segunda-feira, 16 de março de 2020

REENCONTRANDO LA FONTAINE


Marc Chagall

Por Beatriz Coelho
biacoelho017@gmail.com

A estória da Cigarra e da Formiga, da Tartaruga e da Lebre, todos as conhecem de cor. Mas, até aí, ainda não experimentamos La Fontaine. Estas fábulas, e centenas de outras, nos veem da Antiguidade greco-latina, de Esopo, mais precisamente - se é que esta palavra lhe cabe, pois sua existência é lendária e enigmática assim como a de Homero. Também o inspiraram contos da Índia antiga. Coloquei em português as Fábulas de La Fontaine, tentando seguir seu espírito e a forma - em versos. Que ousadia! Não sou uma especialista em La Fontaine, portanto nossa apresentação do Poeta visa apenas a situá-lo em linhas gerais.
Nosso Autor, que escreveu as fábulas tardiamente, tem como fontes: Esopo, Fedro, Pilpay (sobre quem a certa altura La Fontaine interroga: não seria o próprio Esopo?), Maquiavel, Boccacio, outros fabulistas menos conhecidos e relatos de viajantes que encontrou. Nada é evidente em La Fontaine. Isto faz parte do seu jogo.
Existe o La Fontaine aprisionado pelas Enciclopédias, pelas publicações escolares, pelos Críticos do seu Tempo, pelos Críticos do nosso tempo, pelos Admiradores, pelo senso comum, pelos acadêmicos... Eu tenho o meu La Fontaine pelo qual me apaixonei. Por onde ele me pegou? 
•Pela Poesia: sua música, seu ritmo, suas metáforas.
•Pela Inteligência do seu modo de contar.
•Pelo Conteúdo de suas estórias que, nos remetendo a questões morais, não são “moralistas”.
•Pelo seu Humor. La Fontaine nos faz gargalhar.
•Pela sua Universalidade.
•Pelo seu desejo de passar às próximas gerações ensinamentos, beleza, elevação.
•Pela Crítica Social.
•Pela Compaixão. A frágil humanidade de cada um, inclusive a dele próprio, ainda é uma obra em construção. As artes aí têm o seu papel - a Arte.

Alguns dados biográficos


La Fontaine nasceu no ano de 1621, em Château-Thierry, na tradicional região da Champagne que hoje se alcança em uma hora a partir de Paris pelas autoestradas. Apesar de sua obra percorrer países vastos da imaginação, pouco viajou. Seus deslocamentos se restringiam basicamente a Paris. (E o leitor dirá: E precisa mais?) Lá, se fixou e morreu aos 73 anos de idade, em 1695.
La Fontaine viveu no chamado Grande Século francês, no auge do absolutismo de Luís XIV, o Rei Sol, o mais poderoso inquilino do palácio de Versailles. Filho de alto funcionário do Estado para os assuntos da sua região, (seu pai ocupava o cargo de Inspetor das Águas e Florestas), pertencia a uma família da burguesia provinciana em ascensão social a caminho da aristocracia. La Fontaine herdará o cargo de seu pai e receberá uma formação intelectual poderosa. Casou-se aos 26 anos com uma “moça”, Marie Héricart, de 14 anos e meio. Casamento arranjado pelas famílias, ela era parente de Racine, o grande poeta e autor teatral do século XVII, ao lado de Corneille e Molière de quem foi amigo. Teve um filho com a Marie, mas seu casamento não durou muito e ele se fixa em Paris em 1658, aos 37 anos, portanto. A separação foi acontecendo aos poucos, segundo os biógrafos. As dificuldades econômicas, (La Fontaine dispensara o cargo herdado pelo pai, pois sua vocação era outra), parece terem  contribuído bastante para a deterioração do casamento. La Fontaine tinha um temperamento boêmio e apreciava a vida mundana. “Ouvi dizer”... que depois do afastamento definitivo ele nunca mais procurou o filho. Sua mulher teria dito que o marido vivia sonhando, e a tal ponto, que parecia esquecer-se de que era casado.
Em Paris, vai integrando ciclos literários e boêmios e encontrando “protetores” e “protetoras”. Importante para o seu deslanchar foi Fouquet, Ministro das Finanças de Luís XIV. Foi seu hóspede no castelo de Vaux-le-Viconte. Este castelo é famoso até hoje, aberto a visitação. Foi esta construção que inspirou o palácio de Versailles. Luís XIV quis superar seu Ministro que, desestabilizado pelas intrigas de Colbert, (mais a inveja do rei), caiu e foi encarcerado até seus últimos dias. É sabido que La Fontaine passou toda a primeira noite de prisão do amigo e protetor perambulando do lado de fora, aos prantos. Escreveu poemas dirigidos à misericórdia de Luís XIV. Em vão. É a partir desta grande decepção que La Fontaine decide se dedicar às fábulas. Até então, escrevera poemas, contos e comédias. A inveja do rei com relação a seu Ministro, as manobras de Colbert, as hipocrisias e ódios na Corte encontraram nas fábulas um modo pacífico de vingança. A amizade também era um valor caro ao Poeta. Seu amigo de infância, desde os tempos de Châteu-Thierry, dirá depois de sua morte, que La Fontaine foi a pessoa mais sincera que conheceu: jamais mentira.

