segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

REDE, ENRAIZAMENTO E PERTENCIMENTO AO ARTETERAPEUTA: FECHANDO 2022

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

@naopalavra 

Chegamos ao fim de mais um ciclo. 2022, desde seu início, já dava sinais de que seria um ano bastante desafiador em seus movimentos de extroversão – retomada progressiva de atividades externas e presenciais – e consequentemente desafiador quanto às relações interpessoais, somando-se ao cenário hostil e polarizado no campo coletivo. 

Sustentar-se estruturado em meio ao caos externo através dos “Auto e Heterossuportes” (Gestalt Terapia) e de plena posse de sua “Liberdade Interior” (Logoterapia) foi para mim um mote orietador nos espaços terapêuticos individuais e grupais que coordeno. 

Uma atenção especial foi direcionada para a sustentação do arteterapeuta. Consciente de que o este está altamente demandado em seu ofício devido à grande busca por ajuda pela saúde psíquica, acredito que ele também precisa ser sustentado em uma rede de suporte. Neste sentido, encontrei eco nas palavras de Beatriz Cardella:

 

O terapeuta anfitrião tem consciência de que é também, hóspede…

O terapeuta é também peregrino, pois está de passagem, em viagem, em travessia, em peregrinação.

Embora anfitrião, tem consciência de que é Inquilino, pois não detém a posse da terra e da morada… Terapeuta e paciente são ambos convidados da vida que lhes é ofertada. (CARDELLA, 2020, 65) 

No livro “De volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica contemporânea” Beatriz defende que dentre as necessidades fundamentais da dignidade humana encontra-se a hospitalidade, o pertencimento e o reconhecimento. Sendo o terapeuta também peregrino na travessia da vida, também possui sua necessidade de pertencimento, e este pode ser encontrado no grupo de estudos, em suas diversas modalidades:

 

As necessidades de pertencimento e inclusão são necessidades fundamentais da pessoa humana, dando sentido ao papel dos Grupos de Estudos e Pertencimento não só como possibilidade de ampliação  e aprofundamento do conhecimento em Psicoterapia, mas de troca viva de experiências entre psicoterapeutas, cujo ofício é caracterizado por uma solidão decorrente do imperativo ético do sigilo profissional. (CARDELLA, 2020,271) 



Cada vez mais tenho considerado a rede de arteterapeutas que frequentam os espaços do Não Palavra Arteterapia como um grande Grupo de Estudos com contornos mais flexíveis, porém, bastante ancorados no vínculo grupal. Ao longo de 2022, além de estudar juntos e trabalhar no desenvolvimento do raciocínio e manejo arteterapêutico, estabelecemos nosso campo como um território de pertencimento ao arteterapeuta, seja através das palestras teórico-vivenciais, do Grupo Quíron, das supervisões, das trocas espontâneas entre os participantes. Está claro que formamos um grupo, com todos os seus potenciais:

 

Há dimensões da experiência grupal que são incomunicáveis.

Torna-se fortalecimento das relações ao longo do tempo e do convívio, o clima de acolhimento, respeito e afeto que constituem a rede de sustentação que possibilita as experiências de pertencimento, inclusão e hospitalidade e a abertura para viver o risco de conhecer. (CARDELLA, 2020, 281) 

O primeiro espaço de compartilhamento gerado e sustentado pelo Não Palavra se deu com este blog e 2022 foi seu 9º ciclo de produção de textos em Arteterapia. Neste ano publicamos 42 textos de 14 autores: Milena Medeiros, Vera de Freitas, Mercedes Duarte, Isabel Pires, Claudia Abe, Tania Salete, Rosângela Nery, Silvia Quaresma, Simone Aguiar, Clara Abdo, Juliana Mello, Kátia Santos, Sheila Leite e Eliana Moraes. Toda gratidão a cada parceira que colaborou para que o blog se mantivesse ativo em mais um ano. Gratidão também à Regina Célia e Ana Paula que me ajudam a sustentar os eventos do Não Palavra. 

Hoje entramos de recesso para que possamos descansar, recarregar as energias e retomar os trabalhos de publicação de textos em 7 de fevereiro de 2023. 

