Por Eliana Moraes – MG
Desde que iniciei meus
atendimentos em Arteterapia em 2009, um dos fenômenos que mais me chamaram a
atenção está em tudo aquilo que acontece durante o processo de criação do
paciente/cliente. Meus primeiros textos escritos para o blog e compilados no
livro “Pensando a Arteterapia Volume 1” são registros dessas reflexões advindas
das práticas e atendimentos clínicos, que gosto de chamar de “o chão da vida do
arteterapeuta”.
Minha formação em Arteterapia
baseou-se amplamente na Psicologia Analítica de Jung, teoria que em muito nos
instrumentaliza para a escuta e manejo quanto às produções simbólicas dos
pacientes/clientes. Entretanto, a consciência de que estas são resultados
de um processo criativo, abriu um vasto campo de observação, escuta e
consequentemente, estudo para minha construção profissional.
Um primeiro embasamento teórico
que muito me orientou foram os escritos de Fayga Ostrower em seu clássico livro
“Criatividade e Processos de Criação”. Há alguns anos mantenho um grupo de
estudos que tem essa literatura como orientadora, e estudamos tantas
ramificações possíveis, originadas no processo criativo dentro de um setting
arteterapêutico, ou seja, o fenômeno da criação orientado para o
autoconhecimento e movimentos ressignificadores de um paciente/cliente.
Fayga é uma teórica da Arte. Nossa
leitura de seu livro tem como objetivo beber da fonte dessa teoria para aplicar
na prática arteterapêutica propriamente dita. Esse estudo já resultou na
produção de textos e palestras, além de um esquema que nos espelha que a
Arteterapia possui “duas pernas” para caminhar: o processo e a imagem; E que a
partir dessas duas bases, surgem as teorias da Arteterapia propriamente dita. A
partir dessa compreensão, é necessário que o arteterapeuta amplie seu olhar
para a multiplicidade de embasamentos teóricos que lhe sustenta para seu
caminhar com as “duas pernas” e o seu protagonismo como arteterapeuta em suas
especificidades.
Uma referência bibliográfica em Arteterapia sobre o
processo
No seguimento do estudo da
importância do processo na Arteterapia, encontrei-me com o livro “O caminho
do imaginário” de Alexandra Duchastel. Tenho lido este livro também em
companhia de Vera de Freitas, minha parceira de estudos e atualmente na
produção de conteúdos sobre o ateliê arteterapêutico. Em nosso último evento online
utilizamos a primeira parte do livro de Duchastel como embasamento teórico.
Hoje trago para esse texto um fragmento de nossas reflexões, mas já indicando
sua leitura integral aos amigos do Não Palavra.
O “Caminho do imaginário”
é um método criado pela arteterapeuta canadense Alexandra Duchastel, registrado
em seu livro de mesmo nome. Refere-se à “... uma abordagem multidisciplinar
em arte-terapia, centrada sobre o processo...” (DUCHASTEL, 2010, 9). Ou
seja, um manejo arteterapêutico “onde o processo criativo é também
importante, se não mais, que a obra final...” (DUCHASTEL, 2010, 7).
Partindo desse princípio, é
interessante abrir essa reflexão com a noção de criatividade da autora:
A criatividade
é essa força misteriosa que gera transformações incessantes de cada uma de
nossas células. É um dom universal que não tem nada a ver com o talento
artístico e que nos permite apreender a realidade diferentemente, reorganizá-la
de uma maneira que serve melhor à vida. Naturalmente, a criatividade
pode se expressar em todos os setores da vida: no trabalho, em nossas
relações pessoais, na cozinha, no jardim ou mesmo em um laboratório. Mas a
expressão artística constitui o meio mais direto de reatar com essa
extraordinária capacidade de transformar as coisas, pois nela, tudo é
possível. (DUCHASTEL, 2010, 11-12)
Aqui reside uma articulação entre
as palavras de Duchastel e as de Fayga Ostrower: “Criar e viver se interligam.”
Assim compreendemos que a criatividade não está associada diretamente apenas às
atividades artísticas, mas pensar criativamente é um modo de ser e funcionar em
todos os setores da vida. Como arteterapeutas, compreendemos que parte de nossa
função é promover um (re)encontro entre os experienciadores da Arteterapia e
essa “capacidade de transformar as coisas” para que estes retornem às suas
vidas encontrando soluções criativas para ela.
Mas em seu método, Duchastel nos
mostra um caminho específico para esse (re)encontro: a abertura para o processo
e o prazer de caminhar sobre ele, sem o imperativo de já se ter algo construído
em mente. Nas primeiras páginas de seu livro, ela faz um compartilhamento
pessoal:
... eu me
divertia simplesmente com as linhas, as formas, as cores...
Eu lembro de
que o objetivo desse exercício não era a estética; eu queria, antes, encontrar o
simples prazer de brincar...
Acabava de
compreender que o essencial da experiência artística não se encontra
necessariamente no produto final, mas na maneira pela qual nos submetemos às
forças das linhas, das formas e das cores.
Essa
experiência continua a ser uma inspiração cada vez que a crítica de arte
interior em mim julga desfavoravelmente meu trabalho e tenta, assim frear meu
élan de expressão. Essa lembrança detém um convite a reencontrar o prazer de
criar, de estar no momento presente, totalmente autêntico, fiel a mim mesma.
