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segunda-feira, 15 de junho de 2020

UM ENCONTRO COM BEATRIZ MILHAZES EM MEIO A QUARENTENA



Por Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com

Já vamos para mais de 2 meses de quarentena. A rotina e a convivência (para aqueles que moram com outras pessoas) tornaram-se um emaranhado de diversas sensações e instabilidade. De repente nos deparamos com uma enxurrada de lives, cursos, notícias, entrevistas e textos disponibilizados pela internet. O nosso alcance do mundo lá fora foi ofertado pelo contexto virtual, agora mais do que nunca. De um lado, temos essa grande vantagem em relação aos nossos ancestrais que passaram por outras epidemias. Mas por outro, vejo uma poluição e excesso de informações. São muitos estímulos e objetos chamando e seduzindo nosso investimento de energia, em um lugar que não existe fronteiras. A internet é um lugar que, paradoxalmente, não é um lugar. Pois se formos pesquisar o significado da palavra “lugar” no google aparecerá a seguinte definição: parte delimitada de um espaço; local, sítio, região.”. Não existe delimitação nessa parte, ou seja, o mundo virtual não tem limite.

Mas nossa energia psíquica tem. Ao nos defrontarmos com essa enxurrada de informações, nós ansiamos em absorver o máximo de coisas interessantes que nos aparecem, mas nossa energia psíquica não dá conta disso. Em outras palavras, queremos investi-la da melhor maneira possível, mas o mergulho nesse “lugar” virtual a desmembra. Nós nos exaurimos ou, o que acontece muitas vezes, nós nos distraímos. Quantas vezes esse “lugar” serviu mais de distração do que de ter gerado conteúdo satisfatório?

Em meio a essas reflexões resolvi sair um pouco do virtual e ir pra matéria. Fui arrumar gavetas desorganizadas, “pôr a mão na massa”. Nesse exercício, achei um caderninho. E nele vi anotações de uma palestra sobre Beatriz Milhazes realizada pela Eliana Moraes. E as palavras que anotei me chamaram atenção.                  

QUEM É BEATRIZ MILHAZES?

Beatriz Milhazes é uma artista plástica contemporânea nascida no Rio de Janeiro. Ingressou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 1980 e hoje é considerada uma das mais renomadas artistas brasileiras, destacando-se em mostras internacionais nos Estados Unidos e Europa.

Seu trabalho é composto por pintura, gravura e ilustração e suas obras contemplam uma composição de diversos elementos diferentes, que abrange a abstração geométrica, a colagem, a utilização de materiais como rendas, bordados e até papéis de balas.  De acordo com MORAES (2019):

Beatriz mistura abstração, geometria, modernismo, pop art, concreto e neoconcretismo brasileiros. Mas a cor é um elemento estrutural na obra da artista. São cores intensas e padronagens que atraem o olhar, intensificam sensações. A manufatura é muito importante nos trabalhos da artista, que tem por característica a pesquisa de novas técnicas e materiais. Também faz colagens sobrepondo camadas de cor com materiais como embalagens de bala e chocolate, e papéis de diversas cores e texturas.” (MORAES, 2019)

No entanto, não vou me aprofundar ao que se refere ao campo artístico, mas sim ao campo psicológico, ou seja, à psicologia que há nas obras de Beatriz Milhazes.

Como descrito na citação acima “a manufatura é muito importante nos trabalhos da artista, que tem por característica a pesquisa de novas técnicas e materiais”. Uma das palavras em destaque no meu caderninho foi a manufatura. Tendo isso como base, Beatriz, em uma obra, faz desta um processo. Este processo engloba pesquisas de diferentes materiais e técnicas, onde ela vai os experimentando, sentindo, observando o diálogo das cores, formas e texturas. A composição final é um trabalho laborioso que demanda tempo, paciência e persistência. Nas palavras da artista:

“O meu trabalho é todo baseado em processo e esse processo é evolutivo sempre, (...) é um processo que introduz elementos, esses elementos criam uma reação em cadeia, essa reação em cadeia me mostra um outro lugar, esse outro lugar adiante, ele vai ser novamente alterado por uma nova inserção de novos elementos, novos processos...” (MILHAZES, 2013)


Beatriz Milhazes faz no máximo 10 quadros em um ano, passando de seis a sete horas por dia criando em seu ateliê (MORAES, 2019). Como citado anteriormente, o processo é um trabalho laborioso em que o tempo de gestação é vagaroso, permitindo demorar-se na imagem, no que ela provoca, na “reação em cadeia”. “Demorar-se” era outra palavrinha destacada no meu caderninho. Mas o que isso tem a ver com o isolamento e a quarentena?