E para fecharmos esse ano tão marcado por conflitos e atravessamentos relacionais, trago hoje a bela poesia de Rupi Kaur, poeta contemporânea indiano-canadense:  

“Acima de tudo ame
Como se fosse a única coisa que você sabe fazer
No fim do dia isso tudo
Não significa nada
Esta página
Onde você está
Seu diploma
Seu emprego
O dinheiro
Nada importa
Exceto o amor e a conexão entre as pessoas
Quem você amou
E com que profundidade você amou
Como você tocou as pessoas à sua volta
E quanto você se doou a elas.”
 


Referência: 

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. De volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica Contemporânea. Editora Amparo, SP. 2020

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O USO DO ORIGAMI NAS PRÁTICAS DA ARTETERAPIA

 



Por Eliana Moraes

naopalavra@gmail.com

@naopalavra 

Um dos enfoques do Não Palavra ao longo de 2022 foi produzir conteúdos que pudessem estimular e desenvolver a escuta arteterapêutica. Observo que um dos temas mais recorrentes em espaços de supervisão que sustendo giram em torno do uso das linguagens e materiais de forma consciente – entendendo que esta é uma das especificidades da prática arteterapêutica. De fato, este é um conteúdo  iniciado nos cursos de formação, porém impossível de ser esgotado nessa etapa. O estudo e aprofundamento da riqueza e pluralidade de possíveis recursos arteterapêuticos se dá de forma continuada, enquanto o arteterapeuta permanecer em atividade. 

Dessa forma, se faz muito importante que o arteterapeuta se mantenha em busca de novas experiências e experimentações, vivências e participação de ateliês variados. Um outro caminho também muito interessante se dá no diálogo e troca constante com nossa rede e parcerias de jornada. 

Foi assim que meu olhar foi despertado para a técnica do Origami, de forma mais atenta, em 2022. Foram alguns compartilhamentos de Isabel Pires, arteterapeuta do RJ e pertencente à rede Não Palavra, que me estimulou a estudar e experimentar mais desta técnica em minhas práticas arteterapêuticas individuais e grupais. 

Uma síntese do estudo de Isabel sobre o tema, foi registrado em texto anterior nesse blog (CLIQUE AQUI) e no mês de novembro oferecemos a palestra “O uso do origami nas práticas da Arteterapia” em parceria com o Espaço Crisântemo. 

O texto de hoje é um recorte da parte que me coube na palestra: a síntese das propriedades do Origami nas práticas arteterapêuticas. 

 


Inicialmente o Origami é uma técnica bastante facilitadora pois é feito com papel, um material extremamente cotidiano a nós. Este fato torna facilitador também para práticas criativas online, as quais dependemos dos materiais que o paciente/cliente possui em casa. Vale registrar que esta foi minha porta de entrada do despertar para o Origami. Como atualmente me estabeleci no atendimento online, permaneço em ativa, sempre em busca de atividades que sejam acessíveis à esta modalidade de atendimento. 

Todas as práticas criativas estimulam as quatro funções psíquicas junguianas. Entretanto, é possível pensarmos que na experiência do Origami, a Função Principal e o Pensamento e a Função Secundária, a Sensação. 

Esta é uma técnica construtora e estruturante. Proporciona, em seu processo, um desafio, coragem, persistência, paciência e autodisciplina, força de vontade, satisfação, autoestima. Muitas vezes acessa memórias afetivas e o contato com a criança interior, a imaginação e o divertimento. 

O Origami atualiza de forma bastante clara os dois pilares da Arteterapia: o processo e a imagem. O processo de sua construção informa sobre características comportamentais, emocionais e subjetivas do criador. Durante seu processo criativo o arteterapeuta deve exercer sua escuta específica, a escuta do agir: “O que seu paciente/cliente te conta sobre seu funcionamento ao longo do processo criativo do origami?” 

Através da imagem resultante é possível o aprofundamento em um símbolo e seus desdobramentos. O estímulo à ampliações simbólicas pode ser feito na  associação com outros materiais e linguagens e na passagem do bi para o tridimensional. 

O caminho para o tridimensional é mais uma rica propriedade do Origami, pois envolve o movimento de se ganhar volume, ainda que seja de forma intermediária. Por essa razão, lida com a percepção sensorial e com muitas variáveis como peso, equilíbrio, proporção, texturas... Por essa razão, é mobilizador e desafiador de movimentos físicos, cognitivos e psíquicos. 

Neste contexto, trabalha o pragmatismo, a busca de soluções e a “tentativa e erro”. E quando, de fato, tridimensional, proporciona o deslocamento do olhar para múltiplas perspectivas e outras percepções. 

