segunda-feira, 26 de abril de 2021

CUSTOMIZANDO EMOÇÕES: INTERFACE ENTRE ARTESANATO E ARTETERAPIA - PARTE 2

 

Por Silvia Quaresma

othila.arteterapia@gmail.com


Abandonando a extensiva tarefa de explicar a diferença entre Artesanato e Arteterapia, busco neste texto mostrar a interface entre dois conceitos tão próximos em sua essência e ao mesmo tempo tão distantes em seus objetivos e resultados.

Meu trabalho de pesquisa, ao longo de vinte e oito anos como artesã, possibilitou tecer reflexões, a partir de uma visão abrangente, sobre o fazer artesanal.  O conceito que a palavra “artesanal” adquiriu ao longo do tempo, como sendo “tudo aquilo que é feito com as mãos”, se torna muito simplista diante da perspectiva de que há uma estreita ligação entre executar e sentir. 

A habilidade exigida pela técnica artesanal, a necessidade da perfeição, a busca constante pela estética encontra seu contraponto na criatividade livre e descompromissada, cujo foco é a interiorização.

O processo criativo tem enfoques diferentes, quando observado pelo Artesanato ou pela Arteterapia. O primeiro determina apreender técnicas de uso comum, enriquecidas por habilidades individuais. Já a Arteterapia, liberta de fatores limitantes, utiliza e vê o processo criativo como facilitador, como meio para exteriorizar o que de mais interiorizado possa existir. Sobre o ato criativo:


Criar é, basicamente, forma. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse “novo”, de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar (OSTROWER, 2014, p.9).

 

O objetivo  é ampliar o olhar do artesão, a partir da Arteterapia, para que ele possa ampliar seu olhar e perceber que as técnicas artesanais transmitidas por gerações, por vezes enrijecidas e endurecidas podem dar lugar ao fluir de ideias e sentimentos e que o "customizando emoções" do artesanato dá lugar ao “conhecendo emoções” na Arteterapia.

O local escolhido para a realização das atividades foi uma instituição beneficente de São Paulo, cuja finalidade maior é o desenvolvimento integral das potencialidades humanas, por meio da assistência à criança, ao adolescente, ao jovem e ao adulto com deficiência intelectual.

A Instituição conta vários trabalhos realizados por voluntários, entre eles um espaço para execução de peças artesanais chamado de “Cantinho do Artesanato”, formado por voluntárias e por mães cuidadoras de atendidos do local. Dentre os objetivos do grupo está o aprendizado de técnicas artesanais e sua reprodução, assim como a execução de peças para comercialização em eventos promovidos pela Instituição, visando angariar fundos. 

A excelência exigida pelo artesanato satisfazia parte desse grupo; entretanto as cuidadoras pareciam buscar ali algo além, talvez alento a uma rotina conturbada pelo excesso de afazeres, talvez uma forma de amenizar as preocupações incessantes, talvez o aprendizado de um novo olhar. O Artesanato, pura e simplesmente não atendia a esta demanda e, por vezes, frustrava, aborrecia e irritava enquanto exigia uma beleza não contemplada pela situação de vida daquelas mulheres.

Notou-se, neste momento, a necessidade de trazer a Arteterapia para aquele contexto. Dessa forma, novo projeto implantado e nomeado “Cuidando do Cuidador” que passou a funcionar em dia e horários diferentes.

Optou-se por “Cuidar do Cuidador”, por entender que a sociedade cobra destes comportamentos equivocados – como doses excessivas de coragem, renúncia, desapego – o que, muitas vezes, o distanciam de um cuidar com discernimento e equilíbrio. 

O objetivo do processo arteterapeutico foi o de fortalecer a autoestima e a autoconfiança, valorizando a importância do equilíbrio emocional. Neste percurso, notou-se nos participantes uma diminuição das manifestações de ansiedade, irritabilidade e agressividade, consequente amenização do estresse.

