Por Heloísa Pires de Lucca - Natal (RN)
heloisapsicanalista@gmail.com
Este artigo foi escrito a partir do meu TCC de Especialização em Arteterapia e Expressões Criativas, concluído em meados de 2022, denominado “Arteterapia de Abordagem Junguiana: o sentido da criatividade e dos processos criativos”. Tem como bases teóricas alguns conceitos da psicologia analítica de Jung em diálogo com Fayga Ostrower e com autoras que tratam dos processos criativos em Arteterapia.
Quando observamos
o cotidiano da nossa própria existência, podemos perceber a criatividade
atuando a todo momento, a cada escolha que fazemos. A maneira como resolvemos
as pequenas coisas do dia a dia, como mudamos uma receita para aproveitar os
ingredientes que dispomos, a maneira como executamos uma tarefa de maneira mais
organizada ou mais fácil, como resolvemos os desafios e superamos dificuldades
em casa, no trabalho, nos relacionamentos, como um constante recriar de nós
mesmos. Às vezes, quando uma situação parece estar fadada ao fracasso, uma
energia individual ou coletiva surge e evidencia uma capacidade de
transformação ou sustentação ou ainda de resistência. No entanto, nem sempre é assim. Diante de
algumas situações, surgem medos que nos bloqueiam e nos paralisam. Isso
acontece, por exemplo, quando iniciamos atendimento com clientes adultos em
arteterapia. É comum ouvirmos quando propomos a realização de um desenho: “Eu
não sei desenhar”; como se para isso fosse necessária uma habilidade especial. Quando
pequenos, na pré-escola, desenhamos antes de escrever. E antes disso, em casa,
desenhamos nas paredes, fazemos garatujas e, com liberdade, nos expressamos por
imagens. Depois que aprendemos a falar, a escrever, paramos de desenhar, de
criar imagens no papel, como se isso não fosse coisa séria e sim coisa de
criança, ou apenas de quem tem “dom artístico”. Por que isso acontece? Um
aspecto apontado por Lopes (2014, p.39), é que a precariedade da vida afetiva
gera um empobrecimento criador. Os bloqueios à ação criativa são gerados pela
baixa autoestima; falta de confiança em si próprio; medo; ansiedade;
conformismo; excesso de julgamento; falta de autoconfiança.
Seria a criatividade
algo que o ser humano aprende ou ele é naturalmente criativo?
Jung (2011, p.76, §115) afirma: “O
anseio criativo vive e cresce dentro do homem como uma árvore no solo do qual
extrai o seu alimento. Por conseguinte, faríamos bem em considerar o processo
criativo como uma essência viva implantada na alma do homem.” Para Jung, (2013, p.64, §245) “[...] o homem é
distintivamente dotado da capacidade de criar coisas novas no verdadeiro
sentido da palavra, justamente da mesma forma que a natureza”. Assim, o fenômeno criativo é
compulsivo como um instinto, mas Jung prefere designar “a força criativa como
sendo um fator psíquico de natureza
semelhante à do instinto.” (ibid.,
§245. Grifos do autor).
Ostrower
parte do princípio de que o ser humano é um ser criativo e que a criatividade é
um potencial inerente ao homem. A realização desse potencial é uma de suas necessidades. Criar e viver se
interligam. Afirma Ostrower (2014, p.53) que “a
criatividade e os processos de criação são estados e comportamentos naturais da
humanidade. [...] A criatividade é, portanto, inerente à condição humana.” Para
a autora, o ato criador abrange a capacidade de compreender e esta, por sua
vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. Ostrower (2014, p.9)
diz: “Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo”. Desde
as primeiras culturas, o ser humano é capaz de relacionar múltiplos fenômenos
que ocorrem ao redor e dentro dele e lhes dar um significado. Nós nos movemos
entre formas e tudo o que observamos à nossa volta é impregnado de formas. São
formas em que as coisas se configuram para nós, as quais nós relacionamos e
ordenamos. Ao relacionarmos os fenômenos, nós os ligamos entre si e os
vinculamos a nós mesmos. Nessa busca de ordenações e de significados reside a
motivação humana de criar. Segundo a autora, o homem cria, não apenas porque
quer, ou porque gosta, e sim porque precisa. Ele só pode crescer, enquanto ser
humano, ordenando, dando forma,
criando.
