Por Lidia Lacava - SP
lidialacava@gmail.com
Ao participar da palestra de
Eliana Moraes – OS LIMITES E A CRIATIVIDADE – abri uma janela em minha memória
que me fez recordar momentos em que ouvi ressoar palavras como: SIM... NÃO...
PODE... NÃO PODE...! Essas palavras são apresentadas ao ser humano desde o
momento de seu nascimento. A infância deixa marcas de várias situações em que
tais mensagens nos eram ditas de maneira ríspida, doce, assertiva ou duvidosa.
Sim, porque o limite pode vir de maneira duvidosa: “Será que realmente não
poderá fazer? Mas... e se...?” O perfil daquele que dá o limite e do outro que
o recebe varia muito, conforme as circunstâncias e os sujeitos.
Nesse passeio pelas fases da
vida, deparo-me com uma leitura feita há tempos que falava sobre as três
dimensões educacionais do “limite”, em uma obra de Yves de La Taille (2000),
emérito professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Um dos
significados da palavra “limite”, conforme explana esse professor, situa-se nas
questões normativas onde se coloca o que é permitido e o que é proibido para o
bem coletivo, como o direito à vida, à educação, à saúde, ao trabalho. O
princípio da isonomia é que caracteriza esse limite (embora saibamos que não é
bem assim...).
Outro significado dado à
palavra consiste na expressão “impor limites” quando se tem como alvo preservar
a própria vida ou a intimidade da pessoa. Toca-se, neste caso, nas fronteiras
daquilo que o sujeito deseja preservar: sua vida física, íntima, sua
privacidade, seus valores, acertos ou desacertos.
Já o terceiro está relacionado
à expressão “transpor limites” – esta carrega, junto a si, a ideia de
maturidade e excelência. Busca-se ser melhor do que se é! Busca-se ir além,
inovar, exercitar todo o potencial criador existente no sujeito, que se realiza
por meio dos processos criativos que, nas próprias palavras de Fayga Ostrower,
“está vinculado a uma série de ordenações e compromissos internos e externos”
(2002, p.26).
É exatamente com este último
sentido que percebo como a Arteterapia pode contribuir para que, neste momento
repleto de desafios e de incertezas que estamos vivendo, consigamos ir além...
muito além no sentido de buscar algo de novo, novas possibilidades em um tempo
que se apresenta “estranho” e em um espaço externo/físico pequeno (nossa casa),
que ampliou nosso espaço interno/existencial (nossas moradas internas).
Estamos aprendendo a viver
polaridades, a viver o diferente, o que Edgar Morin (2000) traz, como uma das
bases de sua pesquisa, o pensamento “complexo” – este termo, originário do
latim complectere = significa aquilo que é tecido em conjunto. Assim, todas as
características que atuam no ser humano, sentimentos e posturas, embora
contraditórios e opostos, convivem não de maneira excludente, mas integradora.
Homem sábio e louco; trabalhador e lúdico; prosaico e poético; aquele que
experencia concretamente ou por meio do imaginário.
É dialogando essas polaridades
que o homem deve fazer uso de sua imaginação, liberdade, criticidade e
criatividade para se reinventar, para resgatar de dentro de si recursos
internos de fé, coragem, destemor vivenciando a impermanência, isto é, a
certeza de que tudo está em constante mudança.
Neste sentido, o
arteterapeuta, ao entrar em contato com seus limites, exercita a característica
do “transpor seus próprios limites” – transpor aquilo que permitirá que ele se
renove, se reinvente, busque novas possibilidades para sua atuação profissional
clínica e institucional. E, além disso, ele atua em muitas outras paragens, ao
trazer para a realidade tudo o que alimenta o lado sensível, poético, lúdico e
imaginativo do ser humano. Ele é o grande artista na arte do viver e reverbera
todo seu conhecimento, sua sensibilidade, seu fazer aliado à criatividade para
todos aqueles que estão à sua volta.
