segunda-feira, 2 de março de 2020

VYGOTSKY E A ARTE




Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)

Recentemente apresentei minha monografia de final de curso, ou TCC, de Psicologia sobre o tema arte e Vygotsky. Meu trabalho se intitulou “Arte como transformação: articulações entre o pensamento de Vygotsky, a psicologia e a arteterapia.” Nele, entre outras coisas, falo do trabalho de Vygotsky sobre arte e psiquismo humano e sobre a arteterapia segundo a abordagem vygotskyana, que é a da Psicologia Social Sócio-Histórica ou abordagem interacionista, uma novidade no campo arteterapêutico. Por isso, a importância de divulgá-la e a motivação deste texto.

Um dos estudiosos mais importantes no campo da psicologia, mas ainda pouco divulgado, é Lev Vygotsky. Sua extensa obra é marcada por um caráter interdisciplinar e de grande relevância até os nossos dias. Seu trabalho sobre arte e o psiquismo humano, desenvolvido junto com o renomado neuropsicólogo Luria e o sociólogo Leontiev, é pioneiro e inovador. Apesar disso, Vygotsky foi ignorado no Ocidente durante muitos anos, pois sua obra foi proibida na antiga União Soviética do ditador Stalin, até 1956. Suas ideias só passaram a ser divulgadas no mundo ocidental a partir de 1962, quando da publicação americana do livro Pensamento e Linguagem, e, no Brasil, somente em 1984, data em que seu livro A formação social da mente foi publicado aqui. No nosso país, Vygotsky passou a ser estudado na área de pedagogia, devido à sua importante teoria sobre o desenvolvimento infantil. Estudioso de várias áreas de conhecimento, como a filosofia, a história, a arte e, claro, a psicologia, esse psicólogo russo centralizou seu trabalho no estudo dos processos psicológicos do ser humano em seu contexto histórico e cultural, fato que revolucionou a psicologia de sua época e originou a psicologia sócio-histórica (REGO, 1995).

Breve biografia


Lev Semionovich Vygotsky nasceu em Orsha, um pequeno povoado da Bielorússia, em 17 de novembro de 1896, de família judaica. Vygotsky cresceu em Gomel, também na Bielorrússia, com seus pais e seus sete irmãos. Até os 15 anos de idade, teve tutores particulares, que o ensinavam em casa. Gostava de literatura e de artes e estudou várias línguas (alemão, latim, hebraico, francês e inglês), o que lhe deu acesso a textos vindos do restante do mundo. Entre 1914 e 1917, estudou Direito e Literatura, na Universidade de Moscou. Nesse mesmo período, Vygotsky também se dedicou aos estudos de história e filosofia, o que marca sua trajetória voltada para a interdisciplinaridade, já que tinha interesse em diversas áreas, desde linguística e estética, passando por medicina, até se dedicar, sobretudo, à pesquisa em psicologia. Iniciou sua carreira aos 21 anos, pouco depois da Revolução Russa, em 1917. Casou-se aos 28 anos com Rosa Smekhova, com quem teve duas filhas. A partir de 1924, passou a se dedicar sistematicamente à psicologia. Faleceu em Moscou, em 11 de junho de 1934, aos 38 anos de idade, devido a uma tuberculose que o atormentava há quatorze anos (REGO, 1995).

Cultura, arte e vida

Dentro da perspectiva de Vygotsky, as funções psíquicas são formadas pela cultura, que é, portanto, parte constitutiva da natureza humana e provém da internalização das formas historicamente organizadas de lidar com informações. Em outras palavras, as funções mentais conquistadas pelos homens ao longo da História são processadas no cérebro, mas se materializam nos elementos da cultura, como a linguagem, a ciência, a filosofia e a arte. Assim, na teoria vygotskyana, segundo Barroco e Superti (2014), é no plano cultural, e não no biológico, que o homem se humaniza e aprende a viver no mundo.

