Por Mercedes Duarte - RJ
duarte.mercedes@gmail.com
Esse é mais um texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos. Hoje, na sequência, trago o Arcano III, a Imperatriz, em diálogo com a dançarina Isadora Duncan, uma das precursoras da arte moderna.
O
intuito desse diálogo entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em
outro texto[1],
é o de proporcionar reflexões propositivas, possibilidades terapêuticas -
experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] -
que permeiam esses elementos em diálogo, inspirando assim uma possível
ampliação do repertório arteterapêutico.
A Imperatriz e a Natureza
A Imperatriz, assim como a Papisa, é representante no tarô do feminino, mas, em contraponto às características soturnas da última, ela emerge à luz, num movimento de abertura, comunicação e expansão criativas. A Imperatriz, encarnada no número 3, é o resultado do encontro do 1 (Mago) e do 2 (Papisa). É desse encontro que um terceiro elemento surge, como num movimento dialético, quando algo novo emerge do encontro de duas substâncias, ou partes. Podemos associar esse evento ao contato da semente com a terra, que se desdobra em um terceiro elemento: a germinação; ou à comunicação que se realiza na aproximação de dois indivíduos; ou ao alimento que surge na interação entre a terra e o agricultor; ou ainda ao ventre quando preenchido de vida após o encontro de dois amantes.
Assim, a Imperatriz condensa o caráter criador do Mago (número 1), que encerra a polaridade yang, e a amorosidade da Papisa (número 2), representada pela polaridade yin. A Imperatriz representa a Terra, a grande mãe que a tudo nutre com os frutos que produz. Ela é a própria natureza com seus ciclos de vida e morte. Entretanto, apesar do inverno, ela é continuamente generosa, gestando sempre uma nova fase de abundância.
A Imperatriz marca, especialmente, os processos de expansão, nutrição e criatividade. Existe nela uma potência de vida e multiplicação constitutivas. Não à toa, é sempre associada à gestação e à realização do parto, seja de um projeto ou de um indivíduo (um terceiro elemento, como ela mesma o é).
A Papisa e a Imperatriz também podem ser concebidas como duas faces da mesma Deusa. Enquanto a Papisa recebe, vela e nutre o que é divino, o ovo da vida, que, todavia, não eclodiu; a Imperatriz é a eclosão, a explosão criativa, a força de vida sendo materializada, a própria manifestação da divindade.
Por
ser essa força de união de dois polos, a Imperatriz está associada à união, à
comunicação e fertilidade. Rege então seu império por meio da comunhão, da
celebração e do amor. No entanto, não possui planejamentos, uma meta de
realização e materialização ordenadas. Seu movimento é de inspiração e
transbordamento do fluxo natural e contínuo de tudo o que é vida.
Isadora Duncan e seu corpo natural
"Desde
o nascimento, não fiz mais do que dançar minha vida” (DUNCAN, 1989)
“A
minha primeira ideia do movimento da dança veio-me certamente do ritmo das
águas” (DUNCAN, 1989, p. 3).
Isadora Duncan (1877-1927), dançarina de inícios do século XX, traz uma série de características que nos aproxima do arquétipo da Imperatriz, como veremos no desenrolar de sua apresentação. Nascida nos Estados Unidos, na Califórnia, Duncan rompeu com o balé clássico. Não agradando a seus conterrâneos, Duncan busca expansão profissional longe de sua terra natal. Considerada hoje uma das precursoras da dança moderna, junto a Loïe Fuller (1862-1928) e Ruth Saint-Denis (1879- 1969), a artista fundou algumas escolas, ao longo de sua trajetória, em distintos países. As mais referenciadas foram implementadas na Alemanha, França e Rússia.