 Realizado entre os meses de março e novembro de 2018, o processo teve trinta e quatro encontros. Selecionei dois, nos quais pode-se facilmente enxergar uma interface entre Artesanato e Arteterapia

O primeiro encontro fazia parte do bloco “Redução do Estresse e da Ansiedade” e tinha como objetivo possibilitar ao participante manter o foco no presente, no que se estava realizando. De acordo com Santesso (2015, p.91): “Objetivo, remeter os participantes à consciência de que somos nós que criamos a nossa própria realidade”. A atividade foi nomeada “Tecendo a vida: entrelaçando experiências – Tear de gravetos”


Foi sugerido aos participantes que escolhessem, como suporte, um graveto que poderia ter espessura fina ou grossa. Depois, deveriam montar os fios na posição vertical, representando situações trazidas pela vida, para, então, tecer entre eles, buscando a solução dos problemas. O resultado, o desenho formado pelos fios, a trama que eventualmente surgisse, representaria formas de como se contornar situações e o que escolher em tais situações (escolha os fios).

 Sobre a possibilidade de escolhas:

 

Muitas pessoas nutrem sentimentos que causam sofrimento e muita dor por acreditarem que sua realidade é prejudicada por elementos externos e alheios, porém, mesmo que estes elementos existam cabe somente a nós mesmos tomarmos a rédea de nossos destinos e tecermos nossos caminhos sem parar um minuto como se fosse uma teia de aranha. (SANTESSO, 2015, p.92).

O resultado foi inusitado: o montar despretensioso em um tear improvisado que permaneceu longe de regras especificas de tecelagem e não trouxe a peça perfeita e sim a exteriorização de sentimentos.

Atividade “Tecendo a vida”

Fonte: arquivo pessoal

O segundo encontro fazia parte do bloco “Resgate das Brincadeiras Infantis”. Seu início foi uma “viagem no tempo”, na qual os participantes foram convidados a lembrar das regras do jogo Cinco Marias.  

Durante a atividade, foi estimulado o contato com o feltro, cuja maciez era “quase um carinho”, conforme depoimento. Surgiram dificuldades em colocar o fio na agulha, em escolher a linha que combinasse formaram. Mas, em pouco tempo, tudo isso se tornou detalhes que contribuíam para execução. Aos poucos, os participantes passaram a relatar que cada ponto despertava uma lembrança:


O trabalho delicado e minucioso do “ponto por ponto” ajuda-nos a redimensionar a compreensão do tempo que deve-se destinar o trabalho criativo, e a paciência para ver pequenos resultados decorrentes de um lento processo, feito de pequenos passos (PHILIPPINI, 2018, p.65)

 Atividade “Cinco Marias”

Fonte: arquivo pessoal

A observação do resultado também surpreendeu. A preocupação com o cabamento deu lugar à simples possibilidade de jogar, ao prazer de ver os saquinhos jogados e à alegria ao pegá-los.

Foram anos dedicados ao Artesanato e um caminho que parecia belo pois supostamente era enfeitado com as técnicas ensinadas. Muitos profissionais surgiram, muito tempo foi valorizado. Lidar, falar e ensinar era fácil, afinal o fazer de forma manual, o fazer com as mãos nasceu junto com o homem e a arte sempre esteve presente.

Posteriormente, a Arteterapia surge com seu olhar peculiar: o olhar para dentro. O ato criativo, interiorizado em sua plenitude, valoriza o que o ser humano tem de mais sagrado: si próprio.

Todos os participantes do processo aqui descrito relataram amadurecimento pessoal e a sensação de terem melhorado suas atitudes. É importante para o cuidador ter um tempo para olhar para si, enxergar-se no mundo, sentir que suas necessidades são autênticas, reais e merecem atenção. Ter um espaço para si é uma grande vitória. Também é importante poder enxergar o outro, enxergar o problema do outro e estar fortalecido para auxiliar, sem mais o viés da vitimização:

Os objetivos sociais destas terapias em grupo favorecem o reconhecimento da dimensão simbólica presente na relação com o outro, as qualidades humanas positivas e negativas e o aumento da tolerância e paciência para com a dificuldade dos outros indivíduos, desenvolvendo sentimentos de companheirismo, intimidade, satisfação, identificação, semelhança, compreensão, esclarecimento, apoio, proteção e ajuda (SANTESSO, 2015, p.25).