Convido Fayga Ostrower para,
com sua reflexão, ampliar nosso pensar:
O
potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensívelcultural-consciente
do homem e se faz presente nos múltiplos caminhos em que o homem procura captar
e configurar as realidades da vida. Os caminhos podem cristalizar-se e as
vivências podem integrar-se em formas de comunicação, em ordenações concluídas,
mas a criatividade como potência se refaz sempre. A produtividade do homem, em
vez de se esgotar, liberando-se, se amplia (2002, p. 27).
É exatamente essa potência do
criar que traz uma das marcas do ser arteterapeuta. Criar para ser, liberdade
para existir de maneira mais coerente, integradora e realizadora. Criar raízes
e asas – rever o passado para impulsionar o presente e poder voar, livremente,
para aquilo que faz sentido no seu existir, sem deixar ficar no vazio as
características do pertencimento que o enraíza em seu mundo pessoal e
particular.
Quando falo em processos de
criatividade, compartilho com vocês um dos conceitos da Gestalt-terapia que é o
de “ajustamento criativo”. Para defini-lo trago as palavras de Beatriz Cardella
em um de seus artigos da coleção Gestaltterapia (vol.2, 2014):
Ajustamento
criativo é então a capacidade de pessoalizar, subjetivar e se apropriar das
experiências que acontecem no encontro com a alteridade, processo contínuo no
campo organismo/meio (2014, p.114).
Considero esse conceito uma
das propostas da Gestalt-terapia que traz, em seu cerne, a possibilidade
incessante de o ser humano tornar-se efetivamente “quem ele é” – a busca
constante do “ser-si-mesmo” mediada pelo poder de criação. Neste sentido, a
transposição de limites para exercitar a criatividade surge como algo que é
urgente, que exige ser anunciado. Quando se fala em “ajustamento criativo” em
um processo terapêutico, pontua-se a grande transformação daquilo que deverá
ser transformado, desvelado como algo inovador e integrador na existência do
sujeito.
Trazer esse conceito para a
Arteterapia enriquece-a de maneira significativa, pois somente a Arte, em suas
enormes variáveis, conseguirá evocar e desvelar no Homem a sua verdadeira
essência. Somente ela dará coragem e fé para que o impulso da transformação
aconteça.
Entendo que quando se fala de
relação – “eu x tu / eu x isso” (Martin Bubber), deve-se pensar também no
aqui-e-agora como um continuum, isto é, como um perdurar-se no momento
presente, podendo “dar um tempo” para que o sentido maior da experiência
aflore. Saber ajustar, discriminar o “para quê” de determinada situação, para
depois poder ressignificá-la e integrá-la criativamente na própria existência.
O “ajustar”, como “ação de
integrar(-se)”, traz a ideia de duas ou mais coisas que se amoldam, de
sentimentos opostos que poderão fazer parte do sujeito, mas de maneira que se
completem, conferindo e dando autoria a toda capacidade de subjetivar o
“existir”. Busca-se um todo mais coerente e consciente, não deixando de validar
medos e desafios que possam acontecer sempre.
Vivenciamos momentos de
abertura, de ultrapassar limites, de entrega e aceitação que podem conferir ao
“aqui-agora” das nossas relações, uma outra qualidade de vida, nos permitindo
vislumbrar novas possibilidades de transformar-a-ação.
E a Arteterapia, nesse
sentido, é generosa, pois ela chega devagarinho, aceitando o outro como é
possível ele vir, buscando sempre, através de experimentos mediados pela tinta,
colagem, argila, escrita poética, música e outros recursos facilitar o mergulho
e o diálogo com os personagens que habitam as várias moradas interna de cada
ser humano.
Encerro essa reflexão trazendo
um pensamento de Ponciano Ribeiro, um dos grandes representantes da Gestalt-terapia
atual, que enfatiza:
A
pessoa humana é uma manifestação, é uma explicitação do mistério e da força do
mundo presentes nele e, ao mesmo tempo, em que estar incluído no mundo limita
sua liberdade, torna-o partícipe dessa força gigantesca que movimenta o
Universo, fazendo a liberdade humana, ainda que limitada, infinitamente grande,
como uma potencialidade eternamente disponível para entrar em ação (RIBEIRO,
2011 apud CARDELLA, 2014, p. 86).