Um dos grandes benefícios do Origami está no potencial de desenvolvimento cognitivo e afetivo, no público idoso e infantil, mas estendendo-se ao público aberto. 

Estimula a psicomotricidade,  coordenação motora,  estruturação e ordenação lógica e temporal. Desenvolve habilidades mentais, visualização espacial, raciocínio lógico, matemático geométrico,  abstrato e simbólico. 

Atua na prevenção de doenças do sistema nervoso ao estimular o crescimento de conexões neuronais mais complexas e a neuroplasticidade. Estimula funções cognitivas como: memória, atenção, concentração, as funções executivas e praxia. 

Acessa um estado meditativo, ao se trabalhar o equilíbrio, a harmonia mental, a atenção plena para o aqui e agora, o mindfulness. 



Entretanto, o processo do Origami também possui os seus potenciais de resistência. Pode ser um desafio para pessoas bastante ansiosas, com dificuldade de concentração e manejo com processos minuciosos.  É importante que o arteterapeuta atente-se para os graus de dificuldade de cada origami bem como a progressão dos desafios para cada experienciador, além de manter a constância de práticas para evolução paulatina dos desafios e experiências. 

Por fim, acredito que seja bastante orientador ao arteterapeuta ter em mente os “verbos” que cada processo criativo coloca seu paciente/cliente em ato, pois em Arteterapia entendemos que o que fazemos fora, estamos mobilizando por dentro. Alguns verbos que podemos citar no processo do Origami são: dobrar, desdobrar, virar, girar, vincar, marcar, encaixar, repetir, empurrar, pressionar, abrir, fechar. Dar forma, dar volume, levantar, construir, verticalizar, estruturar. Brincar. 

Encerro essa reflexão com um trecho do texto de Isabel Pires que nos faz um convite tão instigante:

 

A magia dessa transformação, através de movimentos precisos e cuidadosos de nossas mãos, num material simples e delicado como o papel, sempre nos surpreenderá como um truque de mágica bem-sucedido. E a beleza e engenhosidade das obras criadas sempre nos trarão encantamento.

 

Por isso, convido vocês, arteterapeutas, a levarem essa arte para o seu setting arteterapêutico e oferecer a seus pacientes/clientes a possibilidade de descobrir as infinitas e inesperadas formas escondidas numa simples folha de papel e ousar revelar essas formas em peças de delicada beleza e profundo simbolismo. (PIRES, 2022)

 

Referência: 

PIRES, Isabel. A ARTE DA DOBRADURA DE PAPEL: ORIGAMI E ARTETERAPIA. Blog Não Palavra, 2022. Disponível em: https://nao-palavra.blogspot.com/2022/04/a-arte-da-dobradura-de-papel-origami-e.html

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

A IMPORTÂNCIA DO ATELIÊ NA FORMAÇÃO CONTINUADA DO ARTETERAPEUTA – PARTE 2

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

@naopalavra

 

O texto de hoje dá continuidade ao texto anterior, que registra uma das temáticas que mais me debrucei no estudo e prática no segundo semestre de 2022: a prática criativa continuada por artetereapeutas em exercício da sua função. (Para ler o texto anterior CLIQUE AQUI)

O contato e a criação de intimidade com as materialidades inicia-se no curso de formação, na disciplina “Linguagens e materiais” e se estende a todas as vivências experienciadas em cada aula teórica-prática. Entretanto, percebemos um grande desafio ao arteterapeuta já formado, em permanecer com a sua criatividade pessoal como uma “chama acessa” diante da nova etapa, em seu percurso, de oferecer as materialidades ao outro.

A continuidade deste estudo teórico e prático é estrutural para a formação continuada do arteterapeuta, primeiramente porque é impossível se esgotar todo o conteúdo inserido neste tema, dentro do tempo disponível à disciplina “Linguagens e materiais”, dentro do curso de formação. Sempre é possível fazer contato e se aprofundar em uma nova materialidade, em diálogo com as demandas terapêuticas que o exercício da prática pode nos solicitar.

Mas também, é tão importante a prática criativa continuada, para que o arterterapeuta esteja o mais consciente possível de sua própria relação com os materiais, com os elementos visuais, processos criativos e símbolos recorrentes, para que assim se evite (dentro do possível) o fenômeno da contratransferência especifica do arteterapeuta: a projeção de si mesmo no processo criativo do outro, na escolha dos materiais, das temáticas, consignas terapêuticas e leituras simbólicas.