 

Sair vitorioso é poder sair das ideias pré-concebidas, das regras impostas, do modo correto de fazer. É ganhar da estética, da beleza pela beleza, da perfeição exigida por um mundo imperfeito. É ganhar de si mesmo. E para que se siga em frente, enfrentando o que vier, só resta viver. Viver de forma criativa:

 

A criatividade é a essencialidade do humano no homem. Ao exercer o seu potencial criador, trabalhando, criando em todos os ambitos do seu fazer, o homem configura a sua vida e lhe dá um sentido. Criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário (OSTROWER,1987, p.166).

 

Viver pode sim ser fácil ou difícil; que se siga, então, customizando emoções!

Bibliografia

OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. 30ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. 

PHILIPPINI, A. Afinal, o que é Arteterapia? Imagens da Transformação. Pomar, 1998. 

______.  Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. 2ª ed. Rio de Janeiro: Wak, 2018. 

SANTESSO, W. A. N.  Técnicas de Oficinas Expressivas: a Arte como forma de ressignificação. São Paulo: Edição do Autor. 2015.

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Sobre a autora: Silvia A. S. Quaresma


Arteterapeuta

Graduada em Letras

Pós-Graduada em Finanças

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora de Othila Arteterapia em Ação

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento individuais e em grupos em Arteterapia

 

segunda-feira, 19 de abril de 2021

CUSTOMIZANDO EMOÇÕES: INTERFACE ENTRE ARTESANATO E ARTETERAPIA

 


Por Silvia Quaresma

othila.arteterapia@gmail.com

Como trabalho de conclusão de curso apresentado como exigência parcial para obtenção de título de especialista em Arteterapia, apresentei artigo intitulado “Customizando emoções: Interface entre Artesanato e Arteterapia.

 É exatamente esta contraposição de olhares, o do artesão fazendo Arteterapia e do arteterapeuta utilizando técnicas artesanais, que busco mostrar neste relato, e a motivação deste texto.

Houve um tempo em que o artesanato nada mais era do que a extensão de um aprendizado artístico e totalmente direcionado ao sexo feminino. A sociedade preocupava-se em formar lindas damas ocupadas única e exclusivamente com o toque harmonioso do piano, cuja função era o entretenimento dos familiares e amigos próximos eleitos pela figura masculina. A habilidade era imposta e pouco se dava atenção às aptidões individuais. A dona de casa perfeita, aquela que estaria pronta para casar-se, deveria saber tocar, coser, costurar, bordar – tudo com perfeição.

Com o passar do tempo, as atividades manuais saíram das residências e ficaram nas mãos daqueles que precisavam produzir para seu uso:  escravos ou de imigrantes que não tinham recursos suficientes para aquisição de utensílios prontos. O ofício do artesanato, longe de ser uma forma de expressão artística, era simplesmente a transmissão e o aprendizado de técnicas – podendo ser observado em desde a cesta de um apanhador de frutos até na rede de um pescador.

No Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, podiam ser vistos pelas calçadas, em feiras improvisadas, os hippies que produziam e vendiam artigos artesanais.

A moda fashion mudou a visão que se tinha sobre o produto artesanal, quando levou às passarelas artigos únicos, feitos à mão. Segundo Córdula (2013), “o artesanato é simplesmente a obra material do artesão, fruto do seu trabalho e é realizado através das mãos na confecção de objetos destinados ao conforto do homem, carregados de expressões da cultura”.

Como isso, o artesão finalmente passou a ter seu destaque e importância, apesar de ainda singela. Em contrapartida, não demorou para que os artistas plásticos se manifestassem para prontamente exigir uma distinção entre artesanato e arte, pois apesar de fazerem uso, de forma distinta, do processo criativo, não tardaram expressões que denominavam seus trabalhos como “lindos artesanatos”.