Já estamos cansados de saber, ler e escutar que a quarentena nos cerceou de muitas maneiras e o quanto isso nos provocou e provoca angústias. Retornamos para a casa e, num ato consciente, sabemos que é na casa que devemos permanecer. Mas mesmo dentro desta, nós ainda continuamos acelerados, conectados constantemente com o “lugar” virtual como explanado no início. No entanto, se pararmos para escutar e ver as imagens correspondentes do cenário atual, ou seja, se demorarmos nessas imagens, como nos ensina a psicologia das obras de Beatriz Milhazes, assim como também temos essa máxima na psicologia arquetípica, nos depararemos com imagens relacionadas à desaceleração. Desaceleração pois não sabemos mais para onde estamos indo, não sabemos do amanhã e estamos tateando, experimentando lentamente o que poderá vir a ser. As cidades desaceleraram em seus movimentos e talvez tenhamos que desacelerar os nossos movimentos individuais também, principalmente, aqueles que vinham em uma corrida desenfreada. Aquele que se esforça por manter um ritmo constante igual ao que era antes está negando a realidade apresentada.

E foi assim que veio o insight da sincronicidade que, em meio a esse momento, felizmente, encontrei as anotações sobre Beatriz Milhazes. Penso que a construção de nós mesmo nesse momento difícil, pode vir como um processo lento, demorado, de fases (cada semana um estado de humor), de demorar-se, de digerir, de sentir, de observar coisas que não eram percebidas pela antiga agenda atribulada. Como disse Marcus Quintaes em uma de suas palestras, agora a movimentação é para dentro. E esse para dentro, na maioria das vezes, é amplamente desconfortável e angustiante. Estamos tão desenraizados desse dentro que podemos percebê-lo, de vez em quando, como a imagem de uma tela em branco. Beatriz Milhazes fala que tela em branco é um desafio e que muitas vezes a assusta. Isso também pode acontecer quando nos deparamos com esse olhar pra dentro. No entanto, sabemos que isso é apenas uma impressão equivocada. Existem muitos elementos internos embaraçados, muitos contraditórios, alguns não tão nobres, outros infantis, e por aí vai. Antes tais elementos eram projetados no mundo lá fora, escapulindo de nós e colando em diversos portadores. Agora sem achar esses portadores, os elementos se irrompem quando vemos as notícias, quando vemos os perfis de outras pessoas nas redes sociais e se irrompem pra nós mesmos quando estamos sozinhos, sem poder fugir para os lugares que costumávamos ir, desviando, dessa maneira, a atenção desses elementos. 

Portanto, se relermos a citação de Beatriz Milhazes descrita acima, constataremos que também faz sentido se pudermos transferir suas palavras para a dinâmica psicológica.                      

ATENÇÃO CONCENTRADA E SUSTENTADA

Uma outra observação no meu caderninho foi sobre a experiência da atenção. Como já vimos, Beatriz passa muitas horas debruçada na composição de uma obra, e para isso, é exigido uma atenção concentrada e sustentada no seu fazer. Voltando ao início do texto, já foi mencionado que nos encontramos enredados numa pluralidade de informações oferecida pela revolução tecnológica. E uma das características mais notória disso é a instantaneidade. No entanto já podemos perceber que pagamos um preço alto por isso. Ou seja, esta pluralidade de informações vai se atualizando (e até mesmo desatualizando) instantaneamente. Dessa forma, nada se fixa, pelo contrário, se dispersa facilmente, não cria vínculo e nem condição para se construir e permanecer em um processo. Nos distraímos facilmente com a quantidade e a velocidade de estímulos.