O estudo das materialidades não é suficiente apenas no campo teórico. É necessário vivenciá-las, experimentá-las em si mesmo, pois a Arteterapia começa na experiência do próprio arteterapeuta:

... o arteterapeuta deve estar sintonizado com o uso de técnicas as quais pretende utilizar. Não basta apenas aplicar como se estivesse seguindo um manual. Faz-se necessária uma reflexão anterior acerca do alcance da técnica desejada, como sendo uma decodificação dos materiais, tratando de encontrar na sua linguagem a possibilidade de sua expressividade...

É de fundamental relevância que o arteterapeuta tenha domínio da técnica a ser utilizada, bem como do domínio de alguns fundamentos acerca da utilização dos mesmos, a fim de estabelecer e objetivar a mobilização de conteúdos emocionais, com os quais esteja instrumentalizado para lidar. Convém ao arteterapeuta o conhecimento tanto de técnicas expressivas como de teorias psicológicas que levem em consideração o processo de formação de imagens e de construção das representações, como elementos fundamentais e essenciais ao domínio de sua “arte”... (URRUTIGARAY, 2011, 33-34)

Neste sentido, Maria Cristina Urrutigaray defende que para que o arteterapeuta desenvolva a sensibilidade necessária para que atue como um mediador entre seu paciente/cliente e os materiais, é necessário (dentre outros pontos) a participação de espaços que a autora chama de “oficinas laborais”:

A profunda relação pessoal do arteteapeuta com o material, a experiência adquirida pelo manusear e sentir na diversidade de textura, de estabilidade, de força, etc., vivida com diferentes modalidades plásticas, nos exercícios corporais, nas nuances sonoras, favorece o desenvolvimento de sua sensibilidade, tão necessária à sua atuação como mediador.

Assim, trabalhar com Arteterapia não se resume apenas à utilização de materiais diversificados mas também comporta um profundo trabalho de treinamento em conhecimentos psicológicos, filosóficos e artísticos, e em oficinas laborais, onde possam ser testadas as práticas que pretendem ser usadas, para organizá-las, compreendendo previamente os seus verdadeiros alcances. (URRUTIGARAY, 2011, 35-36)



Entendo que podemos considerar como “oficinas laborais” qualquer recorte no tempo e espaço ao qual o arteterapeuta possa proporcionar a si mesmo a experiência artística, em qualquer das modalidades existentes: se possível em seu processo terapêutico pessoal, em vivências arteterapêuticas amplamente oferecidas em nosso meio, de forma autônoma em seu próprio ateliê, mas também ateliês arteterapêuticos oferecidos diretamente para a experimentação das diversas linguagens e materiais e seu estudo aprofundado em suas propriedades e indicações terapêuticas.

É uma das especifididades da Arteterapia o estudo e o uso consciente dos materiais em suas propriedades e aplicabilidades. No campo da arte, Fayga Ostrower já nos sinaliza a existência das “sugestões” que cada matéria proporciona ao artista, causando-lhe alguma “empatia” (e por que não, também, antipatia?) de acordo com sua especificidade, e que ele a escolheria de acordo com suas referências interiores:

No trabalho, o homem intui. Age, transforma, configura, intuindo... Ao criar, ao receber sugestões da matéria que está sendo ordenada e se altera sob suas mãos, nesse processo configurador o indivíduo se vê diante de encruzilhadas. A todo instante, ele terá que se perguntar: sim ou não, falta algo, sigo, paro... Mas sobretudo, ele decidirá baseando-se numa empatia com a matéria... Procurando conhecer a especificidade do material, procurará... de acordo com seu próprio senso de ordenação interior e próprio equilíbrio. (OSTROWER, 2014, 70)

Desta forma, é função do arteterapeuta fazer a decodificação da demanda terapêutica e acionar o material mais adequado:

Todas as características dos materiais atingem diretamente quem usa, causando determinadas emoções que serão acolhidas na relação terapêutica. Entender essas características e as necessidades de cada pessoa é a chave para saber escolher o material adequado à situação. (BRASIL, 2013, 87-88)

Em minha prática como supervisora em Arteterapia já há alguns anos, e atualmente fazendo parte do corpo docente de algumas pós-graduações em Arteterapia, observo que esta é uma das dúvidas mais recorrentes “qual linguagem da arte ou material devo oferecer ao meu paciente em cada contexto?”. Neste sentido, tenho trabalhado com a expressão “o arteterapeuta como um promotor de encontros”:

Tenho pensado no arteterapeuta como um “promotor de encontros” entre o sujeito que fala e um material que será facilitador de seu discurso, da elaboração de conteúdos psíquicos e de retificações subjetivas a partir do ato criativo. Nesse sentido é estrutural que o arteterapeuta dedique-se a conhecer e aprofundar-se cada vez mais na riqueza e pluralidade de materiais passíveis de serem aplicados no setting arteterapêutico.

