Por Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com
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Já
vamos para mais de 2 meses de quarentena. A rotina e a convivência (para
aqueles que moram com outras pessoas) tornaram-se um emaranhado de diversas
sensações e instabilidade. De repente nos deparamos com uma enxurrada de lives,
cursos, notícias, entrevistas e textos disponibilizados pela internet. O nosso
alcance do mundo lá fora foi ofertado pelo contexto virtual, agora mais do que
nunca. De um lado, temos essa grande vantagem em relação aos nossos ancestrais
que passaram por outras epidemias. Mas por outro, vejo uma poluição e excesso
de informações. São muitos estímulos e objetos chamando e seduzindo nosso
investimento de energia, em um lugar que não existe fronteiras. A internet é um
lugar que, paradoxalmente, não é um lugar. Pois se formos pesquisar o
significado da palavra “lugar” no google aparecerá a seguinte definição:
“parte delimitada de um espaço; local, sítio,
região.”. Não existe delimitação nessa
parte, ou seja, o mundo virtual não tem limite.
Mas
nossa energia psíquica tem. Ao nos defrontarmos com essa enxurrada de
informações, nós ansiamos em absorver o máximo de coisas interessantes que nos
aparecem, mas nossa energia psíquica não dá conta disso. Em outras palavras,
queremos investi-la da melhor maneira possível, mas o mergulho nesse “lugar”
virtual a desmembra. Nós nos exaurimos ou, o que acontece muitas vezes, nós nos
distraímos. Quantas vezes esse “lugar” serviu mais de distração do que de ter
gerado conteúdo satisfatório?
Em
meio a essas reflexões resolvi sair um pouco do virtual e ir pra matéria. Fui
arrumar gavetas desorganizadas, “pôr a mão na massa”. Nesse exercício, achei um
caderninho. E nele vi anotações de uma palestra sobre Beatriz Milhazes
realizada pela Eliana Moraes. E as palavras que anotei me chamaram atenção.
QUEM
É BEATRIZ MILHAZES?
Beatriz
Milhazes é uma artista plástica contemporânea nascida no Rio de Janeiro. Ingressou
na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 1980 e hoje é considerada uma das
mais renomadas artistas brasileiras, destacando-se em mostras internacionais nos Estados Unidos e Europa.
Seu
trabalho é composto por pintura, gravura e ilustração e suas obras contemplam
uma composição de diversos elementos diferentes, que abrange a abstração
geométrica, a colagem, a utilização de materiais como rendas, bordados e até
papéis de balas. De acordo com MORAES
(2019):
“Beatriz
mistura abstração, geometria, modernismo, pop art, concreto e neoconcretismo
brasileiros. Mas a cor é um elemento estrutural na obra da artista. São cores
intensas e padronagens que atraem o olhar, intensificam sensações. A manufatura
é muito importante nos trabalhos da artista, que tem por característica a
pesquisa de novas técnicas e materiais. Também faz colagens sobrepondo camadas
de cor com materiais como embalagens de bala e chocolate, e papéis de diversas
cores e texturas.” (MORAES, 2019)
No
entanto, não vou me aprofundar ao que se refere ao campo artístico, mas sim ao
campo psicológico, ou seja, à psicologia que há nas obras de Beatriz Milhazes.
Como
descrito na citação acima “a manufatura é muito importante nos trabalhos da
artista, que tem por característica a pesquisa de novas técnicas e materiais”.
Uma das palavras em destaque no meu caderninho foi a manufatura. Tendo isso
como base, Beatriz, em uma obra, faz desta um processo. Este processo engloba
pesquisas de diferentes materiais e técnicas, onde ela vai os experimentando,
sentindo, observando o diálogo das cores, formas e texturas. A composição
final é um trabalho laborioso que demanda tempo, paciência e persistência. Nas
palavras da artista:
“O meu trabalho é todo baseado em processo e
esse processo é evolutivo sempre, (...) é um processo que introduz elementos,
esses elementos criam uma reação em cadeia, essa reação em cadeia me mostra um
outro lugar, esse outro lugar adiante, ele vai ser novamente alterado por uma
nova inserção de novos elementos, novos processos...” (MILHAZES, 2013)
Beatriz
Milhazes faz no máximo 10 quadros em um ano, passando de seis a sete horas por
dia criando em seu ateliê (MORAES, 2019). Como citado anteriormente, o processo
é um trabalho laborioso em que o tempo de gestação é vagaroso, permitindo
demorar-se na imagem, no que ela provoca, na “reação em cadeia”. “Demorar-se”
era outra palavrinha destacada no meu caderninho. Mas o que isso tem a ver com
o isolamento e a quarentena?
