segunda-feira, 19 de junho de 2023

O SENTIDO DA CRIATIVIDADE E DOS PROCESSOS CRIATIVOS EM ARTETERAPIA



Por Heloísa Pires de Lucca - Natal (RN)

heloisapsicanalista@gmail.com

             Este artigo foi escrito a partir do meu TCC de Especialização em Arteterapia e Expressões Criativas, concluído em meados de 2022, denominado “Arteterapia de Abordagem Junguiana: o sentido da criatividade e dos processos criativos”. Tem como bases teóricas alguns conceitos da psicologia analítica de Jung em diálogo com Fayga Ostrower e com autoras que tratam dos processos criativos em Arteterapia.

Quando observamos o cotidiano da nossa própria existência, podemos perceber a criatividade atuando a todo momento, a cada escolha que fazemos. A maneira como resolvemos as pequenas coisas do dia a dia, como mudamos uma receita para aproveitar os ingredientes que dispomos, a maneira como executamos uma tarefa de maneira mais organizada ou mais fácil, como resolvemos os desafios e superamos dificuldades em casa, no trabalho, nos relacionamentos, como um constante recriar de nós mesmos. Às vezes, quando uma situação parece estar fadada ao fracasso, uma energia individual ou coletiva surge e evidencia uma capacidade de transformação ou sustentação ou ainda de resistência.  No entanto, nem sempre é assim. Diante de algumas situações, surgem medos que nos bloqueiam e nos paralisam. Isso acontece, por exemplo, quando iniciamos atendimento com clientes adultos em arteterapia. É comum ouvirmos quando propomos a realização de um desenho: “Eu não sei desenhar”; como se para isso fosse necessária uma habilidade especial. Quando pequenos, na pré-escola, desenhamos antes de escrever. E antes disso, em casa, desenhamos nas paredes, fazemos garatujas e, com liberdade, nos expressamos por imagens. Depois que aprendemos a falar, a escrever, paramos de desenhar, de criar imagens no papel, como se isso não fosse coisa séria e sim coisa de criança, ou apenas de quem tem “dom artístico”. Por que isso acontece? Um aspecto apontado por Lopes (2014, p.39), é que a precariedade da vida afetiva gera um empobrecimento criador. Os bloqueios à ação criativa são gerados pela baixa autoestima; falta de confiança em si próprio; medo; ansiedade; conformismo; excesso de julgamento; falta de autoconfiança.

Seria a criatividade algo que o ser humano aprende ou ele é naturalmente criativo? Jung (2011, p.76, §115) afirma: “O anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual extrai o seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem.” Para Jung, (2013, p.64, §245) “[...] o homem é distintivamente dotado da capacidade de criar coisas novas no verdadeiro sentido da palavra, justamente da mesma forma que a natureza”.  Assim, o fenômeno criativo é compulsivo como um instinto, mas Jung prefere designar “a força criativa como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto.” (ibid., §245. Grifos do autor).

Ostrower parte do princípio de que o ser humano é um ser criativo e que a criatividade é um potencial inerente ao homem. A realização desse potencial é uma de suas necessidades. Criar e viver se interligam. Afirma Ostrower (2014, p.53) que “a criatividade e os processos de criação são estados e comportamentos naturais da humanidade. [...] A criatividade é, portanto, inerente à condição humana.” Para a autora, o ato criador abrange a capacidade de compreender e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. Ostrower (2014, p.9) diz: “Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo”. Desde as primeiras culturas, o ser humano é capaz de relacionar múltiplos fenômenos que ocorrem ao redor e dentro dele e lhes dar um significado. Nós nos movemos entre formas e tudo o que observamos à nossa volta é impregnado de formas. São formas em que as coisas se configuram para nós, as quais nós relacionamos e ordenamos. Ao relacionarmos os fenômenos, nós os ligamos entre si e os vinculamos a nós mesmos. Nessa busca de ordenações e de significados reside a motivação humana de criar. Segundo a autora, o homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa. Ele só pode crescer, enquanto ser humano, ordenando, dando forma, criando.

