Pincéis
e Aquarela
Por
Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP
leonardo.claudia@gmail.com
Decretada a quarentena!
Pronto, cortou o meu barato!
Por conta do corona vírus,
acabei decidindo não ir na casa do meu pai por um período, para evitar
contaminação e possível transmissão do vírus para ele com 85 anos e para minha
tia materna com 93 anos, ambos do grupo de risco para covid-19.
Puxa, vou ter que ficar sem
fazer com eles as sessões arteterapêuticas que eu adoro.
Passei a fazer ligações pelo
telefone fixo e pelo vídeo do WhatsApp. E ele sempre me falando que aguardava
ansioso para retomarmos as atividades com artes. Contei para o meu pai que até na
Europa estão lendo os textos sobre ele neste blog:
Pai: Está atravessando o oceano? Nossa, agora
vou caprichar mais. Tô ficando internacional.
Passaram-se trinta e quatro
dias sem eu ir lá e foi me dando uma angústia. Consultei minha irmã que mora
com eles relatando minha vontade em ir lá, dizendo que tomaria todos os
cuidados e ela concordou.
Liguei para o meu pai avisando
que iria lá e faríamos arte. Disse também que iria a pé, para diminuir riscos
de contaminação, caminhando 3,5 km e que não queria carregar muito peso.
Pai: Não precisa trazer nada. Vamos trabalhar
com o que tiver aqui na casa. Você vê o mínimo que tem, para vermos o máximo
que dá para fazer com ele (referindo-se aos materiais). Aí a gente vai
criando.
Contei a ele que algumas
vezes, eu planejava a sessão, e chegando lá, havia uma parte do material ali, e
a outra parte estava na minha casa, tipo, tintas aqui, pincéis lá... e daí
rapidamente eu olhava o que tinha de materiais disponíveis e criava uma nova
sessão.
Pai: Aí fica um vazio, você fica arrepiada de
ter esquecido o material, né?
Disse que iria preparar a
sessão e ele falou:
Pai: Não, não precisa planejar nenhuma sessão, vamos ver o que surge na
hora. Deixa que a ideia aparece na hora.
No dia seguinte, fui
caminhando por uma hora e percebendo tudo ao meu redor. Um silêncio, flores de
cores intensas ao longo da Avenida Indianópolis, uma falta de carros e
movimento.
Chegando lá, aquela
parafernália toda: tira o tênis fora da casa, lava as mãos, troca a roupa, lava
as mãos, fica longe, álcool gel, fala menos, lava as mãos, fica de máscara, só
faltou flambar (verbo transitivo direto: fazer assepsia por meio de chamas).
E assim, como ele falou,
deixamos surgir a ideia simplesmente conversando. Eu, ele e a tia, e aí lembrei
do conto “O sapateiro e os elfos”, que conheci no grupo virtual “Histórias do
Rei Sol” com a arteterapeuta Fabíola Junqueira e fizemos a sessão inspirados
neste conto. Por meio do conto, foram surgindo algumas histórias da vida deles.
Mas aí, como fazer uma sessão
arteterapêutica que não ficasse apenas no verbal, na fala? Imediatamente, fui
ao quarto onde guardo os materiais que acho interessante para uso na
arteterapia. Tudo vai ficando por lá. Olhei o que havia disponível e por sorte,
consegui achar pastilhas de tinta aquarela e um conjunto de pincéis. Minha
outra irmã doou uns frascos de vidro que iriam para reciclagem, mas como são
bonitos, foram também para a arteterapia. Então, peguei os potes de vidro, para
não ter o risco de eles virarem sobre a mesa e esparramar a água. Mas cadê o
papel para aquarela? “Putz”, ficou em casa.
Acabamos usando folhas A3,
pincéis e tinta aquarela. Está certo que o papel enrugou, mas e daí? Fizeram
suas pinturas, meu pai e minha tia compartilharam suas memórias trazidas pelo
conto e nos divertimos.
Os sapatos do conto, meu pai
trouxe na forma de uma chuteira e narrou quando jogava futebol num clube de
descendentes de japoneses. Minha tia trouxe a lembrança de seu vizinho sapateiro,
que era casado e tinha nove filhos, e nenhum deles sabia ler. Sentavam-se a noite
à volta de uma mesa grande, ela lia um folhetim a cada segunda-feira e eles
chegavam a ficar bravos com os personagens!
Pai: "Chuteira"
Palavra final: Juventude maravilhosa
Palavra final: Juventude maravilhosa
Tia: "Anões-Casal-Sapatos"
Palavra final: Lembranças
Fui embora e fiquei com um
pouco de medo dos riscos que corremos. Deixei passar mais um tempo e não
aguentei. Voltei lá e eles pintaram telas inspirados na obra “Doze Girassóis
numa Jarra” de Van Gogh, mas esta já é outra história.