Assim... quando o
arteterapeuta se compromete a entrar em contato com seus próprios limites,
certamente irá transpô-los com Arte na majestosa e desafiadora Arte de Viver.
REFERÊNCIAS:
CARDELLA, B.H.P. Artigo -
Ajustamento criativo e hierarquia de valores ou necessidades, in FRAZÃO,L.M.
& FUKUMITSU, K.O. Gestalt-terapia – conceitos fundamentais. Vol. 02. São
Paulo: Editora Summus, 2014.
LA TAILLE, Y. DE. Limites:
três dimensões educacionais. São Paulo: Ed. Ática 2000.
MORIN, E. Os sete saberes
necessários à educação do futuro. São Paulo: Ed. Cortez, 2000.
OSTROWER, F. Criatividade e
Processos de Criação. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002.
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Sobre a autora: Lidia Lacava
Caminho pelas trilhas da saúde e educação buscando o
“ser criativo” e “transformador” que existe dentro de cada um de nós!
Desafiador e valioso!!!
Com formação em Letras (Usp) e Direito (Puc) percebo
que dar aulas em cursos de Pós-graduação em Psicopedagogia e Arteterapia é dar
vez e voz ao que minha alma pede!
Várias formações me guiam nessa caminhada:
Especialização em Psicopedagogia e Arteterapia (Instituto Sedes Sapientiae);
Psicomotricidade (Instituto Pieron); Arte-reabilitação (AACD). Psicologia
Analítica (Unicamp). Gestalt-terapia (Instituto de Gestalt).
Fiz Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura
(Mackenzie) buscando integrar Educação e Arte – esses estudos se transformaram
em um livro: “Eros e Psiquê – um caminho possível para pensar a docência.”
Tenho artigos publicados em outros livros e revistas. A palavra falada ou
escrita aliada à arte, organiza meu pensar!
Amplio esses fazeres no AION - Espaço do Encontro,
situado em Itu, e é nele que acontecem os “grandes encontros”!
Individualmente ou em grupo, os atendimentos e oficinas
com grupos diversificados, se propõem a ser um lugar/espaço para alimentarmos
nosso ser-criança, nosso ser-adulto, nosso ser em constante vir-a-ser...
atemporal!!!
Você sempre será bem-vindo... aguardo sua presença!
Que texto riquíssimo! Parabéns, profa.Lidia e gratidão pelos caminhos percorridos através de cada palavra! Um verdadeiro presente e um texto de celebração e esperança no agir e criar pautado na generosidade ímpar que a Arteterapia tem em suas asas!
ResponderExcluirGrata pelo retorno, Caminhartes!
ResponderExcluirRealmente os arteterapeutas têm um tesouro em mãos!!! Voemos!!!
Nossa, que texto, completo, que será lido por mim algumas vezes para muitas reflexões. E o que eu levo de bate-pronto deste texto ? “Transpor os meus próprios limites”.
ResponderExcluirLídia, Parabéns pelo seu primeiro (?) texto aqui no blog. Que venham muitos outros textos para continuar nos inspirando e nos alimentando.
Um grande abraço,
Claudia Abe
Cláudia, bom te receber por aqui! Realmente pensar os significados do termo "limite" nos faz ampliar, cada vez mais, nossas reflexões pessoais do "ser arteterapeuta" e sua atuação profissional! Reverberemos... Grata
ResponderExcluirTexto maravilhoso, trazendo o que é realmente o limite e o transpor os limites, convidando a Arteterapia como este instrumento. Gratidão e parabéns.
ResponderExcluirGrata pela mensagem, Ângela! Realmente estamos sendo colocados à prova... respirar fundo, nos alimentarmos de fé, coragem e crença de que é possível transpormos nossos limites! Sempre... basta um lampejo da nossa vontade Abçs
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir... Interessante a sua criatividade. As luminárias também nos iluminam. Parabéns.
ResponderExcluirGrata Solange, pela presença por aqui... Sim... sempre somos iluminadas pela luz e brilho da Arteterapia.
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