Por Silvia Quaresma
Alguns
relatos direcionam o aparecimento do primeiro bordado na era pré-histórica,
onde se usavam agulhas feitas com ossos e fio de fibras ou tripas de animais.
Seria esta a primeira forma de colocar o tempo lado a lado com a técnica
milenar.
O
tempo de um trabalho desta natureza, porém, não pode ser contabilizado
utilizando uma fórmula específica pois não é um simples ir e vir de uma agulha. É um mergulho fora do Cronos. Carrega em si
o período de execução, todo o seu significado e um lugar fora do tempo, onde é
resgatado a ancestralidade numa tradição que confere sentido ao passado à
medida que se cria o presente.
O
bordado representa um olhar para um lugar esquecido, mas vivo na memória de
quem o usa para referência e interpretações quando são passadas de uma mulher a
outra por muitas gerações. É exatamente por isso que não é possível passar pura
e simplesmente por um grupo de bordado sem notar seu forte apelo terapêutico.
Para citar como exemplo, tenho participado de um grupo que resolveu unir bordado e literatura, mais especificamente Marina Colassanti e fios. O grupo julgou ser possível não ter nenhuma reação com este contato tão singular.
Para
mim, o ato de bordar é uma manifestação de poder, de mostrar preferências,
desvarios, trazer incomodo. E quando aliado a um conto que traz a provocação
como enredo o trabalho será a representação de como nossos olhos, emoção
encaram a vida. Como resultado, o contato com o conto, fios e o simples ato de
bordar, escolher cores, criar texturas levou o grupo a experimentar sensações
intensas.
Em
Arteterapia, o fio é usado como recurso expressivo e o bordado como possível
aplicabilidade como abordado por Philippini:
Os
mecanismos operacionais do bordado em relação à costura são mais complexos,
pois cada ponto de bordado, com sua forma especifica, requer também ritmos e
uma sequência de movimentos mais complexos que na costura. Alguns bordados
resultam em efeitos semelhantes à pintura, e outros oferecem a possibilidade de
assinalar com clareza as distorções entre figura e fundo, criando também
texturas e relevos.” (PHILIPPINI, 2018, p.67).
Usada
com recurso arteterapêutico, a literatura é capaz de trazer sensibilização
intensa e profunda; capaz de emocionar, encantar e até amedrontar. Existe um mundo além do nosso que é alcançado
por ela.
Trago
o conto por um fio quando aceito a provocação de transposição de linguagem:
“Modesto drama em dois atos:
Personagens
Uma plantinha quase seca, lutando
bravamente para sobreviver na terra árida.
Uma pessoa bem-intencionada, vinda de
um país muito verde.
Primeiro ato:
A pessoa se abaixa para observar a
plantinha de perto. Penalizada, descalça com cuidado as raízes arrancando-as
daquele chão avaro. Com a planta na palma da mão, sai de cena rumo ao seu hotel
Segundo ato:
No banheiro branco e fresco, a pessoa
mergulha raízes e caule num copo cheio de água.
A imóvel enxurrada é excessiva para as
forças da planta que só conhece secura. Extingue-se entre azulejos sua tênue
vida”
(COLASANTI, 2012, P.213)
A
princípio pensei ser possível passar pela leitura sem me envolver. Questões
singulares apareceram só com esta ação: o quanto partimos para o auxílio sem a
devida solicitação e autorização? E o pior, como podemos simplesmente agir sem
perceber a nossa intervenção cega e equivocada?
Ao
colocar o fio na agulha para o trabalho têxtil proposto novos insights: a
aridez que observo é a que conheço e com a qual não sei lidar? Consigo ver a
força, o equilíbrio no outro ou simplesmente o afogo no que acho bom para mim?
E
fica para o leitor a seguinte provocação: o conto lido é o mesmo conto por um
fio?
Sigamos
alinhavando pensamentos, traçando caminhos e nas tramas de uma existência
repleta de perguntas, refletindo se o ato ancestral de trabalhar com o fio não
é exatamente o fio condutor para a nossa salvação.
Bibliografia
COLASANTI, M. Hora de alimentar serpentes. São Paulo: Global Editora, 2012.
PHILIPPINI.
A Linguagens e Materiais expressivos em
Arteterapia: uso, indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak. 2018.
Sobre a autora: Silvia A.S.Quaresma
Arteterapeuta
AATESP 665/0720
Graduada em Letras,
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema - SP
Pós-Graduada em
Finanças, Ibmec - SP
Pós-Graduada em
Arteterapia e Criatividade – Instituto Freedom – Faculdade Vicentina em
parceria com NAPE
Professora
especialista de artesanato
Idealizadora do Projeto
Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia
Idealizadora Othila
Arteterapia em ação (@othila.arteterapia)
Idealizado do Fio que
sente (@fioquesente)
Coordenadora de
Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários
Atendimento em
Arteterapia (individual e grupos)
Que texto incrivel! De verdade, o bordado é um ato de poder, é um desvalador de sentimentos, um ponto de resistência e persistência ! Parabéns! Tânia Moreira - @caminhartes.arteterapia
ResponderExcluirObrigada Tânia. O fio é um condutor potente de emoções.
ResponderExcluirSílvia querida! Que texto ma-ra-vi-lho-so... você borda com maestria e criatividade a palavra, a arte e o tecer. Sua escrita é um belo exemplo de como um fazer arteteapêutico mediado pela imaginação e pela arte do bordar pode nos levar e elevar para outros mundos! Parabéns
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