Como um acordo de cavalheiros, artesanato e arte ocupavam cada qual um extremo:  o artesanato de um lado, comprometia-se em ensinar diversas técnicas e habilitava, a quem quer que fosse, a possibilidade de reproduzir. A arte era a expressão do sentimento puro e simples e, como tal, seria dificilmente ensinado ou transmitido. A obra de arte resultante era para admiração e deleite.  Muito embora divididos por conceitos e convicções, artesão e artista passaram a viver ilusoriamente separados, mas intrinsecamente unidos:

O artesão é aquele que sabe fazer, o artista aquele que cria, inventa, concebe. Um depende do outro no momento em que a criação necessita de realização física, a presença de uma obra de arte de pintura, por exemplo, somente é possível se o artista utilizar o artesanato da pintura para dar à luz seus sentimentos. Em todo o artista que trabalha com as mãos existe um artesão. (CÓRDULA, 2013, p.11) 

É comum à atividade artesanal, a paciência, a harmonia, a busca pelo belo, a paz. Fazer artesanato é entregar-se à tranquilidade e ao aprendizado. Aquilo que é aprendido cede lugar à repetição – e esta garante ao artesão ser expert em sua técnica. A distinção entre arte e artesanato fica evidenciada 

O artista distingue-se do artesão que continua a produzir objetos de uso e preso às formas tradicionais. Uma das características do artesanato, em contraposição à arte então nascente, é que esta se caracteriza pela busca de novas formas e estilos, enquanto que o artesanato é conservador e repetitivo. Nele, a experiência e passada de pai para filho e não como conhecimento estético, forma estilística, mas como a forma do objeto, ou seja: um copo se faz assim, uma bandeja se faz assim, um cálice se faz assim (GULLAR, 1994, p.8).

 

Em meio a necessidade constante de aprendizado e, consequentemente, a transmissão deste, surge a figura do arte-educador.  Através da arte buscou-se conhecer e entender o desenvolvimento humano. A arte efetivamente começou a contribuir para o aprendizado universal.  Segundo Arheim (1988), “o artista usa as categorias de forma e cor para apreender algo universalmente significativo no particular” (p.13).

Na medida em que a arte procurava representar o todo, também expressava singularidades, passando a ser meio eficaz para o conhecimento do indivíduo. O que a princípio era um estudo do universo, da evolução humana, da sociedade, da presença e atuação neste contexto, passou a ser um processo de individuação. O fazer artístico passou a ser instrumento de reflexão sobre as possibilidades e/ou impossibilidades de se criar. Este processo criativo que se realiza de forma diferenciada, tornou-se ímpar.

Toda produção é cultura, mas toda a cultura não é, necessariamente, arte. Segundo Moraes (2018, p.23): “Artistas são seres sensíveis às questões mais profundamente humanas, pois eles veem, sentem e expressam o mal-estar que muitos sentem, mas não sabem nomear”.

Aparentemente, estando num rio de informações e supondo que este irá se encontrar com um mar de contradições, a correnteza nos leva à certeza de que artistas plásticos, artesãos e arte-educadores observam com entusiasmo, amor e respeito o ato de criar.  O ato criativo surge, heroico, como a real expressão da arte: 

A arte, com sua característica capacidade de expressar concomitantemente uma multiplicidade de níveis de significado, mostra-se capaz de expressar a complexidade humana, em seus conteúdos conscientes, inconscientes e quase conscientes, revelando-se um recurso poderoso e eficaz (CIORNAI, 1994, p. 29). 

Para o artista plástico, expressão pura e simples de sua arte. Para o artesão, o nascer de um trabalho metódico e único. Para o arte-educador, meio eficaz de transmissão de cultura. Para o arteterapeuta, a exteriorização de sentimentos.