Já
estamos cansados de saber, ler e escutar que a quarentena nos cerceou de muitas
maneiras e o quanto isso nos provocou e provoca angústias. Retornamos para a
casa e, num ato consciente, sabemos que é na casa que devemos permanecer. Mas
mesmo dentro desta, nós ainda continuamos acelerados, conectados constantemente
com o “lugar” virtual como explanado no início. No entanto, se pararmos para
escutar e ver as imagens correspondentes do cenário atual, ou seja, se demorarmos
nessas imagens, como nos ensina a psicologia das obras de Beatriz Milhazes,
assim como também temos essa máxima na psicologia arquetípica, nos depararemos
com imagens relacionadas à desaceleração. Desaceleração pois não sabemos mais
para onde estamos indo, não sabemos do amanhã e estamos tateando,
experimentando lentamente o que poderá vir a ser. As cidades desaceleraram em
seus movimentos e talvez tenhamos que desacelerar os nossos movimentos
individuais também, principalmente, aqueles que vinham em uma corrida
desenfreada. Aquele que se esforça por manter um ritmo constante igual ao que
era antes está negando a realidade apresentada.
E
foi assim que veio o insight da sincronicidade que, em meio a esse momento,
felizmente, encontrei as anotações sobre Beatriz Milhazes. Penso que a
construção de nós mesmo nesse momento difícil, pode vir como um processo lento,
demorado, de fases (cada semana um estado de humor), de demorar-se, de digerir,
de sentir, de observar coisas que não eram percebidas pela antiga agenda
atribulada. Como disse Marcus Quintaes em uma de suas palestras, agora a
movimentação é para dentro. E esse para dentro, na maioria das vezes, é
amplamente desconfortável e angustiante. Estamos tão desenraizados desse dentro
que podemos percebê-lo, de vez em quando, como a imagem de uma tela em branco.
Beatriz Milhazes fala que tela em branco é um desafio e que muitas vezes a
assusta. Isso também pode acontecer quando nos deparamos com esse olhar pra
dentro. No entanto, sabemos que isso é apenas uma impressão equivocada. Existem
muitos elementos internos embaraçados, muitos contraditórios, alguns não tão
nobres, outros infantis, e por aí vai. Antes tais elementos eram projetados no
mundo lá fora, escapulindo de nós e colando em diversos portadores. Agora sem
achar esses portadores, os elementos se irrompem quando vemos as notícias,
quando vemos os perfis de outras pessoas nas redes sociais e se irrompem pra
nós mesmos quando estamos sozinhos, sem poder fugir para os lugares que
costumávamos ir, desviando, dessa maneira, a atenção desses elementos.
Portanto,
se relermos a citação de Beatriz Milhazes descrita acima, constataremos que
também faz sentido se pudermos transferir suas palavras para a dinâmica
psicológica.
ATENÇÃO
CONCENTRADA E SUSTENTADA
Uma
outra observação no meu caderninho foi sobre a experiência da atenção. Como já
vimos, Beatriz passa muitas horas debruçada na composição de uma obra, e para
isso, é exigido uma atenção concentrada e sustentada no seu fazer. Voltando ao
início do texto, já foi mencionado que nos encontramos enredados numa
pluralidade de informações oferecida pela revolução tecnológica. E uma das
características mais notória disso é a instantaneidade. No entanto já podemos
perceber que pagamos um preço alto por isso. Ou seja, esta pluralidade de
informações vai se atualizando (e até mesmo desatualizando) instantaneamente.