A criatividade não é, portanto, privilégio de artistas ou de alguns poucos escolhidos. Para Lopes (2014, p. 33): “Existem alguns tabus e ideias preconcebidas a respeito da criatividade: muitos nos remetem a um universo mágico somente permitido a alguns iluminados por este dom.” No entanto, como vimos com Jung e Ostrower, este potencial, é inerente ao ser humano, portanto, a criatividade está “presente em todos, independentemente de classe social, grupo étnico, profissão. Sendo a criatividade um potencial, necessita ser desenvolvido.”

Nesse sentido, Fayga Ostrower nos aponta algo importante e necessário para o desenvolvimento da criatividade e do processo criativo que é o conhecimento da materialidade a ser trabalhada. Se não conhecermos a materialidade, se não vivenciamos a materialidade, torna-se impossível ter noção do processo de criação, porque o material tem a sua linguagem. Ostrower (2014, p.35) exemplifica este pensamento por meio da música. Se não conhecemos a materialidade da música, não sabemos o que em realidade significa imaginar musicalmente. Para imaginar formas específicas, lidamos com todo um sistema de signos que são referidos a uma matéria específica.  “[...] O único caminho aberto para nós, seria conhecer bem uma dada materialidade no próprio fazer.”

Segundo Ostrower (2014, p.39) “a imaginação criativa nasce do interesse, do entusiasmo de um indivíduo pelas possibilidades maiores de certas matérias ou certas realidades. Provém de sua capacidade de se relacionar com elas.” Para a autora, o interesse e o entusiasmo por certa matéria “constituem formas de relacionamento afetivo.” “[...] O que, portanto, coloca-se aqui é que, para poder ser criativa, a imaginação necessita identificar-se com uma materialidade.

Quando pronunciamos a palavra Arteterapia, pensamos logo na junção da arte com a psicologia, ou, na psicoterapia por meio da arte. Quais seriam os pontos de conexão entre a criatividade puramente artística e a criatividade em processos psicoterapêuticos? Quando Jung (OC 15, §97) fala da relação psicologia e arte, está falando do processo psíquico da criação artística e não da arte em si. “Apenas aquele aspecto da arte que existe no processo de criação artística pode ser objeto da psicologia, não aquele que constitui o próprio ser da arte”.  A arte em si não pode ser objeto de considerações psicológicas, mas apenas estético-artísticas. Nesse sentido, o valor artístico não é o foco das técnicas expressivas utilizadas por Jung.

A arte pode ser utilizada como recurso metodológico em diversas áreas psicoterápicas. A Arteterapia consiste em uso amplo de técnicas expressivas, pois estas falam de forma direta a linguagem do inconsciente, que se expressa por imagens, símbolos e fantasias. Contudo, a descida ao inconsciente é uma parte do processo, pois, nas produções artísticas, por meio do processo criativo, estabelece-se uma ponte entre o consciente e o inconsciente. Aos arteterapeutas cabe o desafio de possibilitar meios para que o paciente/cliente traga à tona, os conflitos internos, emoções, desejos, fantasias e pensamentos limitantes, bem como o impulso de criar. Segundo Ostrower (2014, p.55): “O impulso elementar e a força vital para criar provém de áreas ocultas do ser”. Assim, conforme Andrade (2000, p.33) citado por Lopes (2014, P. 49), “o criar e o produto da criação podem se tornar o porta-voz desse ensaio de resolução de conflitos”.

A prática da Arteterapia facilita o entendimento do mundo interno, por meio da criação de imagens, possibilitando a consciência de seus conteúdos pela análise dos elementos que a constituem. De acordo com Urrutigaray (2011, p.41): Quando um sujeito “reage” confrontando-se com um símbolo objetivado, ele transforma essa realidade simbólica e se transforma concomitantemente, possibilitando a passagem de energia de um nível a outro, pelo desenvolvimento da criatividade.

Uma das especificidades da Arteterapia, conforme Moraes (2018, p.75), “está no fato de que no setting arteterapêutico o cliente/paciente é convidado a não apenas falar sobre sua questão, mas agir sobre ela, a partir da criação.” A autora propõe o conceito do agir criativo como uma especificidade da Arteterapia.