A criatividade não é, portanto, privilégio de artistas ou de
alguns poucos escolhidos. Para Lopes (2014, p. 33): “Existem alguns tabus e ideias
preconcebidas a respeito da criatividade: muitos nos remetem a um universo
mágico somente permitido a alguns iluminados por este dom.” No entanto, como
vimos com Jung e Ostrower, este potencial, é inerente ao ser humano, portanto,
a criatividade está “presente em todos, independentemente de classe social,
grupo étnico, profissão. Sendo a criatividade um potencial, necessita ser
desenvolvido.”
Nesse sentido, Fayga
Ostrower nos aponta algo importante e necessário para o desenvolvimento da
criatividade e do processo criativo que é o conhecimento
da materialidade a ser trabalhada. Se não conhecermos a materialidade, se
não vivenciamos a materialidade, torna-se impossível ter noção do processo de
criação, porque o material tem a sua linguagem. Ostrower (2014, p.35)
exemplifica este pensamento por meio da música. Se não conhecemos a
materialidade da música, não sabemos o que em realidade significa imaginar
musicalmente. Para imaginar formas específicas, lidamos com todo um sistema de
signos que são referidos a uma matéria específica. “[...] O único caminho aberto para nós, seria
conhecer bem uma dada materialidade no próprio fazer.”
Segundo Ostrower (2014, p.39) “a imaginação criativa nasce do
interesse, do entusiasmo de um indivíduo pelas possibilidades maiores de certas
matérias ou certas realidades. Provém de sua capacidade de se relacionar com
elas.” Para a autora, o interesse e o entusiasmo por certa matéria “constituem formas de relacionamento afetivo.”
“[...] O que, portanto, coloca-se aqui é que, para poder ser criativa, a
imaginação necessita identificar-se com uma materialidade.
Quando pronunciamos a palavra Arteterapia, pensamos logo na junção
da arte com a psicologia, ou, na psicoterapia por meio da arte. Quais seriam os pontos de conexão
entre a criatividade puramente artística e a criatividade em processos
psicoterapêuticos? Quando Jung (OC 15, §97) fala da
relação psicologia e arte, está falando do processo psíquico da criação
artística e não da arte em si. “Apenas aquele aspecto da arte que existe no
processo de criação artística pode ser objeto da psicologia, não aquele que
constitui o próprio ser da arte”. A arte
em si não pode ser objeto de considerações psicológicas, mas apenas
estético-artísticas. Nesse sentido,
o valor artístico não é o foco das técnicas expressivas utilizadas por Jung.
A arte pode ser utilizada como recurso metodológico em diversas
áreas psicoterápicas. A Arteterapia consiste em uso amplo de técnicas
expressivas, pois estas falam de forma direta a linguagem do inconsciente, que
se expressa por imagens, símbolos e fantasias. Contudo, a descida ao
inconsciente é uma parte do processo, pois, nas produções artísticas, por meio
do processo criativo, estabelece-se uma ponte entre o consciente e o
inconsciente. Aos arteterapeutas cabe o desafio de possibilitar meios para que
o paciente/cliente traga à tona, os conflitos internos, emoções, desejos, fantasias
e pensamentos limitantes, bem como o impulso de criar. Segundo Ostrower (2014,
p.55): “O impulso elementar e a força vital para criar provém de áreas ocultas
do ser”. Assim, conforme Andrade (2000, p.33) citado por Lopes (2014, P. 49),
“o criar e o produto da criação podem se tornar o porta-voz desse ensaio de
resolução de conflitos”.
A prática da Arteterapia facilita o entendimento do mundo interno,
por meio da criação de imagens, possibilitando a consciência de seus conteúdos
pela análise dos elementos que a constituem. De acordo com Urrutigaray (2011,
p.41): Quando um sujeito “reage” confrontando-se com um símbolo objetivado, ele
transforma essa realidade simbólica e se transforma concomitantemente,
possibilitando a passagem de energia de um nível a outro, pelo desenvolvimento
da criatividade.
Uma das especificidades da Arteterapia, conforme Moraes (2018,
p.75), “está no fato de que no setting arteterapêutico o cliente/paciente é
convidado a não apenas falar sobre sua questão, mas agir sobre ela, a partir da
criação.” A autora propõe o conceito do agir
criativo como uma especificidade da Arteterapia.
