segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

COMO RECONSTRUIR EM MEIO AO CAOS?: Relatos sobre uma oficina arteterapêutica




Mercedes Duarte - RJ
duarte.mercedes@gmail.com

Em uma oficina arteterapêutica - intitulada “Ordenando o caos”, em caráter experimental, em uma casa cedida por uma amiga, aplicada em um grupo de seis pessoas, em que cinco eram artistas, sendo a maioria parte da faixa etária de cinquenta a setenta anos, contando apenas com um jovem - trabalhei inspirada em textos[1] e em uma aula, ministrada no curso de arteterapia do Espaço Terapêutico Psi, sobre o Dadaísmo, da arteterapeuta Eliana Moraes.
 
O Dadaísmo (1916)[2] se define por um movimento artístico de vanguarda de cunho político. Ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial, o movimento é criado por um grupo de artistas e intelectuais, fundadores do Cabaret Voltaire (Zurique), em uma época em que a noção de racionalidade humana havia se esgarçado. Desde o Iluminismo, o Ocidente acreditou que a razão levaria as sociedades e indivíduos a um elevado grau de desenvolvimento, em que a felicidade humana seria plena (GIANNETTI, 2002). Entretanto, especialmente com a culminação das guerras, essas expectativas viram-se frustradas. Desse modo, os valores vigentes passaram a ser questionados, e muitas vezes combatidos, incluindo as noções estéticas e artísticas correntes.

O Dadaísmo surge como um sopro de destruição aos padrões do que era considerado arte. Pressupunha a expressão do caos, da desordem, da destruição, do absurdo e da irracionalidade. Contra o capitalismo, os valores burgueses, o consumismo - que representavam uma ordem social fracassada, erguida sob a égide da racionalidade - seus poemas, performances, trabalhos plásticos, entre outras linguagens, exploravam o “automatismo”, o acaso, a espontaneidade e a irreverência (MARTINS, 1999; MORAES, 2018).

Em tempos em que a organização social parece desacreditada, expressar a destruição e o caos através da arte, e nesse caso, mediante a arteterapia, abre espaço para explorarmos novos sentidos e reordenamentos possíveis. É frequente nos sentirmos impotentes frente a opressões externas e desarranjos sociais. A arteterapia, portanto, pode ser uma ferramenta que nos encoraja a encontrar um lugar no mundo e a responsabilidade que nos cabe nele, mesmo que em nível de nossos afetos e trânsitos cotidianos. Responsabilizar-se, por aquilo que nos é possível, é encontrar potenciais de transformação em si mesmo, e diminuir o sentimento de impotência que leva ao imobilismo e ao aumento desenfreado de diagnósticos de depressão.


Na oficina em questão trabalhamos a destruição como acaso; o ato de destruir o que incomoda e de reconstruir/reconfigurar sentidos a partir dos devires da vida, ou, como disse Sartre (2012) em virtude da biografia de Saint Genet: a partir do que as pessoas fizeram de nós[1]. Sem dúvida tivemos distintas respostas evidenciadas nos trabalhos plásticos e nas falas que os sucedem. Entretanto, o que marcou a oficina, segundo minha leitura, foi certa dificuldade de alguns participantes reconfigurarem/reordenarem de forma ativa suas trajetórias após a “destruição”.

Levo aqui em consideração, especialmente, o fato de se tratar de pessoas que estão próximas ou já fazem parte da chamada terceira idade. Existe, como sabemos, uma série de questões que envolve esse período da vida. Em especial, no que toca a proposta da oficina, a sensação de exclusão social e de não pertencimento. No entanto, como aponta a Organização Mundial de Saúde (2017), a expectativa de vida aumenta ao longo das décadas, o que nos traz cada vez mais a necessidade de pensarmos modos de possibilitarmos a reintegração e sentimento de pertencimento dessa faixa etária. Mais uma vez, o trabalho arteterapêutico, que, entre outras coisas, lança mão da arte como “conscientizadora” e potencializadora de nossa ação no mundo, pode ser considerado uma ferramenta bastante útil.