A Arteterapia não consiste em fazer a arte pela arte, mas sim, no uso do processo criativo de cada indivíduo (que se dá de forma impar e diferenciada) como meio para atingir os objetivos desejados por clientes – e organizados pelo arteterapeuta. Na opinião de Moraes (2018, p.24): “Em Arteterapia as atuações têm um lugar especial, pois acreditamos que o ato criativo é uma atuação do paciente. Ao criar, o paciente fala de si em ato, de inúmeras formas”.

Outro detalhe que deve ser salientado quando pensamos no público que busca a Arteterapia foi abordado por Moraes:

É comum que a clínica da Arteterapia seja procurada por pessoas que já tem a prática nas artes: trabalhos manuais, artesanato, artes visuais. Por um lado, o conhecimento de algumas técnicas é interessante pois o paciente sente-se à vontade no manuseio dos materiais. Tais pessoas, porém, são muito comprometidas com a estética, com o belo, até porque essas produções necessitam de aprovação do público, além da preocupação com “o que é vendável” (MORAES, 2018, p.36).

 

O conhecimento de algumas técnicas é facilitador em primeiro aspecto, limitador em outro. O comprometimento desmedido com a estética pode sim bloquear alguns conteúdos e trazer prejuízo para o processo de exteriorização dos sentimentos.  Por outro lado, entrega de um trabalho belo, que obedeça a padrões pré-estabelecidos e que demonstre técnicas apreendidas é característica do artesanato. Aliás, o fazer artesanal também é muito particular.  O artesanato pode ser feito em qualquer lugar, assistindo TV, conversando.

A Arteterapia tem outros objetivos e, portanto, pede introspecção, dedicação, exclusividade, atenção. O resultado não é mais aquele previamente esperado, e sim, único e exclusivo.

O artesanato é uma atividade pacífica, a arte não necessita ser.  A Arteterapia pode ser a expressão de um estado caótico, de uma mistura de sentimentos. O ato de criar obedece, então, às singularidades correspondentes ao artesanato e a Arteterapia.

Singular também é o olhar diferenciado aos recursos materiais de trabalho do artesão e arteterapeuta – como buscam conclusões diferentes, lidam todo o processo criativo de maneira ímpar.  O artesão obedecendo sempre às técnicas, à estética, à produção de peça perfeita e única, digna de admiração e elogios, capaz de despertar o interesse para aquisição, vê no material sua riqueza de possibilidades. O arteterapeuta, por sua vez, interessado na sensibilização do material, tem outra visão, enxerga o fazer criativo como uma alavanca para estimular a expressão de conteúdos internos, como nos mostram Maciel e Carneiro (2012):

O ato de criar leva-nos à exploração dos diversos materiais de trabalho que funcionam como estímulos sensoriais que, por sua vez, nos remetem a lembranças afetivas. Essas memórias nos fazem entrar em contato com a nossa história, experiências e sentimentos íntimos, despertando a função criadora e favorecendo o aparecimento de imagens (elaborações mentais que guiam a construção representativa) carregadas de energia psíquica e significados subjetivos (p.55). 

 

Artesão e arteterapeuta buscam conclusões diferentes, lidam com o processo criativo de forma ímpar. O artesão, obedecendo à técnica, à estética, à produção da peça perfeita e única, capaz de despertar interesse para aquisição, vê no material uma riqueza de possibilidades. O Arteterapeuta, interessado na sensibilização do material tem outra visão, vê a produção artística como uma alavanca para estimular a expressão de conteúdos internos.

No próximo texto abordarei produções que mostrarão resultados compatíveis com o olhar de cada um.

Bibliografia

ARHEIM, R.  Arte & Percepção Visual: Uma Psicologia da Visão Criadora. Editora Nova Versão.10ª ed. 1988.   

CIORNAI, S. Arte Terapia Gestáltica: um caminho para a expansão da Consciência. Revista de Gestalt, v. 1, n. 3, p.5-31, 1994. 

CÓRDULA, R. Afinal, que é Artesanato? Revista Segunda Pessoa, v.3, n.1, 2013. Disponível em: www.segundapessoa.com.br/edicoes/1/pdf. Acesso em 09 out 2018. 