O arteterapeuta deve trabalhar com metáforas. Investir em apresentar para seu paciente/cliente a analogia entre a questão trazida por ele e aquele material. Sem o devido investimento na construção desse simbolismo, o paciente pode não compreender e não investir de si naquela criação, tornando o processo sem sentido e inócuo. A delicadeza e a destreza da construção das metáforas e analogias entre as questões subjetivas e os materiais expressivos vêm sendo dos pontos mais trabalhados em supervisões que ofereço para arteterapeutas em construção. (MORAES, 2020, 17)

Em processo de fechamento do ano de 2022, registro minha gratidão aos parceiros que colaboraram com as experiências de ateliês arteterapêuticos que ofereci e vivenciei no segundo semestre. Gratidão à Mariana Farcetta (Instituto FACES), Igor Capelatto (CEFAS), Vera de Freitas (em parceria com o Não Palavra) e Andréa Goulart de Carvalho (abrindo as portas de Belo Horizonte). Além de serem espaços de desenvolvimento de alunos e profissionais da Arteterapia quanto ao uso das materialidades, estes espaços contribuíram para minha própria prática criativa continuada – pois se a Arteterapia começa na experiência do próprio arteterapeuta, meu convite aos arteterapeutas às práticas criativas continuadas começa em mim.

 


Referências Bibliográficas:

BRASIL, CLAUDIA. Cores, formas e expressão: Emoção de lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana. Editora Wak, RJ. 2013.

MORAES, Eliana. Escritos em Arteterapia – Coletivo Não Palavra. Semente Editorial, ES. 2020.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Ed Vozes, Petrópolis / RJ, 2014.

URRUTIGARAY, Maria Cristina. Arteterapia: A transformação pessoal pelas imagens. Editora Wak, RJ. 5a edição. 2011.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
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Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

GRUPOS EM ARTETERAPIA E A PRÁTICA COMPARTILHADA



Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com 

Um dos temas que mais me mobilizarou ao longo de 2022 girou em torno das relações humanas. Este é um tema sempre presente na minha escuta clínica, ao longo dos meus quinze anos de prática profissional. Entretanto, acredito que nesse último ano, essa temática ganhou novos contornos devido aos movimentos coletivos que atravessamos. Minhas observações têm sido aquecidas por reportagens, entrevistas e podcasts que tenho pesquisado, e é possível observar um consenso de que o fenômeno de um país divido transborda para a divisão de casais, famílias, amigos e redes afetivas. Consequentemente, muitas das demandas terapêuticas da atualidade envolvem as relações humanas. 

Ao longo de todo o ano, estimulei que os arteterapeutas da minha rede trabalhassem as relações humanas em suas práticas, muito embasada pelas palavras de Beatriz Cardella:

 

Os sofrimentos humanos acontecem no entre, nos encontros e desencontros vividos ou nos encontros não acontecidos. A cura é também fenômeno do entre, concebida em Gestalt Terapia como a restauração da abertura, do ritmo, do fluxo, do diálogo, da criatividade, e dos laços que nos unem/diferenciam do outro, processo de crescimento, atualização e realização da singularidade.

A relação terapêutica pode ser a experiência matriz da abertura... (CARDELLA, 2020, p 103)

 

A cura em Gestalt Terapia, está intimamente ligada com relação, com restauração ou constituição do Diálogo. É o que chamamos de cura pelo Encontro...

O que cura na terapia é a relação em si, é o entre. É o “sou amado, logo existo”. (CARDELLA, 2020, p 119)

 

Conforme já compartilhado em texto anterior, no segundo semestre de 2022 elegi um livro para estudo e produção de conteúdo teóricos e práticos juntamente com a minha parceira, Vera de Freitas. Em “Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte”, Stephen Nachmanovitch reflete sobre diversos aspectos que envolvem a criatividade humana. E um de seus capítulos, denominado “A prática compartilhada”, muito me embasou para pensar como a Arteterapia pode contribuir de forma salutar frente ao fenômeno coletivo atual. 

