domingo, 13 de setembro de 2020

REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA CRIATIVA



Por Eliana Moraes (MG) RJ

naopalavra@gmail.com 

A escrita criativa sempre fez parte do meu repertório como arteterapeuta, mas confesso que ainda em um lugar coadjuvante. Hoje me recordo com mais atenção, um diálogo que tive no ano passado com uma arteterapeuta advinda do campo da literatura, que indagava sobre a primazia das artes visuais nas práticas arteterapêuticas e a falta de propostas criativas em que a escrita apareceria como prática protagonista. 

Até que em 2020 fomos convidados a nos reinventar em tantos aspectos, dentre eles quanto às práticas arteterapêuticas online e neste cenário a escrita criativa tomou o seu lugar de destaque. Tenho lançado mão cada vez mais deste recurso e hoje compartilho algumas reflexões teóricas e práticas sobre o tema. 

Inicialmente vale destacar que a escrita criativa é um termo mais amplo, que se diferencia da escrita criativa terapêutica. Esta sim, encaminhada para um processo de autoconhecimento, tomadas de consciência e apropriação de conteúdos psíquicos singulares. Vale diferenciar também a escrita criativa da escrita espontânea*, que vem como uma proposta associada à escrita automática dos surrealistas e portanto, à associação livre da psicanálise:

“A escrita automática libera as palavras do seu uso convencional. Como nos jogos de associação de ideias, é a aparência e a sonoridade de uma palavra o que determina a escolha de outra.” (BRADLEY, 25) 

Neste sentido, a escrita criativa terapêutica se mostra como uma proposta que convida o autor à um rebaixamento de consciência para uma expressão mais profunda, mas ainda no campo da palavra. De forma poética, Clarice Lispector descrevia esse processo como “escrever distraidamente”, quando escrevemos sem a preocupação com um sentido construído, um começo-meio-fim, ou com padrões literários.

A prática nos mostra que a migração da expressão verbal do oral para a escrita colabora para um deslocamento do discurso consciente do sujeito para novas associações e percepções de si. Desta forma, esta técnica é bem encaminhada quando o arteterapeuta entende que é necessário propor ao paciente uma nova forma de se expressar, dando um passo em direção à conteúdos inconscientes, mas ainda pisando o chão (seguro) da palavra.

Dentro do setting arteterapêutico costumo lançar mão desta proposta em seguida de estímulos projetivos disparadores como pinturas (destaque para as imagens oníricas surrealistas), músicas ou poesias. Estes estímulos são acessados do meu repertório como arteterapeuta, que é construído de forma contínua ao longo do meu caminho de contato e fruição das expressões artísticas. Deixo aqui meu encorajamento para que cada arteterapeuta construa seu próprio repertório a partir de suas próprias experiências. 

Sendo a linguagem verbal a mais consciente, ela também é indicada para o caminho inverso, para momentos em que queremos colaborar para que o paciente tome consciência de si e seus conteúdos:

“Considero que a ‘escrita criativa’ tem uma importante função no processo arteterapêutico: escrever para compreender a si mesmo..., pois as palavras guardam em sua essência imagens diversas, que podem surgir em associações livres, produtos da singularidade e da subjetividade de cada um. E, neste contexto, palavras são fontes geradoras, fornecem o fio de Ariadne para a saída de labirintos e são matéria-prima para significativas transformações psíquicas.” (PHILIPPINI, p 111)

Neste sentido, sempre utilizo a escrita como recurso, quando um paciente termina sua obra, colaborando para a elaboração de um processo tão vivido em sua potência e intuição. Trazer para as palavras o percurso de uma criação e sua composição final, se faz como a última etapa para a tomada e integração à consciência dos conteúdos psíquicos acessados (dentro do que é possível para aquele sujeito). Neste contexto, a escrita também colabora para o registro das memórias deste processo para que em um momento posterior em que for retomado aquele trabalho, não nos falte a descrição tão clara do que foi vivido, em “detalhes” que nossa memória pode falhar.  