GULLAR, F. O artesanato e a crise da arte. Revista de Cultura Vozes, v 8, n.4, p.7-12, 1994. 

MACIEL, C.; CARNEIRO, C. (Org.). Diálogos Criativos entre a Arteterapia e a Psicologia Junguiana. Rio de Janeiro: Wak. 2012.

 MORAES, E. Pensando a Arteterapia. Rio de Janeiro: Semente Editorial, 2018.

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Sobre a autora: Silvia A.S.Quaresma


Arteterapeuta

Graduada em Letras

Pós-Graduada em Finanças

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora de Othila Arteterapia em Ação

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento individuais e em grupos em Arteterapia


segunda-feira, 12 de abril de 2021

DO FAUVISMO À ARTETERAPIA: HENRI MATISSE

"A dança" Henri Matisse

Por Eliana Moraes

naopalavra@gmail.com

Instagram @naopalavra

A tendência dominante na cor deve ser a de servir o melhor possível à expressão. (MATISSE in CHIPP, 1996, p 130)

Encerrando a série de textos que explora possíveis articulações entre o movimento fauvista e a Arteterapia, hoje nos aprofundaremos no caminho de protagonismo de Matisse depois dos anos de 1920, quando o movimento foi perdendo força.

Até o fim de sua vida Matisse permaneceu dedicado à sua pesquisa sobre as cores e seu potencial expressivo, além de produzir um conjunto de obras icônicas ao longo de algumas décadas. Sempre ratificou que o uso das cores em suas obras não se baseava em escolhas racionais ou teóricas, mas sim em suas sensações e emoções:


A escolha de minhas cores não repousa em nenhuma teoria científica: baseia-se na observação, no sentimento, na experiência de minha sensibilidade. Inspirando-se em certas páginas de Delacroix, um artista como Signac se preocupa com as complementares, e o conhecimento teórico delas o levará a empregar, aqui ou ali, este ou aquele tom. Quanto a mim, procuro simplesmente empregar cores que expressem minha sensação. (MATISSE in CHIPP, 1996, p 131)

Matisse, como outros pintores que fazem a relação entre as cores e as emoções, também associa as cores com o som musical, formando um diálogo entre a pintura e a música:


O pintor escolhe a sua cor na intensidade e na profundidade que lhe convém, como o músico escolhe o timbre e a intensidade de seus instrumentos. (MATISSE in CHIPP, 1996, p 139)

Henri Matisse


Contudo, um dos recortes mais intrigantes da biografia de Matisse se dá nos últimos anos de sua vida. Em 1941, aos 71 anos, Matisse foi diagnosticado com câncer, o que muito lhe prejudicou no ato de pintar. Passava muito tempo na cama e na cadeira de rodas e foi proibido de pintar com os materiais tradicionais devido ao seu potencial tóxico.

O diagnóstico que poderia ser tomado como uma sentença para o fim da carreira de um grande pintor, não o venceu. Aquele que havia passado uma vida inteira pintando e criando através das cores, mais uma vez se reinventou: criou uma nova técnica que consistia em uma combinação de desenho e pintura em colagens feitas com papéis recortados e coloridos com guache. Matisse chamou a técnica de “Pintando com a tesoura” ou “Desenhando com a tesoura”. Naturalmente, o artista segue utilizando as cores de forma singular, e ao contemplarmos suas colagens podemos sentir a intensidade das cores e consequentemente, de suas emoções.


Desta técnica, 20 pranchas impressas, feitas especialmente para o álbum “Jazz: a arte da improvisação” foi publicado em Paris. Matisse faleceu aos 85 anos, tendo ainda vivido quinze anos de pura “resiliência criativa”.

De Matisse à Arteterapia: “Pintando com a tesoura”


A biografia de Matisse pode ser utilizada como estímulo projetivo em práticas arteterapêuticas, ao trabalharmos com seus experienciadores momentos em que a vida nos fecha uma porta, nos diz um “não”, nos impede de fazer aquilo que amamos, nos identificamos ou desejamos. Com esta técnica, observamos o poder resiliente e ressignificador da arte. Matisse nos ensina sobre a “resiliência criativa” e a capacidade de nos reinventarmos através da arte! Experimentar seu processo “Pintando com a tesoura” proporciona um encontro do experienciador da Arteterapia com seu mais profundo potencial criativo, não apenas para a arte, mas para a vida!

