Marc Chagall
Por
Beatriz Coelho
biacoelho017@gmail.com
A
estória da Cigarra e da Formiga, da Tartaruga e da Lebre, todos as conhecem de
cor. Mas, até aí, ainda não experimentamos La Fontaine. Estas fábulas, e centenas
de outras, nos veem da Antiguidade greco-latina, de Esopo, mais precisamente - se
é que esta palavra lhe cabe, pois sua existência é lendária e enigmática assim
como a de Homero. Também o inspiraram contos da Índia antiga. Coloquei em
português as Fábulas de La Fontaine, tentando seguir seu
espírito e a forma - em versos. Que ousadia! Não sou uma especialista em La Fontaine,
portanto nossa apresentação do Poeta visa apenas a situá-lo em linhas gerais.
Nosso Autor,
que escreveu as fábulas tardiamente, tem como fontes: Esopo, Fedro, Pilpay
(sobre quem a certa altura La Fontaine interroga: não seria o próprio Esopo?),
Maquiavel, Boccacio, outros fabulistas menos conhecidos e relatos de viajantes
que encontrou. Nada é evidente em La Fontaine. Isto faz parte do seu jogo.
Existe
o La Fontaine aprisionado pelas Enciclopédias, pelas publicações escolares,
pelos Críticos do seu Tempo, pelos Críticos do nosso tempo, pelos Admiradores,
pelo senso comum, pelos acadêmicos... Eu tenho o meu La Fontaine pelo qual me
apaixonei. Por onde ele me pegou?
•Pela
Poesia: sua música, seu ritmo, suas metáforas.
•Pela
Inteligência do seu modo de contar.
•Pelo
Conteúdo de suas estórias que, nos remetendo a questões morais, não são
“moralistas”.
•Pelo
seu Humor. La Fontaine nos faz gargalhar.
•Pela
sua Universalidade.
•Pelo
seu desejo de passar às próximas gerações ensinamentos, beleza, elevação.
•Pela
Crítica Social.
•Pela
Compaixão. A frágil humanidade de cada um, inclusive a dele próprio, ainda é
uma obra em construção. As artes aí têm o seu papel - a Arte.
Alguns
dados biográficos
La
Fontaine nasceu no ano de 1621, em Château-Thierry, na tradicional região da
Champagne que hoje se alcança em uma hora a partir de Paris pelas autoestradas.
Apesar de sua obra percorrer países vastos da imaginação, pouco viajou. Seus
deslocamentos se restringiam basicamente a Paris. (E o leitor dirá: E precisa
mais?) Lá, se fixou e morreu aos 73 anos de idade, em 1695.
La
Fontaine viveu no chamado Grande Século francês, no auge do absolutismo de Luís
XIV, o Rei Sol, o mais poderoso inquilino do palácio de Versailles. Filho de
alto funcionário do Estado para os assuntos da sua região, (seu pai ocupava o
cargo de Inspetor das Águas e Florestas), pertencia a uma família da burguesia
provinciana em ascensão social a caminho da aristocracia. La Fontaine herdará o
cargo de seu pai e receberá uma formação intelectual poderosa. Casou-se aos 26
anos com uma “moça”, Marie Héricart, de 14 anos e meio. Casamento arranjado
pelas famílias, ela era parente de Racine, o grande poeta e autor teatral do
século XVII, ao lado de Corneille e Molière de quem foi amigo. Teve um filho
com a Marie, mas seu casamento não durou muito e ele se fixa em Paris em 1658,
aos 37 anos, portanto. A separação foi acontecendo aos poucos, segundo os
biógrafos. As dificuldades econômicas, (La Fontaine dispensara o cargo herdado
pelo pai, pois sua vocação era outra), parece terem contribuído bastante para a deterioração do
casamento. La Fontaine tinha um temperamento boêmio e apreciava a vida mundana.
“Ouvi dizer”... que depois do afastamento definitivo ele nunca mais procurou o
filho. Sua mulher teria dito que o marido vivia sonhando, e a tal ponto, que
parecia esquecer-se de que era casado.
Em
Paris, vai integrando ciclos literários e boêmios e encontrando “protetores” e
“protetoras”. Importante para o seu deslanchar foi Fouquet, Ministro das
Finanças de Luís XIV. Foi seu hóspede no castelo de Vaux-le-Viconte. Este
castelo é famoso até hoje, aberto a visitação. Foi esta construção que inspirou
o palácio de Versailles. Luís XIV quis superar seu Ministro que,
desestabilizado pelas intrigas de Colbert, (mais a inveja do rei), caiu e foi
encarcerado até seus últimos dias. É sabido que La Fontaine passou toda a
primeira noite de prisão do amigo e protetor perambulando do lado de fora, aos
prantos. Escreveu poemas dirigidos à misericórdia de Luís XIV. Em vão. É a
partir desta grande decepção que La Fontaine decide se dedicar às fábulas. Até
então, escrevera poemas, contos e comédias. A inveja do rei com relação a seu
Ministro, as manobras de Colbert, as hipocrisias e ódios na Corte encontraram
nas fábulas um modo pacífico de vingança. A amizade também era um valor caro ao
Poeta. Seu amigo de infância, desde os tempos de Châteu-Thierry, dirá depois de
sua morte, que La Fontaine foi a pessoa mais sincera que conheceu: jamais
mentira.