Duncan se opunha ao balé clássico, acadêmico, tecnicista. Considerava uma dança artificial que produzia um corpo deformado, de movimentos geométricos e rígidos, que resistiam à gravidade, e, portanto, confrontavam os preceitos da natureza (BISSE, 1999). Compreendia que as técnicas dessa dança seriam resultados da separação tradicional entre corpo e mente, em que a mente se sobrepõe e domina o corpo. Duncan, em contraponto, propõe um corpo e uma dança naturais:
(...) minha vontade é libertar a arte da dança
das distorções inaturais que são produto do balé moderno, e devolver-lhe os
movimentos naturais. Vemos em animais, plantas, ondas e ventos a beleza desses
movimentos. Todas as coisas da natureza têm formas de movimento correspondentes
ao seu ser mais íntimo.
(DUNCAN, 1996, p. 29, apud DANTAS, 2007, p.152).
A artista inaugura uma nova concepção de dança. Uma dança que expressaria a vida e a liberdade do corpo. Duncan se inspira em danças pagãs e nos movimentos da natureza. Propunha uma nova escola, na qual a dança não conduzisse uma narrativa, mas sim movimentos gerados a partir da alma. Buscava expressar seu mundo interior, considerando, em sua dança, a respiração e o chacra do plexo solar, que compreendia ser o centro de força dos movimentos. Entretanto, não se preocupou tanto em desenvolver uma técnica, mas suas propostas inovadoras fundam “o que seria a essência da dança moderna: um vocabulário coreográfico original e pessoal que recusava a convenção e a coincidência entre um movimento e uma intenção” (BISSE, 1999, p. 65).
A proposta de um corpo natural – “natural” compreendido como aquilo que é espontâneo e sem artifícios - se expressava em seus pés descalços, em seus vestidos soltos, livres de espartilhos, em suas caminhadas, corridas e gestos esvoaçantes, sugerindo fluidez e organicidade, em seus movimentos ondulatórios e na ausência de ruptura rítmica (DANTAS, 2006).
Isadora Duncan e a Imperatriz
Como podemos ver, Duncan se aproxima da Imperatriz em sua proposta de se acercar de um corpo natural, em produzir uma dança que expressasse aquilo que tem de mais verdadeiro em seu mundo interior, se inspirando na Natureza. A espontaneidade de Duncan, sua entrega, seu movimento fluído e expansivo, estão em consonância com o espírito da Imperatriz, cujo reino é o da Natureza, espontâneo, fluído, cíclico e expansivo.
A Imperatriz, arquétipo que manifesta na matéria a divindade, é considerada regida por Vênus - planeta do amor, da harmonia e da beleza. Por sua vez, Duncan propõe manifestar as emoções, a beleza e o sagrado a partir de seu corpo, de sua matéria pulsante. Ela diz: "Eu cheguei à Europa para provocar um renascimento da religião através da dança, para expressar a beleza e santidade do corpo humano através do movimento" (DUNCAN, 1989, apud BISSE, 2008, p.65).
É interessante notar que ambas se aproximam do lugar da maternidade. Duncan além de ter concebido duas crianças, que vieram a falecer em um acidente de carro ainda pequenas, de acordo com alguns registros, também foi mãe adotiva de seis de suas alunas, matriculadas na Escola que fundou, em 1904, na Alemanha, onde acolhia crianças das camadas populares. Essas alunas ficaram conhecidas por “As Isadoráveis”, o que expressava o afeto e o vínculo com Duncan.
Além de mãe e representante da
natureza, que expressaria seu lado yin, Duncan pode ser considerada uma mulher
revolucionária por diferentes motivos, o que compreende sua polaridade yang.
Encerra em si as polaridades da Imperatriz. A artista, não apenas introduziu no
cenário da dança uma nova proposta de movimento, mas também seu comportamento
era considerado escandaloso para a época. Viveu com dois companheiros sem que
formalizasse o vínculo, tendo um filho de cada um deles. Casou-se somente com o
terceiro parceiro, porque era russo e precisava da permanência nos Estados
Unidos. Libertar-se dos espartilhos do balé era mais uma forma simbólica de
afrouxar as amarras sociais que amordaçavam, limitavam, disciplinavam as
mulheres de sua época.