“O convite a criar apresenta-se como um vetor
de saúde para pacientes tão embotados e empobrecidos em seus investimentos e
desejos. [...] Ele amplia o olhar viciado e reduzido quando apresenta novas
possibilidades. Estimula que ele exercite sua mente, se esforce e busque
soluções, fazendo com que amplie seu repertório. Ao se ver capaz de dar forma e
transformar seus conteúdos em cores, formas e imagens, o paciente acessa sua
autoestima. Todo esse processo produz algum prazer e estimula o paciente a
resgatar seus desejos de vida!” (MORAES, 2019, 102).
Conforme Lopes (2014, p.59), o terapeuta cria quando propõe
técnicas específicas, para promover uma aproximação entre o mundo simbólico e a
consciência a partir do mergulho na história trazida pelo paciente/cliente. Por
sua vez, o paciente/cliente cria “no momento em que abre a sua caixa simbólica
e começa a fazer novas relações a respeito da sua própria história.”
O sentido do ato criativo nos mostra a
possibilidade de desenvolvermos novas formas, modificar as existentes, recriar
a partir concretização das imagens expressas na materialidade manipulada. É
partir rumo ao desconhecido em uma viajem interior que possibilita o encontro
de tesouros reluzentes, que trazidos à consciência, irão expandi-la mais e
mais. No ato criativo reformamos a nossa casa interior, consertamos o que está
quebrado ou identificamos, separamos e jogamos fora o que não serve mais.
Limpamos e reorganizamos os espaços, redefinimos as conexões e as funções
internas, iluminamos e arejamos os ambientes, atualizamos as cores que queremos
preservar ou colocamos novas, criamos espaços de conviver e espaços de
intimidade e aconchego.
A criatividade e os processos
criativos são a matéria prima da Arteterapia. É possível afirmar que não é
possível pensar e fazer Arteterapia sem agregar a criatividade e os processos
criativos como parte dela. A Arteterapia é conduzida pelo potencial criativo do
arteterapeuta e especialmente do próprio cliente no seu fazer, e ao mesmo tempo
alimenta e desenvolve esse potencial. Assim, a criatividade é algo inerente e
orgânico à Arteterapia.
REFERÊNCIAS
·
JUNG, Carl Gustav. OC 15. O espírito na
arte e na ciência - 6ª ed – Petrópolis, Vozes, 2011.
·
JUNG, Carl Gustav. OC 13. A natureza da
psique - 10ª ed – Petrópolis, Vozes, 2013.
·
LOPES, Cristina Pinto. Práticas criativas de
arteterapia como intervenção na depressão: memórias da pele. – Petrópolis, RJ:
Vozes, 2014
· MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia. - 1ª. Ed.- Divino de São Lourenço, ES: Semente Editorial, 2018
·
MORAES, Eliana. Pensando a arteterapia. Vol. II.
Semente Editorail, 2019.
·
OSTROWER,
Fayga. Criatividade e processos de criação. 30.ed. Petrópolis, Vozes, 2014.
·
URRUTIGARAY, Maria Cristina. Arteterapia:
a transformação pessoal pelas imagens. 5ª Ed. – Rio de Janeiro: Wak, 2011.
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Sobre a autora: Heloísa Pires de Lucca
Psicanalista e Arteterapeuta
Realiza
atendimento clínico nos campos da Arteteterapia e Psicanálise. Atuou como
assistente
social em
programas habitacionais de interesse social e programas de incentivo à
diversidade
cultural na
Prefeitura de São Paulo. Atuou como professora em cursos de graduação no curso
de Serviço Social
e pós-gradução em Políticas Públicas.
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Heloisa, quanta riqueza neste texto, Como é importante trazer à memória constantemente a essência do nosso ofício. Texto muito bem escrito, compreensível e agradável. Obrigada por nos presentear. Seja bem vinda e que venham outros compartilhamentos.
ResponderExcluirHeloísa, adorei seu texto, que nos informa, de maneira leve, agradável e rica, a importância da criatividade na Arteterapia e na vida. Parabéns! Continue escrevendo e contribuindo para a expansão de nossos conhecimentos. Beijos.
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