Dessa forma, nada se fixa, pelo contrário, se dispersa facilmente, não cria
vínculo e nem condição para se construir e permanecer em um processo. Nos
distraímos facilmente com a quantidade e a velocidade de estímulos.
A
respeito do nosso atual “apetite por informação”, cito Hillman, em seu texto
“Intoxicação Hermética”, onde ele diz vivermos uma hipertrofia de Hermes, sendo
este o deus mensageiro, e que por isso gera uma troca interminável de
informações:
“A
palavra 'informação' tornou-se tão inflacionada que carrega o código
da identidade e o destino do DNA de um indivíduo. Não a sabedoria, não o
conhecimento, nem inspiração, aprendizado, conforto, verdade, profecia, valor
moral ou beleza estética. Em vez de mensageiro dos deuses, Hermes tornou-se
servo da Internet. (...)” (HILLMAN, 2007, P. 3)
O
que Hillman quer dizer é que existe, atualmente, uma supremacia do deus Hermes.
Além de ser o mensageiro (psicopompo) dos deuses, ele também é o deus
dos viajantes, e por isso uma de suas caraterísticas é não ter morada, ou seja,
ele sempre está em movimento, não se fixando em nenhum lugar. É fugaz, assim como a natureza do campo
virtual.
Voltando a Beatriz Milhazes, quando nos referimos
ao construir e permanecer em um processo, é importante termos a questão da
atenção concentrada e sustentada. Isso exige muito de nós e podemos perceber o
quanto isso se atesta uma dificuldade contemporânea, em que fica mais
evidenciada nessa situação de ter que ficar em casa. Assim, nos percebemos
ansiosos, alguns entediados e outros tentando se manter ocupados com o que está
em sua frente. No entanto, a atenção concentrada e sustentada nos impele ao
“ficar”, seja ficar num desconforto, seja numa sensação, seja num processo
criativo, ou até mesmo e talvez o mais importante, ficar no silêncio da nós
mesmos.
No mesmo texto de Hillman citado acima, ele
afirma que o que pode amenizar essa hipertrofia de Hermes é a deusa Héstia, que
traz como um dos seus elementos o foco:
“Em outras palavras, primeiro devemos ter foco,
em casa com nós mesmos, no presente aqui e agora. O foco, nossa palavra em
inglês para a atenção concentrada, o interesse que aquece toda vida que vem
para dentro do seu perímetro, origina-se da palavra latina para lareira. E a
lareira era Héstia. O lugar onde o fogo doméstico brilhava era Héstia. Este
Foco não era seu símbolo, era a própria Héstia.” (HILLMAN, 2007, P. 6)
“Se Hermes
traz possibilidades à mente, Héstia as centraliza e fornece foco.” (p. 7). Aqui
podemos vislumbrar a arte de Beatriz Milhazes em uma perspectiva mitológica. Ou
seja, Hermes traz todos os elementos materiais e técnicas, mas isso só se
concretiza e se realiza com o foco de Héstia.
Héstia
nos permite um foco na interioridade, na nossa lareira interior, dentro das
nossas casas: a exterior e a interior. A quarentena, portanto, também dialoga
com Héstia.
Dessa
maneira, a partir desses três pontos principais que vislumbrei no belo das
obras de Beatriz Milhazes: a manufatura/o processo, o demorar-se e a atenção
sustentada e concentrada, pude dar um significado mais profundo a essa
experiência de incertezas, tristezas e angústias. A quarentena e a pandemia
estão longe de ser uma experiência agradável, porém a Arte sempre está nos
espreitando quando estamos no escuro. Ela sempre se mostrará como um bálsamo
para os males do mundo.
Referências:
MORAES, E. Grandes artistas na prática da arteterapia:
Beatriz Milhazes. Blog Não Palavra. Rio de Janeiro, 29/07/2019. https://nao-palavra.blogspot.com/se/arch?q=beatriz
. Acesso 04/06/2020
HILLMAN, James. Intoxicação Hermética. In.:_________. Mythic figures:
Uniform edition of the writings of James Hillman. 1st ed. Spring publications,
2007.
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Sobre a autora: Laila Alves de Souza
Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
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