No dia vinte e um de outubro de 2022, Vera e eu realizamos uma oficina no Instituto Venha Conosco – RJ, em duas turmas, que trazia para o campo vivencial a reflexão sobre o indivíduo e o coletivo. Vera compartilhou um registro desta experiência em texto anterior no blog (em 07/11/22) e no texto de hoje trago um fragmento de nosso embasamento teórico e reflexões inspiradoras. 


Contribuições da Arteterapia: a prática compartilhada
 

Já no início do capítulo, o autor nos descreve a beleza de dois músicos que se propõem a tocar juntos:

 

“A beleza de tocar junto com alguém é a possibilidade de encontrar a unidade...

Toco com um parceiro; ouvimos um ao outro, espelhamos um ao outro, estamos conectados com aquilo que ouvimos... Um abre a mente do outro como uma série infinita de caixas chinesas. Uma misteriosa comunicação flui de um para o outro com maior rapidez do que qualquer sinal que pudéssemos passar através do olhar ou do som. A música não nasce de um ou de outro, embora nossas idiossincrasias e nossos estilos, os sintomas de nossa natureza original, continuem exercendo a sua influência. A música também não nasce de um compromisso entre nós ou de um meio-termo (a média é sempre uma coisa tediosa!), mas de um terceiro elemento, que não é necessariamente igual ao que um ou outro de nós faria individualmente. O que brota é uma revelação para nós dois. Um terceiro estilo, totalmente novo, nos supera. É como se tivéssemos nos tornando um organismo grupal que tem uma natureza própria e um peculiar modo de ser, um elemento único e imprevisível, que é a personalidade ou o cérebro grupal.” (NACHMANOVITCH, 1990, 91) 

Para além da música, aqui o autor nos inspira sobre a beleza de criar com um outro, criar em parceria, o que gera uma nova consciênia e identidade grupal. Vale ressaltar que a dinâmica descrita pelo autor, através da qual nasce-se um elemento terceiro entre os sujeitos, dialoga com o conceito junguiano de função transcendente:

 

Esse é... o mais importante estágio do processo, a união dos opostos para a produção de um terceiro: a função transcendente...

 

“Da atividade do inconsciente, emerge, agora um novo conteúdo, constelado pela tese e pela antítese [a síntese] em igual medida, e que está em relação compensatória com ambas. Ela forma assim, um termo médio, no qual os opostos podem se unir.” (JUNG)

 

A função transcendente é, em sua essência, um aspecto da autorregulação da psique. Manifesta-se, tipicamente, de modo simbólico, e é experimentada como uma nova atitude em face a si mesmo e da vida. (SHARP, 1991, 75) 

Os processos criativos compartilhados, em sua beleza e profundidade, não se dão facilmente ou instantaneamente. Muita das vezes é um desafio, fonte de resistências, incômodos ou, na palavra utilizada por Nachmanovtch, irritação. Entretanto, esta seria, em contrapartida, uma fonte de inspiração:

 

Alguns trabalhos são grandes demais para que possamos dar conta deles sozinhos, ou simplesmente é mais divertido realizá-los com amigos. Qualquer que seja o caso, isso nos leva ao fértil e desafiador campo da colaboração. Quando trabalham juntos, os artistas exploram um outro aspecto do poder dos limites. Existe uma outra personalidade e um outro estilo que precisam ser absorvidos e contidos. Cada colaborador traz para o trabalho um conjunto diferente de forças e resistências. Cada um proporciona ao outro irritação e inspiração - o grão de areia com que ambos produzirão uma pérola.

