segunda-feira, 17 de maio de 2021

GRUPO QUIRON: Um relato de caso

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

 

Neste período de pouco mais de um ano de práticas arteterapêtuicas online, sem dúvida, uma das experiências que mais tem me marcado é sustentar o “Grupo Quíron: encontros com o curador ferido”. Este projeto nasceu no início da pandemia, em diálogo com minha grande parceira Regina Célia Rasmussen, do Espaço Crisântemo - SP. Esta parceria que nasceu em tempos de encontros presenciais, ganhou novos territórios quando nos demos as mãos e decidimos nos lançar aos enfrentamentos das práticas online.

Nossa escuta esteve atenta aos arteterapeutas que compartilhavam conosco a intensa demanda diante de um social em caos e sofrimento, mas ao mesmo tempo eles próprios necessitados de acolhimento e reabastecimento para retornarem ao seu ofício. Neste sentido lembrei-me do mito de Quíron, um centauro que em determinado momento de sua história, é ferido por uma flecha envenenada de seu grande amigo Hércules. QuÍron era um ser imortal, mas como o ferimento não poderia ser curado, passou a sentir dores terríveis. E justamente ao reconhecer-se vulnerável, por reconhecer suas próprias feridas e sofrimento, fez-se empático e compreensivo à dor do outro, tornando-se assim o curador ferido.

Uma das aplicabilidades para este mito se dá ao entendermos que Quíron é o mito do terapeuta: um ser que possui uma escuta empática e sensível à dor do outro e que se dedica à sua “cura”, justamente porque reconhece suas próprias feridas e sofrimento. A partir dessa consciência de si, torna-se tão importante que o terapeuta reconheça sua própria necessidade de cuidado:

 

Mas... no contexto de um equilíbrio dinâmico de cuidados, reflete a capacidade do terapeuta de cuidar de si, além de permitir-se também ser cuidado pelos outros. ‘... A mutualidade nos cuidados é um dos mais fundamentais princípios éticos...’ (FIGUEIREDO, 2009, p.141)

O terapeuta capaz de assim proceder renuncia a onipotência, alcança a necessidade de humildade assentada na consciência da própria precariedade, da finitude e dos limites, podendo então ser empático ao sofrimento do paciente, já que é também humano. O terapeuta sabe que é também peregrino e encontra-se em travessia. (CARDELLA, 2020, p 61) 

Nosso Grupo Quíron se constitui como um grupo oferecido para arteterapeutas e estudantes que desejam fazer um recorte no tempo e no espaço para beberem da própria fonte: a arte. É um grupo aberto no sentido de que a participação dos terapeutas ocorre de acordo com sua disponibilidade e a cada encontro novos inscritos podem participar. Entretanto, para receber os contatos, ouvir de forma acolhedora e fazer uma triagem atenta dos participantes que condizem com nosso público alvo, conto com Regina, meu braço direito nesta empreitada.

Da mesma forma, a programação é aberta, com temáticas abordadas independentes entre si, colaborando assim para a flexibilidade de participação dos experienciadores. Estes encontros acontecem uma vez a cada três semanas.

Nosso objetivo primeiro era proporcionar um tempo e espaço para que os terapeutas se permitissem o retirar das personas de profissionais e estudantes, para que fizessem um contato consigo mesmo, com sua alma, e através de seus processos criativos e produção de imagens pessoais, pudessem se reenergizar. A ideia era que, mesmo estando cada um em seu espaço geográfico e em um processo criativo individual, a presença do afeto catalizador circulasse entre nós, partindo de uma sensibilização ao qual nos imaginávamos em uma grande roda.

Com esta configuração tão aberta e flexível, não tínhamos grandes expectativas quanto à formação de um vínculo grupal tão sólido. Entretanto para a nossa surpresa, um dos feedbacks que recebemos foi a sensação de que a experiência grupal estava fazendo a diferença para os participantes. A possibilidade de dividirmos em grupos de três ou quatro pessoas no momento do compartilhamento, proporcionou o encontro de pessoas tão distantes geograficamente mas tão perto em desejo de troca. Ou ainda, o reencontro de pessoas que já se conheciam, mas que impedidas pelo isolamento social, estavam há tempos sem se verem. Após alguns meses de encontros regulares, pudemos ouvir que o Grupo Quíron proporcionava a sensação de pertencimento para aqueles que tiveram a oportunidade de participar com regularidade.

A necessidade de pertencimento é um dos temas que tem me atravessado nos últimos tempos e encontrei eco nas palavras de Beatriz Cardella:

Na clínica isto significa que o terapeuta precisará reconhecer as necessidades fundamentais da dignidade humana que constituem o Ethos, como por exemplo: a hospitalidade, o pertencimento, o reconhecimento, a singularidade, a criatividade, a responsabilidade, a transcendência, entre outras. (CARDELLA, 2020, p 52)

 O Grupo Quíron que nasceu em julho de 2020, já conta com quinze encontros, tendo recebido em torno de oitenta terapeutas. Nossa rede afetiva tem crescido de tal forma que decidimos estender este espaço para uma segunda turma, agora no horário noturno. Nosso desejo é que esta rede de acolhimento e reabastecimento mútuo se solidifique cada vez mais e se estenda a outros terapeutas que necessitem deste equilíbrio dinâmico de cuidados.

 

Referência bibliográfica:

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. De volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica contemporânea. 2ª edição. 2020

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Sobre a autora: Eliana Moraes 

Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra" 

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