Entretanto, desde que adentramos aos atendimentos online tenho dispensado um pouco mais de atenção para a prática da escrita criativa como técnica protagonista da vivência devido à facilidade deste recurso em termos materiais, mas sobretudo por seu potencial de “dar forma” aos conteúdos psíquicos em busca de elaboração. E aqui utilizamos Fayga Ostrower como referência, quando nos diz que:

“... criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa. Sejam quais forem os modos e os meios, ao se criar algo, sempre se o ordena e se o configura... no sentido amplo em que aqui é compreendida a forma, isto é, com uma estruturação, não restrita á imagem visual.” (OSTROWER, p 5)

Sendo assim, consideramos que escrever é dar uma forma àquilo que se apresenta ainda sem forma, não compreendido, não elaborado, não nomeado. E este exercício é estruturante e organizador. Vale ressaltar sê-lo bastante pertinente em um momento tão instável, cheio de desconstruções e reconstruções, com fechamentos de ciclos para início de outros, movimentos tão presentes do fenômeno coletivo ao qual estamos inseridos e ainda no meio de sua travessia.  

Lembro aqui que meu próprio processo com a escrita neste blog se deu justamente por estar afogada em meus pensamentos, reflexões e hipóteses e a escrita me serviu (e ainda serve) de recurso organizador de tantos conteúdos que povoam meus pensamentos e se eu assim os deixar, me perco de mim.

Concluindo este texto, mas longe de esgotar este assunto tão rico, com a fala de Raissa Andrade sintetizo minhas reflexões:

“A Arteterapia também utiliza-se da escrita livre. A pessoa, ao escrever, é instruída a não se preocupar com sincronicidade, erro ortográfico, lógica ou ordem cronológica e a não se auto censurar. Basta escrever de forma automática, sem reler por algum tempo, deixar que a transposição pensamento/papel flua naturalmente. A utilização da escrita e/ou da fala após a produção artística liga o consciente e o inconsciente. Aciona o hemisfério direito do cérebro. Essa escrita surge sob o impulso e a intuição. É a elaboração final de um processo criativo bastante denso. Os próprios sentimentos são utilizados para uma nova forma de leitura de si mesmo, ocorrendo a sensação de integração cósmica.” (ANDRADE, 197)

 

* Estas diferenciações aprendi com os professores Celso Falaschi e Lara Scalise na live da AATESP sobre escrita criativa terapêutica, disponível no youtube. 

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Raissa Guimarães de. “Luto na maioridade”. In: “Criatividade e envelhecimento”  Celso Falaschi; Otília Rosângela Souza (org). Ed Labour, Campinas, 2017.

BRADLEY, Fiona. Surrealismo: Movimentos da Arte Moderna. Ed Cosac Naify, SP, 2014.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2014.

PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: Uso, indicações e propriedades. Ed Wak, Rio de Janeiro, 2013

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

6 comentários:

  1. Eliana,
    Ao ler seu texto fiquei pensando: escrita criativa, escrita espontânea, escrita automática, escrita criativa terapêutica, escrita distraída, escrita livre, escrita após a atividade, escrita para organizar, escrita para esvaziar a cabeça, escrita para guardar memórias, escrita pela escrita, escrita que precisa ser escrita.
    Parabéns por mais um texto com tanto conteúdo!
    E aproveito para deixar aqui o meu agradecimento por me incentivar a iniciar a minha escrita, e por aqui neste blog. A minha escrita que está criando as minhas memórias!
    Muito obrigada!
    Bjs, Claudia Abe

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  2. Oi Eliana, primeiramente quero lhe dizer o quanto me sinto lisonjeada a menção dada para a live da Aatesp onde estive com o Celso, fico muito feliz . E também dar os parabéns para o seu texto que trás a escrita criativa terapêutica com muita propriedade. Obrigada novamente bjsssss Lara.

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  3. Parabéns, Eliana! Como sempre seus tex-
    tos e suas palavras ampliam e ressignificam o "ser e fazer-se arteterapeuta". Preciso, claro e muito bem fundamentado, amplia a nossa roda criativa. Muito bom estarmos juntas nesse caminhar e... que venham outros! Beijos floridos Lídia

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  4. Mais um texto rico e cheio de setas indicativas e encorajadoras para lançarmos mão de mais um recurso terapêutico. Obrigada, Eliana por mais está instrução e indicação! Parabéns pelo texto!

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  5. Perdi-me nos "espaços das escritas" e me reencontrarei ao escolher uma das escritas sugeridas neste texto ricamente elaborado , e com certeza escreverei. Obrigada Eliane.

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