Na
segunda metade do século XIX, surge e se intensifica o movimento feminista nos
Estados Unidos, opondo-se ao puritanismo americano e reagindo, notadamente,
contra o uso do espartilho e dos acessórios que compunham a indumentária
feminina: a liberação do corpo e de sua expressão é uma reivindicação comum ao
movimento feminista e a esta nova dança que está surgindo (DANTAS, 2006, p.
151).
Como sabemos, o conceito de natureza no Ocidente sempre foi associado ao caos, à desordem, contrariamente à ideia de civilização, concebida como a expressão da racionalidade humana, do controle, do ordenamento e intervenção do homem na natureza. Assim, natureza e cultura, natureza e civilização, estão em polos opostos, associados, respectivamente, aos gêneros feminino e masculino. Não por acaso, a ideia de que o homem deveria intervir na “natureza feminina” atravessa a história das sociedades.
Duncan
propõe um retorno à Natureza, à potência natural do movimento, não de modo
caótico, mas de modo fluído, em uma busca pela libertação dos corpos moldados
pela civilização enrijecida.
O retorno à natureza do corpo evidencia uma
tentativa de se contrapor ao modelo hegemônico do corpo balético, mas evidencia
também uma busca de superação de um corpo perdido em séculos de pensamento
dualista e um desejo de instauração do corpo como um espaço de liberdade
(DANTAS, 2006, p.160).
Ambos estilos de dança, a dança natural de Duncan e o balé, podem ser associados aos arquétipos da Imperatriz e do Imperador (que veremos no próximo texto), respectivamente: de um lado, o corpo natural como espaço de liberdade e fluidez; de outro, o corpo artificial, moldado a partir de critérios rígidos e geométricos, minuciosamente calculados, expressando assim a intervenção humana sobre a matéria e a tradicional separação ocidental entre corpo e mente.
Proposta Terapêutica
Para possibilitar a aproximação com o arquétipo da Imperatriz, além do contato com a dança de Duncan na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, foi proposta a impressão corporal com tintas naturais. Pés, mãos, dedos, braços, seios foram impressos. O intuito era de que se apropriassem de seus corpos e ocupassem espaços, assim como a natureza que ocupa os espaços com vida, cores, vitalidade, e seus processos de crescimento, e transformação.
Uma das participantes registrou duas imagens de seu trabalho em momentos diferentes. Por ter exposto ao sol a pintura, e não ter adicionado um fixador às tintas naturais, as cores desbotaram. O que em um primeiro momento provocou certo desapontamento, em um segundo momento gerou reflexões fecundas.
Percebeu que o tempo, que atravessa a vida, que faz da natureza expressão de permanente transformação, estava ali representado pela metamorfose das cores. Assim, a natureza foi capturada de maneira viva, em seu estado puro, em seus tons cambiantes, em seus processos de vida e morte. A experiência, portanto, vivida na carne impressa, possibilitou a consciência, simbolizada em imagem, da única certeza de que temos: de que tudo se transforma.
[1] DUARTE,
Mercedes. Diálogos
entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog
Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
[2] A Jornada
Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas quinzenais, facilitadas por
mim, inspiradas nos arcanos maiores do tarô que são associados a determinados
aspectos da arte.
BISSE, J. de Meira. (2008). Dança e Modernidade. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Campinas- SP.
DANTAS, M. (2007). O corpo natural de Isadora Duncan e o natural no corpo em educação somática: apontamentos para uma história do “corpo natural” em dança. In: Garimpando memórias: esporte, educação física, lazer e dança. Silvana Vilodre Goellner e Angelita Alice Jaeger (Orgs). Porto Alegre: Editora da UFRGS: Porto Alegre.
DUNCAN, I. Minha vida (1989). Editora José Olímpio: Rio de Janeiro.
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