 


Concluindo

A pesquisa continuada sobre as possíveis articulações entre a História da Arte e a Arteterapia tem sido uma das minhas grandes motivações. Matisse, sem dúvida, é um dos artistas que mais falaram à mim ao longo deste processo. E hoje encerro esta série com duas de suas falas que muito me inspiram como uma arteterapeuta atuante no século XXI e tudo o que ele contém:

Sonho com uma arte de equilíbrio, de pureza, de serenidade, desprovida de motivos inquietadores ou deprimentes; uma arte que seja, para todo trabalhador cerebral, para o homem de negócios ou para o artista das letras, por exemplo, um lenitivo, um tranquilizante mental, semelhante a uma boa poltrona que o faz repousar de suas fadigas físicas. (MATISSE in CHIPP, 1996, 131-132)

Gostaria que o homem cansado, sobrecarregado, acabado, encontrasse paz e sossego nos meus quadros. (MATISSE in WALTHER)


Bibliografia:

CHIPP, H.B. (org) Teorias da Arte Moderna. Ed Martins Fontes, SP. 1996

GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do Impressionismo até hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

WALTHER, Ingo F. Matisse. Taschen, 1993.

WHITFIELD, Sarah in STANGOS, Nikos (org). Conceitos da arte moderna, Jorge Zahar Ed, RJ, 2000.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra" 

 

domingo, 4 de abril de 2021

DO FAUVISMO À ARTETERAPIA: A AUTONOMIA DA COR

 

"Mesa posta" Henri Matisse

Por Eliana Moraes

naopalavra@gmail.com

Instagram @naopalavra

Dando continuidade a série de textos iniciada na última semana, que se propõe a articular o movimento fauvista com a Arteterapia, hoje teremos como protagonista um dos artistas mais importantes do século XX: Henri Matisse. O artista é uma referência quando o assunto é o uso das cores na História da Arte, como nos diz Ferreira Gullar:

Hoje, um século depois do grande cisma que mudou a história da arte... tendemos a não perceber esse dado fundamental: a descoberta da cor como matéria autônoma da pintura. Antes, a cor da pintura era a cor das coisas, das roupas, das casas, das pessoas – e por isso ela aparecia no quadro conforme as características dos objetos e da luz ambiente. A libertação começa com os impressionistas e chega à sua plenitude com Matisse que, em alguns de seus quadros, a despoja de toda e qualquer dependência naturalista. (GULLAR, 2012, p 39)

 

Henri Matisse

Busco antes de tudo a expressão... Não posso distinguir entre o sentimento que tenho da vida e a maneira como o traduzo. (MATISSE in CHIPP, 1996, p 128)

Matisse nasceu na França em 1869. Era filho de um pai severo que partia do princípio que o filho seguiria seus passos. Chegou a cursar dois anos de direto, mas sua vocação apareceu ainda jovem, após uma apendicite em 1890, que o manteve acamado por quase um ano. Sua mãe ofereceu-lhe uma caixa de tintas para passar o tempo. A partir de então fez vários cursos de desenho e pintura enquanto estudava e trabalhava. Matisse casou-se e teve três filhos.  

O artista é conhecido como “o mestre da cor” por ter desenvolvido uma pesquisa sobre o tema de extrema importância para a Arte Moderna. Matisse não tinha medo de experimentar. Em suas obras as cores foram usadas de forma subjetiva, provocativa, emocional e autônoma de sua representação literal. Ele dizia que sentia através das cores. Em suas palavras:

Afastando-nos da representação literal do movimento, obtemos mais beleza e mais grandeza...