Dentro da ideia de cultura como construção sócio-histórica, Vygotsky aborda a arte como importante instrumento cultural de mediação entre o sujeito e o mundo e também como legado de culturas ancestrais. De acordo com Reis e Zanella (2014), as questões ligadas ao campo da arte foram as primeiras com que Vygotsky iniciou sua pesquisa acadêmica na área da psicologia. Como explicam Barroco e Superti (2014), na perspectiva de Vygotsky, a arte se relaciona permanentemente com a realidade objetiva, pois se liga às relações sociais de sua época. Mas não se reduz à cópia fiel desta realidade, já que, pela ação criativa, transforma-se em algo novo, transmutado.  Logo, a arte é fruto da ação criativa que atua e modifica a realidade concreta de onde partiu. Dentro dessa perspectiva, atua como meio de transformação individual e social.

Barroco e Superti (2014, p. 27) explicam que, para Marx, que embasou o trabalho inicial de Vygotsky, “a arte contribui para o refinamento dos sentidos, tornando o homem ainda mais livre dos instintos e das necessidades imediatas (...)”, já que ela torna possível o desenvolvimento dos sentimentos e afirma forças humanas elevadas, tais como: abstração, criatividade, percepção, emoção e imaginação. Desta forma, a arte leva a uma reorganização psíquica mais elaborada. Além disso, no processo de produção artística, novas funções também se formam e se desenvolvem.

Em seu livro Psicologia da Arte, Vygotsky faz uma análise da influência da obra de arte no psiquismo humano. Segundo Schühli (2011), a psicologia da arte de Vygotsky busca evidenciar a ação da arte sobre os sentimentos, uma vez que ela faz parte do campo do sentimento social. Nessa abordagem, a estrutura da obra de arte compõe-se de uma síntese entre forma e conteúdo. Mas, de acordo com Barroco e Superti (2014), essa composição resulta numa unidade contraditória entre a forma e o conteúdo, condição sine qua non da obra de arte. Em tal contradição, expressam-se emoções antagônicas, e é na própria obra, pela catarse, que se opera a superação da contradição. Segundo as autoras, “a catarse, nesse sentido, diz respeito à transformação das emoções suscitadas em um novo sentimento” (BARROCO E SUPERTI, 2014, p. 29). No entanto, para as autoras citadas, não são apenas as emoções que são transformadas, e sim, todo o funcionamento psicológico, se tomarmos o psiquismo como unidade. Assim, a arte eleva as emoções ao nível consciente, social e universal.



Schühli (2011) explica que as emoções provocadas pela obra no espectador e transformadas pela catarse são aquelas já “desgastadas”, que, uma vez reavivadas pela vivência artística, modificam-se qualitativamente pelo processo catártico. Deste modo, a obra de arte reaviva emoções e paixões que, sem ela, teriam permanecido desconhecidas e inativas. De acordo com esse autor, a catarse resultante da vivência da obra de arte age na resolução das paixões do espírito, tal como na tragédia. Isso porque a obra de arte causa uma reação estética resultante do conflito de emoções causado pela forma e o conteúdo. Como consequência, há uma descarga de sentimentos, a qual transforma as emoções desprazerosas em prazerosas.

No entender de Reis e Zanella (2014), através da arte, o homem imprime a sua visão de mundo e pode, pelo olhar estético, sempre presente na arte, enxergar a vida de forma nova, modificada. Essa característica potencial de transformação da arte pode levar “à recriação da vida, à reinvenção de si a partir de novos modos de relação consigo, com o outro e com o mundo (REIS E ZANELLA, 2014, P. 102). Assim, as autoras entendem que, na teoria de Vygotsky, pode-se relacionar vida e arte, a vida transformada em arte, que volta à vida de maneira nova. Através da atividade criadora, o indivíduo pode recriar a realidade e, ao mesmo tempo, a si mesmo e pode, também, enxergar novas possibilidades para a sua vida e para seu contexto social.

Pelo que foi exposto até aqui, a abordagem sócio-histórica vincula intrinsecamente a arte ao psiquismo humano, pelas próprias características da obra de arte estudadas por Vygotsky. Para ele, o contato com a arte altera sentimentos, vontade, comportamento, consciência e psiquismo. Através da psicologia sócio-histórica de Vygotsky, o arteterapeuta pode compreender melhor o funcionamento desse psiquismo, a partir do estudo da reação estética envolvida na obra de arte e no processo criativo. Assim, poderá buscar desenvolver ainda mais, no indivíduo, através da expressão artística, a capacidade recriadora de si e do mundo que o cerca.