Esboçaremos
apenas uma noção esquemática do que são consideradas as Fábulas de La Fontaine.
A obra
constituída pelas fábulas foi publicada em três coletâneas com a supervisão do
Autor. Cada coletânea continha um número variável de Livros; e cada Livro, por
sua vez, incluía um número variável de fábulas. No total, são XII Livros. A primeira coletânea sai em 1668, englobando
os Livros do I ao VI, mais um Prefácio
e uma Vida de Esopo escritos por La
Fontaine. A segunda coletânea é
publicada em duas partes: a primeira, editada em 1678 (do Livro VII ao Livro
VIII); e a segunda, em 1679, (contendo os Livros IX, X e XI). A terceira
coletânea é editada em 1694 e contém as fábulas que integram o Livro XII. Este
último Livro deixa um pouco a fonte tradicional das fábulas inspirando-se nos
contos de Maquiavel e Boccacio. O último poema é um adeus de La Fontaine ao
mundo que morre no ano seguinte. E assim,
nosso Poeta, Fabulista, Filósofo, mundano e piedoso, contraditório,
inapreensível, independente, mutante e humano
muito humano La Fontaine foi criando e publicando, até o fim da sua vida,
seus 12 Livros para a nossa mais pura
felicidade.
Vamos às fábulas! Difícil é
selecionar apenas uma. Hoje escolhemos:
A menina e o Pote de leite (Livro VII, fábula 9)
Rosinha pôs na cabeça o pote de
Leite
Lembrando a figura do enfeite:
Vestido de chita, mascando capim,
Queria chegar à feira de São
Marcello.
Para caminhar mais ligeirinho,
Trocou o seu tamanco pelo chinelo.
Enquanto os passinhos engoliam a
estrada,
A cabecinha imaginava distraída:
Com o dinheiro da venda do Leite
compraria
Ovos para a chocadeira improvisada.
Há espaço lá fora e assim criaria
Umas robustas galinhas;
Se não for de todo voraz,
A raposa levará poucas peninhas
E sobrarão alguns vinténs para o
porco do Braz.
A engorda do bicho não pesa no
bolso;
Farei dele um campeão!
Com um pouco de esforço,
Se tornará o recordista da região!
Poderia vendê-lo obtendo um
reforço;
Já o vejo saltar no meio da
bicharada.
Neste instante, Rosinha dá uma
topada,
Absorta que estava com seus
devaneios:
Toda fortuna foi assim derramada
E ela ainda corre o risco de ser
surrada
Pelo marido, coitada!
Que
duendes fazem no espírito tal campanha?
Quem
já não construiu castelos na Espanha?
Alceu,
Madalena, Rosinha... para citar poucos.
Tantos
sábios e tantos loucos!
Sonhamos
acordados, recebemos louros;
A
vaidade atiça nossos arroubos;
Todos
os bens do mundo são nossos tesouros;
Todas
as honrarias, todas as conquistas.
Sozinho
minha arte supera Arrau!
Em
meus delírios arrebato o Municipal:
Bis,
aplausos, cumprimentos no camarim,
Luzes,
ribaltas, emoções estonteantes...
Um
tropeço e volto para dentro de mim.
Retorno
ao mesmo João Ninguém de antes.
Fontes: La Fontaine, Œuvres Complètes, I, Fables Contes et Nouvelles,
Ed. Gallimard, Paris, 1991;
Collection Littéraire Lagarde & Michard, XVIIe siècle, Bordas, Paris,1962;
documentário dedicado a La Fontaine no quadro de programas
Trésors du Patrimoine exibido pela TV5 Monde, 2019.
________________________________________________________________________________________
Sobre a autora: Beatriz Coelho
Sou mesmo é multifacetada.
Em Paris, fiz mestrado em
Sociologia.
Lá, me casei e tive a primeira
cria.
De volta ao Brasil, a Vida fez
arrelia.
Abandonei a Sociologia.
Consacrei-me aos amores da
minha família.
Mas as letrinhas faziam uma
falta danada.
Estava meio despetalada.
Escrevi Cadernos do Silêncio com vírgulas
E de La Fontaine traduzi as
Fábulas.
Querida!Que surpresa linda!Será que agora,sai o nosso encontro?Gostaria muito de ouvi-la para aprender.💋💋💐
ResponderExcluirAguardando a próxima fábula!
ResponderExcluirQue lindo testemunhar suas pazes com as letrinhas. Fiquei emocionado. Lindo demais.
ResponderExcluirObrigada Mário. Belo trabalho criando a página Horácio Coelho, nosso avô. Vou tentar juntar minhas lembranças pra enviar a vc.
ResponderExcluir