A respeito do nosso atual “apetite por informação”, cito Hillman, em seu texto “Intoxicação Hermética”, onde ele diz vivermos uma hipertrofia de Hermes, sendo este o deus mensageiro, e que por isso gera uma troca interminável de informações:

 “A palavra 'informação' tornou-se tão inflacionada que carrega o código da identidade e o destino do DNA de um indivíduo. Não a sabedoria, não o conhecimento, nem inspiração, aprendizado, conforto, verdade, profecia, valor moral ou beleza estética. Em vez de mensageiro dos deuses, Hermes tornou-se servo da Internet. (...)” (HILLMAN, 2007, P. 3)

O que Hillman quer dizer é que existe, atualmente, uma supremacia do deus Hermes. Além de ser o mensageiro (psicopompo) dos deuses, ele também é o deus dos viajantes, e por isso uma de suas caraterísticas é não ter morada, ou seja, ele sempre está em movimento, não se fixando em nenhum lugar.  É fugaz, assim como a natureza do campo virtual.

Voltando a Beatriz Milhazes, quando nos referimos ao construir e permanecer em um processo, é importante termos a questão da atenção concentrada e sustentada. Isso exige muito de nós e podemos perceber o quanto isso se atesta uma dificuldade contemporânea, em que fica mais evidenciada nessa situação de ter que ficar em casa. Assim, nos percebemos ansiosos, alguns entediados e outros tentando se manter ocupados com o que está em sua frente. No entanto, a atenção concentrada e sustentada nos impele ao “ficar”, seja ficar num desconforto, seja numa sensação, seja num processo criativo, ou até mesmo e talvez o mais importante, ficar no silêncio da nós mesmos.   

No mesmo texto de Hillman citado acima, ele afirma que o que pode amenizar essa hipertrofia de Hermes é a deusa Héstia, que traz como um dos seus elementos o foco:

“Em outras palavras, primeiro devemos ter foco, em casa com nós mesmos, no presente aqui e agora. O foco, nossa palavra em inglês para a atenção concentrada, o interesse que aquece toda vida que vem para dentro do seu perímetro, origina-se da palavra latina para lareira. E a lareira era Héstia. O lugar onde o fogo doméstico brilhava era Héstia. Este Foco não era seu símbolo, era a própria Héstia.” (HILLMAN, 2007, P. 6)

“Se Hermes traz possibilidades à mente, Héstia as centraliza e fornece foco.” (p. 7). Aqui podemos vislumbrar a arte de Beatriz Milhazes em uma perspectiva mitológica. Ou seja, Hermes traz todos os elementos materiais e técnicas, mas isso só se concretiza e se realiza com o foco de Héstia.

Héstia nos permite um foco na interioridade, na nossa lareira interior, dentro das nossas casas: a exterior e a interior. A quarentena, portanto, também dialoga com Héstia.

Dessa maneira, a partir desses três pontos principais que vislumbrei no belo das obras de Beatriz Milhazes: a manufatura/o processo, o demorar-se e a atenção sustentada e concentrada, pude dar um significado mais profundo a essa experiência de incertezas, tristezas e angústias. A quarentena e a pandemia estão longe de ser uma experiência agradável, porém a Arte sempre está nos espreitando quando estamos no escuro. Ela sempre se mostrará como um bálsamo para os males do mundo.
  

Referências:

MORAES, E. Grandes artistas na prática da arteterapia: Beatriz Milhazes. Blog Não Palavra. Rio de Janeiro, 29/07/2019. https://nao-palavra.blogspot.com/se/arch?q=beatriz . Acesso 04/06/2020

 Beatriz Milhazes no MNBA. Rio de Janeiro, 15/05/2018. https://www.youtube.com/watch?v=uX9Jacuubbw&t=2262s Acesso 01/06/2020

HILLMAN, James. Intoxicação Hermética. In.:_________. Mythic figures: Uniform edition of the writings of James Hillman. 1st ed. Spring publications, 2007.


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Sobre a autora: Laila Alves de Souza


Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.

Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.

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