Precisamos lembrar uma coisa óbvia, que no entanto nunca é demais reafirmar: personalidades diferentes têm estilos criativos diferentes. Não existe uma única ideia de criatividade capaz de descrevê-la na sua totalidade. Portanto, como em qualquer relacionamento, quando colaboramos com outros construímos um ser maior, uma criatividade mais versátil. (NACHMANOVITCH, 1990, 92) 

Em um capítulo anterior, chamado “O poder dos erros”, Nachmanovitch já havia utilizado como metáfora o grão de areia e a peróla para descrever a potente relação entre a irritação e a inspiração:

 

Todos sabemos como nascem as pérolas… Se a ostra tivesse mãos, não haveria pérolas. Como ela é obrigada a conviver com a irritação por um longo período de  tempo, a pérola se forma… Os erros e acidentes [o não controle] podem ser grãos de areia que se transformarão em pérolas; elas nos oferecem oportunidades imprevistas, são em si mesmos fontes frescas de inspiração. Aprendemos a considerer nossos obstáculos como ornamentos, oportunidades a serem aproveitadas e exploradas. (NACHMANOVITCH, 1990, 87) 

Neste sentido, o autor amplia sua percepção sobre os possíveis “obstáculos” que podem atravessar um processo criativo. Em “Prática Compartilhada”, ele defende que o outro pode servir como um grão de areia que poderá causar tamanha irritação, mas que obrigará o sujeito a sair de sua zona de conforto e desenvolver algo muito mais belo e valioso do que seria se pudesse se livrar de seu desconforto. 

Para o autor, a prática compartilhada tem o potencial de nos presentear com surpresas advindas do inconsciente, mas para isso, é necessário que o sujeito abra mão de seu controle e desenvolva a diciplina de uma escuta sutil e atenta ao seu parceiro de criação:

 

A realidade compartilhada que criamos nos oferece mais surpresas do que nosso trabalho individual.  Quando tocamos com outras pessoas, existe um risco real de cacofonia, cujo antídoto é a disciplina. Mas não precisa ser a disciplina do “vamos estabelecer uma estrutura de antemão”. Trata-se da disciplina da mútua consideração, da consciência do outro, de saber ouvir o outro e da disposição para a sutileza... Desistir de algum controle em favor de outra pessoa nos ensina a desistir de algum controle em favor do inconsciente. (NACHMANOVITCH, 1990, 93) 

Propostas arteterapêuticas grupais que envolvem práticas compartilhadas colocam os sujeitos em ato para que possam se deixar atravessar pela interferência/contribuição do outro. Mas, antes disso, mesmo em práticas individuais, mas vivenciadas na presença do outro, já torna-se possível a abertura de um campo para que haja uma troca e mobilização mútua entre os sujeitos:

 

Podemos experimentar esse fenômeno mesmo sem estarmos tocando, dançando ou representando em grupo. Para um escritor, por exemplo, as bibliotecas são ótimos lugares para se trabalhar, porque, embora as pessoas que nos cercam sejam totalmente estranhas e cada uma esteja fazendo o seu trabalho, o ritmo silencioso de pessoas trabalhando juntas aumenta a energia de cada uma para o trabalho. Sentimos que o sincronismo reforça nossa concentração e nosso compromisso de estar no trabalho…

Nossas mentes e nossos corações vibram no mesmo ritmo. (NACHMANOVITCH, 1990, 96) 




Concluindo 

As considerações tecidas por Nachmanovitch nos inspira à uma modalidade terapêutica tão própria da Arteterapia: a sustentação de grupos arteterapêuticos que, em especial, vivenciam práticas criativas compartilhadas, que possam lhe espelhar e desenvolver relacionamentos humanos mais salutares. Pois, segundo o autor:

 

O fazer artístico compartilhado é, em e por si mesmo, a expressão, o veículo e a força motriz dos relacionamentos humanos. Na expressão conjunta, os participantes constroem uma sociedade à parte e toda própria. Proporcionando um relacionamento direto ente as pessoas, sem qualquer outro intermediário a não ser a imaginação de cada um, a improvisação em grupo atua como um catalizador de amizades fortes e especiais. (NACHMANOVITCH, 1990, 95)

 

O autor ainda defende que “Uma vantagem na colaboração é que é muito mais fácil aprender com alguém do que sozinho.” (NACHMANOVITCH, 1990, 91-92). Ampliando essa percpectiva, podemos pensar que se estamos em tempos de (re)aprender a nos relacionarmos de forma ampla e saudável, só é possível fazê-lo na experiência com o outro. Em territórios arteterapêuticos, constatamos que a prática compartilhada se faz um potente recurso para o estímulo a esse aprendizado. 

Referências Bibliográficas:

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. De volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica Contemporânea. Editora Amparo, SP. 2020

NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. Summus Editorial, SP. 1993.

SHARP, Daryl. Léxico Junguiano, Ed Cultrix, SP. 1991.


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Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
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Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"