Em Vygotsky, apreende-se a importância da arte, da vivência estética e do processo criativo na formação do psiquismo humano, o que é muito relevante para a arteterapia. Como relembra Reis (2014), através do fazer artístico, desenvolve-se a criatividade e se pode estabelecer um contato profundo e eficaz entre paciente e terapeuta. De acordo com a psicologia social histórico-cultural, que enfatiza a natureza transformadora da arte, a arte pode mediar a relação criadora entre o homem e a vida e ampliar suas possibilidades de modos de viver. “É precisamente a atividade criadora do homem que o faz um ser projetado para o futuro, um ser que contribui para criar e modificar seu presente”. (VYGOTSKY apud REIS, 2014a, p. 255).

No próximo mês, abordarei Vygostsky e a importância do grupo, já que, para esse psicólogo russo, o indivíduo é determinado pelo social. Aí poderemos pensar, entre outras coisas, sobre o valor da troca entre arteterapeutas e o atendimento de grupos em arteterapia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

·         BARROCO, S.M.S.; SUPERTI, T. Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano. Psicologia & Sociedade. Paraná, 26 (1). Pp. 22-31, 2014. Disponível em: <https://www.researchgate.net/journal/18070310_Psicologia_e_Sociedade> Acesso em: 30/09/2019.

REGO, T. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 4ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

REIS, A. (2014). A arte como dispositivo à recriação de si: uma prática em psicologia social baseada no fazer artístico. Barbaroi Revista do Departamento de Ciências Humanas, Santa Cruz do Sul, 2014, n.40, pp. 246-263. Disponível em: < https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/view/3386> Acesso em: 08/10/2019.

REIS, A.; ZANELLA, A.V. Arte e vida, vida e (em) arte: entrelaçamentos a partir de Vygostky e Bakhtin. Psicologia Argumento, Paraná, 2014, v. 32, n. 79, supl. 1, pp. 100-102, 105. Acesso em: 05 maio 2019. Disponível em: <https://periodicos.pucpr.br/index.php/psicologiaargumento/article/view/20463/19721. Acesso em: 05 maio 2019.

·        SCHÜHLI, V. A dimensão formativa da arte no processo de constituição da individualidade para-si: a catarse como categoria psicológica mediadora segundo Vigotski e Lukács.2011. 195f. Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.

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Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires



Formação: Jornalismo, Pedagogia, Antiginástica ®,  Arteterapia e Psicologia
Área de atuação/projetos/trabalhos: Atendimentos individuais ou em grupo

A autora é arteterapeuta e psicóloga. Tem formação e experiência em
Antiginástica ® Thèrese Bertherat, é jornalista e professora de inglês e francês. Realiza atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.

4 comentários:

  1. Oi, Bel, adorei conhecer o exposto!
    Aguardo a continuação ...
    Parabéns por essa riqueza! Bjs

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  2. Oi, Bel, adorei conhecer o exposto!
    Aguardo a continuação ...
    Parabéns por essa riqueza! Bjs

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  3. COMENTÁRIO ENVIADO DO BEATRIZ COELHO:

    Obrigada Isabel. é mais do que chegada a hora das diversas esferas do pensamento e do conhecimento conversarem. Há uma frase do cineasta Jean-Luc Godard que me "persegue": A crise que vivemos nos dias atuais é basicamente uma crise da Linguagem. As palavras não comunicam mais porque os conceitos estão em crise, a memória está "despedaçada", tudo se atrita, as imagens se atritam provocando guerras mas também podem, ao se esfregarem umas nas outras, provocar a LUZ. Como duas pedras que, friccionadas, fazem o fogo. "A verdade está no fragmento". O filme termina com mais uma frase profética: "O mundo está abarrotado de letras, sufocado de conhecimentos... mas há poucos ouvidos para escutar. No filme, são enfatizados os fragmentos. Os "fragmentos de verdade". Imagem. Imagens. Fragmentos de imagens... A Arte aí tem o seu papel; assim como a Natureza, assim como o Silêncio dos Animais., assim como as Cores.
    Obrigada de novo, Isabel.Seu texto contribui para compreendermos este quebra-cabeças que é o mundo e nossas vidas dentro dele. Nossas Imagens...
    Nota: As frases de Godard às quais me referi estão no filme "Imagem e Palavra" ("Le Livre d'Image", no orig.), 2018.
    Beatriz Coelho
    biacoelho017@gmail .com

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