(DUCHASTEL, 2010, 18-20)
Quando leio as palavras de
Duchastel, ouço um eco do meu próprio processo criativo. Quando estou diante de
uma materialidade, muitas vezes sinto a propensão à um bloqueio caso meu ponto
te partida se dê em uma imagem pré concebida mentalmente. “A crítica de arte”
dentro de mim prontamente se manifesta, trazendo dúvidas sobre minha capacidade
de traduzir o que eu sinto na imagem pensada. Encontrar o caminho das linhas,
formas e cores espontâneas também foi para mim a descoberta de um prazer
criativo altamente desbloqueador para mim. E uma vez em movimento, é possível
que emerja um símbolo figurativo espontâneo, advindo diretamente do
inconsciente, como diz a própria Duchastel: “Para minha grande surpresa a
imagem arquetípica de um velho homem triste, mas sábio, apareceu...”
Um outro ponto abordado por
Duchastel que espelha em muito o início de minhas observações nas práticas
arteterapêuticas é o limite da palavra para a expressão da angústia do
paciente/cliente. No livro “Pensando a Arteterapia Volume 1”, os primeiros
textos compilados se referem à quando o falar pela palavra está interditado – eventos
que se atualizam em muitos casos clínicos meus e de meus supervisionandos. Há
momentos em que o paciente/cliente descreve grande angústia mas, por estar tão
inconsciente de si, não consegue associá-la à alguma causa raiz. Em momentos de
uma dor exacerbada – como por exemplo a dor do luto pela perda de um ente
querido – não é possível falar dela através da palavra por causar a sensação de
“colocar o dedo na ferida”. Ou ainda, em casos de expressões racionais,
teóricas, um discurso viciado no campo já conhecido. Esses são apenas alguns
exemplos de quando a palavra está associada à uma resistência e a Arteterapia
se mostra como um caminho de desbloqueio expressivo:
Contrariamente
às abordagens psicoterapêuticas
tradicionais, onde se relata principalmente eventos dolorosos ou traumatizantes
decorridos no passado, a arte-terapia implica uma experiência imediata, que é
vivida aqui e agora. Voltando ao instante presente, evita-se uma
armadilha frequentemente vista em terapia: o aprisionamento do cliente em seu
mito pessoal. A pessoa conhece e conta sua história pessoal como se
tratasse de um cenário imutável, e com frequência, estéril. (DUCHASTEL, 2010, p
32)
A ampliação da linguagem para outras expressões “não
palavra” se mostra um caminho tão potente quanto eficaz para a construção de um
“novo vocabulário”:
A utilização de
diferentes meios de expressão... permite um contato direto com a sabedoria
inconsciente e estimula a emergência de emoções bloqueadas. O terapeuta
ajuda o cliente a observar seus modos de funcionamento e ultrapassá-los, introduzindo
uma nova experiência. Essa experiência imediata no plano da relação
terapêutica, oferece a possibilidade de ser surpreendido pelo poder das imagens
e descobrir novas facetas de sua personalidade. Assim, aumentamos seu “vocabulário”
de reações a diferentes situações da vida. (DUCHASTEL, 2010, 32)
As palavras de Duchastel me
lembraram uma citação de Angela Philippini que é uma das minhas bússolas
orientadoras como arteterapeuta:
A experiência
criativa nos “transpassa” e permite que “trans-bordemos”
e atravessamos limites e interdições, resgatando
“notícias de nós mesmos”, nem sempre claras e acessíveis no meio dos
inúmeros ruídos e dispersões da vida cotidiana...“ (PHILIPPINI, 137)
Em movimento contrário ao
pensamento e expressão verbal paralisados no pouco que o sujeito acessa em sua
consciência adoecida, a Arteterapia age resgatando “notícias de nós mesmos”,
lampejos de saúde esquecidos no campo do inconsciente. E Duchastel segue seu
texto nos lembrando que o processo criativo carrega em si um potencial de
transformação da matéria física em reflexo das transformações interiores:
A matéria
que se transformou sobre minhas mãos era o eco de uma transformação muito mais
profunda em meu interior. Encontrei soluções inovadoras para problemas que
anteriormente me pareciam sem solução. Tudo parecia desbloquear minha vida. Eu
me pus a recuperar o tempo perdido... A partir desse momento, soube que tinha o
poder de transformar minha vida. (DUCHASTEL, 2010, 20)
Longe de esgotar as ricas
reflexões provocadas por este livro, hoje encerramos essa primeira reflexão com
a consciência arteterapêutica que “Através dos meios artísticos, a pessoa
exprime o que ela não saberia revelar de outra forma.” (DUCHASTEL, 2010, 32) E
que “Para se revelar, a alma precisa desse contato contemplativo com a
imagem, o gesto, o ritual. (DUCHASTEL, 2010,33) Ou seja, com a imagem, mas
antes dela, o processo.
Em um próximo texto daremos
seguimento à reflexão sobre o “Caminho do Imaginário”.
Referências Bibliográficas:
DUCHASTEL, Alexandra. O caminho do imaginário.
OSTROWER, FAYGA. Criatividade e Processos de Criação.
PHILIPPINI, Angela. “Linguagens e materiais expressivos”
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