Páginas

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O CONTO POR UM FIO

Por Silvia Quaresma

othila.arteterapia@gmail.com

Alguns relatos direcionam o aparecimento do primeiro bordado na era pré-histórica, onde se usavam agulhas feitas com ossos e fio de fibras ou tripas de animais. Seria esta a primeira forma de colocar o tempo lado a lado com a técnica milenar.

O tempo de um trabalho desta natureza, porém, não pode ser contabilizado utilizando uma fórmula específica pois não é um simples ir e vir de uma agulha.   É um mergulho fora do Cronos. Carrega em si o período de execução, todo o seu significado e um lugar fora do tempo, onde é resgatado a ancestralidade numa tradição que confere sentido ao passado à medida que se cria o presente.

O bordado representa um olhar para um lugar esquecido, mas vivo na memória de quem o usa para referência e interpretações quando são passadas de uma mulher a outra por muitas gerações. É exatamente por isso que não é possível passar pura e simplesmente por um grupo de bordado sem notar seu forte apelo terapêutico.

Para citar como exemplo, tenho participado de um grupo que resolveu unir bordado e literatura, mais especificamente Marina Colassanti e fios. O grupo julgou ser possível não ter nenhuma reação com este contato tão singular. 

Para mim, o ato de bordar é uma manifestação de poder, de mostrar preferências, desvarios, trazer incomodo. E quando aliado a um conto que traz a provocação como enredo o trabalho será a representação de como nossos olhos, emoção encaram a vida. Como resultado, o contato com o conto, fios e o simples ato de bordar, escolher cores, criar texturas levou o grupo a experimentar sensações intensas.

Em Arteterapia, o fio é usado como recurso expressivo e o bordado como possível aplicabilidade como abordado por Philippini:

 

Os mecanismos operacionais do bordado em relação à costura são mais complexos, pois cada ponto de bordado, com sua forma especifica, requer também ritmos e uma sequência de movimentos mais complexos que na costura. Alguns bordados resultam em efeitos semelhantes à pintura, e outros oferecem a possibilidade de assinalar com clareza as distorções entre figura e fundo, criando também texturas e relevos.” (PHILIPPINI, 2018, p.67).

 

Usada com recurso arteterapêutico, a literatura é capaz de trazer sensibilização intensa e profunda; capaz de emocionar, encantar e até amedrontar.  Existe um mundo além do nosso que é alcançado por ela.

Trago o conto por um fio quando aceito a provocação de transposição de linguagem:

“Modesto drama em dois atos:

Personagens

Uma plantinha quase seca, lutando bravamente para sobreviver na terra árida.

Uma pessoa bem-intencionada, vinda de um país muito verde.

Primeiro ato:

A pessoa se abaixa para observar a plantinha de perto. Penalizada, descalça com cuidado as raízes arrancando-as daquele chão avaro. Com a planta na palma da mão, sai de cena rumo ao seu hotel

Segundo ato:

No banheiro branco e fresco, a pessoa mergulha raízes e caule num copo cheio de água.

A imóvel enxurrada é excessiva para as forças da planta que só conhece secura. Extingue-se entre azulejos sua tênue vida”

(COLASANTI, 2012, P.213)



A princípio pensei ser possível passar pela leitura sem me envolver. Questões singulares apareceram só com esta ação: o quanto partimos para o auxílio sem a devida solicitação e autorização? E o pior, como podemos simplesmente agir sem perceber a nossa intervenção cega e equivocada?

Ao colocar o fio na agulha para o trabalho têxtil proposto novos insights: a aridez que observo é a que conheço e com a qual não sei lidar? Consigo ver a força, o equilíbrio no outro ou simplesmente o afogo no que acho bom para mim?

E fica para o leitor a seguinte provocação: o conto lido é o mesmo conto por um fio?

Sigamos alinhavando pensamentos, traçando caminhos e nas tramas de uma existência repleta de perguntas, refletindo se o ato ancestral de trabalhar com o fio não é exatamente o fio condutor para a nossa salvação.

 

Bibliografia

COLASANTI, M. Hora de alimentar serpentes. São Paulo: Global Editora, 2012. 

PHILIPPINI. A Linguagens e Materiais expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades.  Rio de Janeiro: Wak. 2018.

_________________________________________________________________________ 

Sobre a autora: Silvia A.S.Quaresma 

Arteterapeuta

AATESP 665/0720

Graduada em Letras, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema - SP

Pós-Graduada em Finanças, Ibmec - SP

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade – Instituto Freedom – Faculdade Vicentina em parceria com NAPE

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora Othila Arteterapia em ação (@othila.arteterapia)

Idealizado do Fio que sente (@fioquesente)

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento em Arteterapia (individual e grupos)



3 comentários:

  1. Que texto incrivel! De verdade, o bordado é um ato de poder, é um desvalador de sentimentos, um ponto de resistência e persistência ! Parabéns! Tânia Moreira - @caminhartes.arteterapia

    ResponderExcluir
  2. Obrigada Tânia. O fio é um condutor potente de emoções.

    ResponderExcluir
  3. Sílvia querida! Que texto ma-ra-vi-lho-so... você borda com maestria e criatividade a palavra, a arte e o tecer. Sua escrita é um belo exemplo de como um fazer arteteapêutico mediado pela imaginação e pela arte do bordar pode nos levar e elevar para outros mundos! Parabéns

    ResponderExcluir