As fábulas
Marc Chagall

Esboçaremos apenas uma noção esquemática do que são consideradas as Fábulas de La Fontaine.

A obra constituída pelas fábulas foi publicada em três coletâneas com a supervisão do Autor. Cada coletânea continha um número variável de Livros; e cada Livro, por sua vez, incluía um número variável de fábulas. No total, são XII Livros.  A primeira coletânea sai em 1668, englobando os Livros do I ao VI, mais um Prefácio e uma Vida de Esopo escritos por La Fontaine. A segunda coletânea é publicada em duas partes: a primeira, editada em 1678 (do Livro VII ao Livro VIII); e a segunda, em 1679, (contendo os Livros IX, X e XI). A terceira coletânea é editada em 1694 e contém as fábulas que integram o Livro XII. Este último Livro deixa um pouco a fonte tradicional das fábulas inspirando-se nos contos de Maquiavel e Boccacio. O último poema é um adeus de La Fontaine ao mundo que morre no ano seguinte.  E assim, nosso Poeta, Fabulista, Filósofo, mundano e piedoso, contraditório, inapreensível, independente, mutante e humano muito humano La Fontaine foi criando e publicando, até o fim da sua vida, seus 12 Livros para a nossa mais pura felicidade.

      Vamos às fábulas! Difícil é selecionar apenas uma. Hoje escolhemos:

       A menina e o Pote de leite (Livro VII, fábula 9)
Rosinha pôs na cabeça o pote de Leite
Lembrando a figura do enfeite:
Vestido de chita, mascando capim,
Queria chegar à feira de São Marcello.
Para caminhar mais ligeirinho,
Trocou o seu tamanco pelo chinelo.
Enquanto os passinhos engoliam a estrada,
A cabecinha imaginava distraída:
Com o dinheiro da venda do Leite compraria
Ovos para a chocadeira improvisada.
Há espaço lá fora e assim criaria
Umas robustas galinhas;
Se não for de todo voraz,
A raposa levará poucas peninhas
E sobrarão alguns vinténs para o porco do Braz.
A engorda do bicho não pesa no bolso;
Farei dele um campeão!
Com um pouco de esforço,
Se tornará o recordista da região!
Poderia vendê-lo obtendo um reforço;
Já o vejo saltar no meio da bicharada.
Neste instante, Rosinha dá uma topada,
Absorta que estava com seus devaneios:
Toda fortuna foi assim derramada
E ela ainda corre o risco de ser surrada
Pelo marido, coitada!
Que duendes fazem no espírito tal campanha?
Quem já não construiu castelos na Espanha?
Alceu, Madalena, Rosinha... para citar poucos.
Tantos sábios e tantos loucos!
Sonhamos acordados, recebemos louros;
A vaidade atiça nossos arroubos;
Todos os bens do mundo são nossos tesouros;
Todas as honrarias, todas as conquistas.
Sozinho minha arte supera Arrau!
Em meus delírios arrebato o Municipal:
Bis, aplausos, cumprimentos no camarim,
Luzes, ribaltas, emoções estonteantes...
Um tropeço e volto para dentro de mim.
Retorno ao mesmo João Ninguém de antes.

                  
Fontes: La Fontaine, Œuvres Complètes, I, Fables Contes et Nouvelles
Ed. Gallimard, Paris, 1991; 
Collection Littéraire Lagarde & Michard, XVIIe  siècle, Bordas, Paris,1962; 
documentário  dedicado a La Fontaine no quadro de programas 
Trésors du Patrimoine exibido pela TV5 Monde, 2019.

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Sobre a autora: Beatriz Coelho



Sou mesmo é multifacetada.
Em Paris, fiz mestrado em Sociologia.
Lá, me casei e tive a primeira cria.
De volta ao Brasil, a Vida fez arrelia.
    Abandonei a Sociologia.
Consacrei-me aos amores da minha família.
Mas as letrinhas faziam uma falta danada.
Estava meio despetalada.
Escrevi Cadernos do Silêncio com vírgulas
E de La Fontaine traduzi as Fábulas.      

4 comentários:

  1. Querida!Que surpresa linda!Será que agora,sai o nosso encontro?Gostaria muito de ouvi-la para aprender.💋💋💐

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  2. Que lindo testemunhar suas pazes com as letrinhas. Fiquei emocionado. Lindo demais.

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  3. Obrigada Mário. Belo trabalho criando a página Horácio Coelho, nosso avô. Vou tentar juntar minhas lembranças pra enviar a vc.

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