seria inalcançável, tampouco explanar com profundidade a proposta da artista em questão. O escopo é trazer um recorte que privilegie as afinidades entre ambos.

O intuito desse diálogo, portanto, entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em outro texto[1], é o de proporcionar reflexões e possibilidades arteterapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] - que permeiam esses elementos em diálogo, buscando, assim, contribuir para a ampliação do repertório arteterapêutico. 

O Enamorado 

Nossos sentidos (...) são todos órgãos de fazer amor com o mundo.

                                                                                 Rubem Alves

Tarô de Marselha

Tarô de Waite e Smith


No Tarô de Marselha vemos três pessoas em relação, em um mesmo plano. Um rapaz está posicionado entre duas mulheres[3], uma mulher jovem e outra mais velha, que o tocam. Ele olha para uma, mas se posiciona em direção à outra. Poderíamos especular uma cena em que o rapaz do centro está entre dois caminhos e que precisa fazer uma escolha. O cupido acima do rapaz lhe acusa uma direção ao apontar sua flecha para a jovem à sua esquerda. Ainda que pareça envolvido com as duas personagens, a configuração parece apontar para um conflito que o impele à escolha entre o “velho” e o “novo”.

Em termos psicológicos, o protagonista representa o ego, ainda jovem, que está a se desvencilhar da fascinação pelo arquétipo da Mãe e a libertar sua alma para se envolver na vida[4] (NICHOLS, 1997, p. 141). Esse é um momento importante em sua iniciação. De acordo com Sallie Nichols “o Papa do Tarô [arcano anterior] oferece iniciação na vida do espírito. [No Enamorado], o desafio consiste em ligar a vida espiritual à emocional e, através do apaixonado envolvimento em toda a vida, conseguir um novo relacionamento com os outros e uma nova harmonia consigo mesmo” (1997, p.141).Caixa de texto: Tarô de Waite e Smith

            Nesse sentido, podemos considerar, especialmente no Tarô de Waite, como vemos acima, a ideia de integração entre opostos. Entre céu e terra, por exemplo, e entre masculino e feminino. Ainda que a escolha possa pressupor o abandono de um dos elementos envolvidos, como especulamos no Enamorado do Tarô de Marselha, aquele que se retira, ou é retirado para dar lugar ao “novo”, já é parte constitutiva do protagonista. Portanto, essa carta propõe um nível de elaboração, integração e equilíbrio entre os aspectos nela envolvidos, como, por exemplo, passado, presente e futuro.

            Esse arcano, portanto, trata sobretudo do aspecto relacional do indivíduo, que é permeado por conflitos/atritos, necessários ao desenvolvimento humano, e pela dimensão dos prazeres, elementos esses constitutivos da experiência dos encontros.


Lygia Clark e seus objetos relacionais

      Lygia Clark (1920-1988) foi uma artista plástica brasileira, nascida em Belo Horizonte, Mina Gerais. Sendo uma das fundadoras do Neoconcretismo, movimento artístico carioca, Clark assina o manifesto do movimento, em 1959, junto a Ferreira Gullar, Lygia Pape, Reynaldo Jardim, entre outros.

Em suas obras Bichos (1960) e Caminhando (1963), a artista rompe com a arte formal, e concebe um deslocamento das fronteiras da arte, de modo a tornar o expectador sujeito e coautor da obra. A artista passa a ser então uma propositora. Busca religar arte e vida, através de suas proposições experienciais.

Em Estruturação do Self (1978), uma proposta artístico-terapêutica, Clark radicaliza e concebe experimentações corporais, em seu “ateliê-consultório”, em sessões individuais. Sistematiza os Objetos relacionais, já encontrado em propostas anteriores, em um método terapêutico que toma o corpo como elemento central da experiência. Nesse trabalho, o sujeito ao vivenciar sensações provocadas pelo contato criativo com objetos simples, confeccionados pela artista, seria estimulado à reelaboração de si (ALMEIDA, 2013).

De acordo com o psicanalista Donald W. Winnicott, por quem o trabalho de Clark é inspirado, “Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, (...) uma área intermediária entre a realidade interna (...) e a realidade compartilhada do mundo” (WINNICOTT, 1975, p. 93). Desse modo, a proposta de Lygia busca

mobilizar a percepção e a sensação, que permitem a apreensão da alteridade do mundo. (...) Trata-se do paradoxo dentro/fora (...) que é a área iminentemente da experiência e constitui um espaço onde o sujeito está sempre em trânsito de um a outro, entre si e a alteridade do mundo, continuamente se criando. É nesta região da experimentação e do brincar que o homem pode ser criativo e somente sendo criativo ele descobre o seu eu (self), pois é ali que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem. Portanto, (...) o eu (self) se constrói na experiência; o homem só pode ser na experiência (REA, 2017, p. 98)



                                                      

Lygia Clark com um objeto relacional

Lygia Clark com um objeto relacional

            Nesse sentido, a concepção dos Objetos relacionais de Lygia Clark nos traz um repertório pertinente, em termos arteterapêuticos, para elaboração do arcano do Enamorado, que encarna justamente a experiência do encontro com aquilo que nos é externo, possibilitando, assim, a percepção e diálogo entre o dentro e o fora.

 

Proposta Arteterapêutica 

Foi sugerido, antes do encontro, a escolha, pelas participantes, dos materiais e da técnica para o trabalho plástico, levando em conta o prazer no contato com os elementos escolhidos. Antes da produção plástica, houve a manipulação de objetos previamente selecionados para estimular sensações distintas. A proposta do trabalho plástico era o de expressarem a experiência de estarem em relação.

 

                                                                     Título: Integração


Título: Deleite na Integração

            Ambas obras acima trouxeram a noção de integração. Na primeira foi utilizada pintura e colagem, e enfatizada a união interna entre o feminino e o masculino; matéria e espírito; corpo e alma. Na segunda obra a participante utilizou a colagem, e ressaltou o prazer em estabelecer consigo mesma a integração interna, possibilitada pelo encontro amoroso.

  


[1] DUARTE, Mercedes. Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/

[2] A Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas quinzenais, remotas, inspiradas nos arcanos maiores do tarô em diálogo com determinados elementos da arte.

[3] Em algumas interpretações dessa carta a personagem à esquerda é considerada um homem.

[4] Esse arquétipo se insere no Reino dos Deuses, mas está há uma carta do segundo setenário, considerado o Reino Terreno, onde o herói vai construir seu lugar no mundo. Divisão essa, a cada sete cartas, explicitada no texto: DUARTE, Mercedes. Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/


Referências bibliográficas

 ALMEIDA, Eduardo Augusto Alves de. (2013). Aspectos da Estruturação do Self de Lygia Clark: perspectivas críticas. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa Interunidades de Pós-Gradução em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo.

ALVES, Rubem (2012). Educação dos Sentidos e mais… 9ª ed. Verus Editora: Campinas - SP.

DUARTE, Mercedes (2021). Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/

 NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van

Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.

REA, Silvana (2017). Lygia Clark: Arte e Vida. Ide. São Paulo, 40 [64] dezembro, 2017. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062017000200008 Acesso em 30/11/21.

 WINNICOTT, D. (1975). O brincar e a realidade. Ed. Imago: Rio de Janeiro.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte



Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos

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