Vou pintar um interior: tenho diante de mim um armário; ele me dá uma sensação de vermelho muito vivo, e coloco um vermelho que me satisfaz. (MATISSE in CHIPP, 1996, p 129-130)

O lado expressivo das cores se impõe a mim de modo puramente instintivo. Para pintar uma paisagem de outono, não tentarei me lembrar das cores que convém a essa estação; inspirar-me-ei apenas na sensação que ela me proporciona. (MATISSE in CHIPP, 1996, 131)

Hoje, pode parecer-nos um tanto natural pintar a partir das cores relativas à nossas sensações e emoções, entretanto este estilo subversivo de pintar não passou ileso aos olhares críticos de sua época:

Até os críticos mais perspicazes achavam que Matisse havia exagerado... consideraram sua recém descoberta liberdade da cor, e a livre interpretação de temas familiares, uma evidência de excentricidade declarada. (WHITFIELD, 2000, 18)

 

Do Fauvismo à Arteterapia

Na Arteterapia de nossos dias, podemos beber da fonte de Matisse quando compreendemos que o artista fazia das cores o elemento principal dos seus quadros por seu potencial expressivo. Através do uso exorbitante e aparentemente aleatório das cores, ele constelava em imagem a efusão espontânea e de suas emoções.

Inspiramo-nos em Matisse quando destacamos o elemento visual da cor para que ela nos sirva de linguagem para sentimentos vivenciados como “não palavra” mas que ainda necessitam de expressão .

 

Práticas arteterapêuticas: "A família do pintor" e "Pintando a quem se ama"

"A família do pintor" Henri Matisse

Matisse tinha o hábito de pintar as pessoas amadas com as cores das emoções envolvidas nestas relações, como no quadro acima pelo qual retratou sua família.

O retrato é uma das formas mais singulares da arte. Esta requer do artista qualidades especiais e uma afinidade quase total com o modelo. (MATISSE in WALTHER)

Os meus modelos são figuras humanas e não simplesmente figurantes de um interior. São o tema principal do meu trabalho... As suas formas não são perfeitas, mas são sempre expressivas. O interesse emocional que despertam em mim... .” (MATISSE in WALTHER)


"A mulher com chapéu" Henri Matisse

Mas sem dúvida o retrato mais subversivo e supreendente de Matisse se deu quando pintou sua esposa:

Ela é colorida? Eu diria que sim. Precisa? Nem um pouco. Quando foi que você viu um nariz verde pela última vez? Embaraçosa para madame Matisse? Muito. Se Matisse tivesse tratado uma paisagem dessa maneira, isso teria causado um estardalhaço, mas retratar assim uma mulher causou indignação. Para piorar ainda mais as coisas, diz-se que, quando perguntaram ao artista o que sua mulher estava realmente usando, ele teria respondido: ‘Preto, é claro.’... A viva explosão de cores de sua expressão pictórica revelava a paixão que esse homem reservado sentia pela esposa. (GOMPERTZ, 115-116)

Podemos nos inspirar em Matisse ao pedirmos que o experienciador da Arteterapia produza um retrato de pessoas amadas, objetos das questões terapêuticas, utilizando as cores de maneira autônoma e análoga aos seus sentimentos. Ou até mesmo o retrato de sua família, de forma que não apenas a leitura do desenho (já conhecida por nós que trabalhamos com essa técnica expressiva) mas também as cores relacionadas às emoções acessadas pelo experienciador, sirvam para a escuta terapêutica.

 



No próximo texto encerraremos esta série trazendo a última fase de Matisse, também tão inspiradora para as práticas arteterapêuticas.

 

Bibliografia:

CHIPP, H.B. (org) Teorias da Arte Moderna. Ed Martins Fontes, SP. 1996

GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do Impressionismo até hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

GULLAR, Ferreira. Arte Contemporânea Brasileira. Ed Lazuli, SP. 2012

WALTHER, Ingo F. Matisse. Taschen, 1993.

WHITFIELD, Sarah in STANGOS, Nikos (org). Conceitos da arte moderna, Jorge Zahar Ed, RJ, 2000.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2
Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"