 “O convite a criar apresenta-se como um vetor de saúde para pacientes tão embotados e empobrecidos em seus investimentos e desejos. [...] Ele amplia o olhar viciado e reduzido quando apresenta novas possibilidades. Estimula que ele exercite sua mente, se esforce e busque soluções, fazendo com que amplie seu repertório. Ao se ver capaz de dar forma e transformar seus conteúdos em cores, formas e imagens, o paciente acessa sua autoestima. Todo esse processo produz algum prazer e estimula o paciente a resgatar seus desejos de vida!” (MORAES, 2019, 102).

Conforme Lopes (2014, p.59), o terapeuta cria quando propõe técnicas específicas, para promover uma aproximação entre o mundo simbólico e a consciência a partir do mergulho na história trazida pelo paciente/cliente. Por sua vez, o paciente/cliente cria “no momento em que abre a sua caixa simbólica e começa a fazer novas relações a respeito da sua própria história.”

O sentido do ato criativo nos mostra a possibilidade de desenvolvermos novas formas, modificar as existentes, recriar a partir concretização das imagens expressas na materialidade manipulada. É partir rumo ao desconhecido em uma viajem interior que possibilita o encontro de tesouros reluzentes, que trazidos à consciência, irão expandi-la mais e mais. No ato criativo reformamos a nossa casa interior, consertamos o que está quebrado ou identificamos, separamos e jogamos fora o que não serve mais. Limpamos e reorganizamos os espaços, redefinimos as conexões e as funções internas, iluminamos e arejamos os ambientes, atualizamos as cores que queremos preservar ou colocamos novas, criamos espaços de conviver e espaços de intimidade e aconchego.

A criatividade e os processos criativos são a matéria prima da Arteterapia. É possível afirmar que não é possível pensar e fazer Arteterapia sem agregar a criatividade e os processos criativos como parte dela. A Arteterapia é conduzida pelo potencial criativo do arteterapeuta e especialmente do próprio cliente no seu fazer, e ao mesmo tempo alimenta e desenvolve esse potencial. Assim, a criatividade é algo inerente e orgânico à Arteterapia.

 

REFERÊNCIAS

·         JUNG, Carl Gustav. OC 15. O espírito na arte e na ciência - 6ª ed – Petrópolis, Vozes, 2011.

·         JUNG, Carl Gustav. OC 13. A natureza da psique - 10ª ed – Petrópolis, Vozes, 2013.

·         LOPES, Cristina Pinto. Práticas criativas de arteterapia como intervenção na depressão: memórias da pele. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014

·         MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia. - 1ª. Ed.- Divino de São Lourenço, ES: Semente Editorial, 2018 

·         MORAES, Eliana. Pensando a arteterapia. Vol. II. Semente Editorail, 2019.

·         OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 30.ed. Petrópolis, Vozes, 2014.

·         URRUTIGARAY, Maria Cristina. Arteterapia: a transformação pessoal pelas imagens. 5ª Ed. – Rio de Janeiro: Wak, 2011.    

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      Sobre a autora: Heloísa Pires de Lucca



      Psicanalista e Arteterapeuta

Realiza atendimento clínico nos campos da Arteteterapia e Psicanálise. Atuou como assistente

social em programas habitacionais de interesse social e programas de incentivo à diversidade

cultural na Prefeitura de São Paulo. Atuou como professora em cursos de graduação no curso

de Serviço Social e pós-gradução em Políticas Públicas.

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2 comentários:

  1. Heloisa, quanta riqueza neste texto, Como é importante trazer à memória constantemente a essência do nosso ofício. Texto muito bem escrito, compreensível e agradável. Obrigada por nos presentear. Seja bem vinda e que venham outros compartilhamentos.

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  2. Heloísa, adorei seu texto, que nos informa, de maneira leve, agradável e rica, a importância da criatividade na Arteterapia e na vida. Parabéns! Continue escrevendo e contribuindo para a expansão de nossos conhecimentos. Beijos.

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