O fato de alguns participantes terem tido dificuldades na ressignificação e/ou reorganização de seu “caos” não anula o poder do processo terapêutico. De acordo com Angela Philippini (1998) o uso da palavra, por exemplo, quando expressa a tomada de consciência dos processos terapêuticos, só acontece

algumas vezes anos depois, quando a energia psíquica tiver podido pouco a pouco, percorrer a “distância” que separa os processos psíquicos primários [que não passam pelo crivo da consciência], dos processos psíquicos secundários de elaboração simbólica. De todo o modo (...) já terá o indivíduo vivenciado dentro de si, aquilo que efetivamente a arteterapia tem de mais benéfico e produtivo terapeuticamente, que é: expressar, configurar, e materializar conflitos e afetos, realizando um conjunto de atos que podemos designar genericamente como: “O FAZER TERAPÊUTICO” (1998, s/n).
        
 É esse “fazer terapêutico”, mencionado por Philippini (1998), que pode nos munir de força criadora para transformar a realidade que nos cabe. Já o trabalho arteterapêutico em grupo tem a particularidade de mobilizar redes, afetos e espelhos. Um dos relatos mais comoventes da oficina, que envolvia a maior parte dos participantes que eram atores, foi sobre o quanto o fechamento de um teatro onde atuavam estava afetando o participante. Esse relato/revelação comoveu a todos que estavam implicados na situação, promovendo acolhimento, solidariedade e desejo de enfretamento da situação. 

De acordo com Ligia Diniz, no processo de maturidade

várias etapas precisam ser percorridas e elas vão desde a preocupação meramente egóica até um outro patamar que implica na abertura para o social e transcendente. Tendo reconhecido seu valor pessoal e tendo se apropriado de sua própria luz, o homem pode, então colocá-lo a serviço de um benefício coletivo. (...) Confrontando-se com aspectos esquecidos do eu, relacionando-se com as perdas inevitáveis ao longo da jornada, mergulhando no inconsciente, encarando a própria sombra, o ser humano é capaz de corrigir rotas e transcender (p.113).

Obviamente que não existem fórmulas fáceis para lidarmos com as opressões externas e com aquilo que elas nos causam. Mas elaborar maneiras de construirmos caminhos alternativos, mesmo que pouco expressivos aos olhos alheios, é um alento, e é possível quando estamos atentos ao nosso lugar no mundo, e encontramos e produzimos meios de expressão, integração e solidariedade. Que consigamos então produzir mais arte terapêutica e construir mais teatros, nas ruas, nas casas, nas vilas e nas favelas.  






[1] Ver nas referências livro de Eliana Moraes.
[2]  Seu manifesto, escrito pelo poeta romeno Tristan Tzara (1896-1963), data de 1918, quando alcançou maior visibilidade.

[3] Nesse contexto podemos substituir a palavra “pessoas” por “vida”. O fragmento sartreano completo, largamente citado, é: “o importante não é o que as pessoas fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que elas fizeram de nós” (SARTRE, 2012, p.49, tradução nossa).  

Referências Bibliográficas:

DINIZ, Ligia. Espiritualidade e Arte Terapia. Arte Terapia: Coleção Imagens da Transformação.  vol. 10, nº 10. Rio de Janeiro: Pomar, 2003.

GIANNETTI, Eduardo. Felicidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MARTINS, Ana Maria Pina. Movimento Dada: O banal e o indizível. Análise Psicológica [online], vol. 17, nº 4, pp. 723-726. Lisboa, 1999.

MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia. Divino de São Lourenço: Semente Editorial, 2018.

OPAS/OMS Brasil. Expectativa de vida aumenta para 75 anos nas Américas. 2017.
Disponível em:

PHILIPPINI, Angela. Imagens da Transformação. Coleção de Revistas de Arteterapia. Vol. 5. Rio de Janeiro: Pomar, 1998.

SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet: actor and martyr. Traduzido por Bernard Frechtman. University of Minnesota: Press edition, 2012.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte




Socióloga/ Mestre em Ciências Sociais/ Arteterapeuta em Formação


Um comentário:

  1. Texto sensacional e atividade muito interessante, complementada por uma análise muito consciente. Parabéns!

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