Se você quiser ler meus textos
anteriores neste blog, são eles:
Tempo de Corona Vírus, Tempo
de se Reinventar, publicado em 13/04/20.
Minha Origem: Itália e Japão, publicado em 17/02/20.
Salvador Dali e “As Minhas
Gavetas Internas”, publicado em 11/11/19.
“’O olhar que não se perdeu’:
diálogos arteterapêuticos entre pai e filha”, publicado em 19/08/19.
________________________________________________________________________
Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe
Arteterapeuta e Farmacêutica
Farmacêutica-Bioquímica graduada pela
UNESP Araraquara-SP.
Especialista em Farmácia Homeopática
pela USP-SP.
Especialista em Organização de Serviços
em Dependência Química pela UNIFESP-SP.
Especialista em Gestão da Assistência
Farmacêutica pela UFSC-Universidade Federal de Santa Catarina-SC
Especialista em Arteterapia e
Criatividade pela Faculdade Vicentina-PR
Focalizadora de Danças Circulares pela Prefeitura do Município de São
Paulo-SP
Atuei em instituição com o
projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos.
Atuei em instituição de longa
permanência para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de
Alzheimer.
Atendo em domicílio.
Cláudia, adorei seu texto! Seu pai é incrível! Bjs
ResponderExcluirParabéns.
ResponderExcluirSensacional, Cláudia! Tão sensível, tão real!
ResponderExcluirCláudia! Adorei seu texto... tem a singeleza e a profundidade da relação entre Você, seu pai e sua tia. Que delícia de encontro. E ele... bem... um arteterapeuta desde sempre!!! Parabéns beijo Lídia
ResponderExcluirParabéns Cláudia pela sua determinação, dedicação e amor pelo seu pai e tia. Ter a oportunidade de dedicar-se desta forma aos entes queridos na condição em que se encontram e na situação atual de cuidados necessários e redobrados, é antes de tudo, uma atitude ímpar e muitíssimo valiosa. Parabéns e grande abraço.
ResponderExcluirMauro Ota
Claude... a Contagiante!!!
ResponderExcluirSeu entusiasmo e dedicação aos seus queridos familiares anciãos nos contagia... sua fala leve e livre é uma fagulha de alegria que flamba, transforma criativamente o cenário de isolamento e medo... Traz sempre ENERGIA, COR, AMOR, SORRISO... O generoso compartilhamento de suas vivências com seu pai e tia nos hidrata de Esperança as rugas do tempo-presente. Gratidão por esta graça... sua fã
Conhecer a Cláudia me foi um grande presente do destino. Uma pessoa absolutamente exuberante de emoções. Ela vive, se comunica, se empolga, faz arte, tal qual uma criança brinca. É impossível não se sentir melhor na presença dela ou numa conversa por zap ou lendo um de seus textos.
ResponderExcluirEsse artigo é um ramalhete de flores. É impossível não se sentir bem ao ler. Além de ser muito bem escrito, vai criando a história aos poucos e as frases de seu pai se tornam verdadeiras lições de sabedoria.
O encanto de Cláudia pela vida vai transbordando ao longo das frases e a paixão pelo instante e o amor pelos familiares vai crescendo dentro de nós.
E no fim, a arteterapia é para seu pai, sua tia, mas também para Cláudia, pois está em contínuo florescer e descortinar de vida, conhecimento e sabedoria.
Obrigado pelo texto, por compartilhar e pela amizade!!!
Claudia, muito interessante. Em torno de um assunto, cada um ter uma visão diferente.
ResponderExcluirO seu pai retratou uma chuteira. Onde ficou na memória dele, as chuteiras com prespontos. Como era jogo de futebol, o que chamava atenção eram os calçados, no caso as chuteiras.
Agora a sua tia, retratou recordações do vizinho sapateiro.
Confesso que não saberia desenhar com essas tintas, algo que parecesse um ser humano. Num simples manuseio conseguiu retratar o casal, imagino que seja mesa com a família reunida.
Com poucos recursos, seus entes queridos, ainda com avançada idade, ainda ter a capacidade de resgatar o passado e colocar isso no papel, com tinta colorida é muito gratificante para quem acompanha e faz um trabalho para avivar a memória. Eles estão de parabéns ! E vc tb amiga!! Eu tiro o chapéu.
Cecilia Massuyama
Clau, acredito que esse olhar diferenciado, voltado para o ser humano, suas carências, sua dignidade, aprendemos como funcionárias públicas, que trabalharam 30 anos no SUS. Esse trabalho que vc desenvolve com seu pai e sua tia, e o bem mais precioso da sua vida. Resgatar lembranças, memórias afetivas, e costurar junto com eles a teia da vida, permitindo na velhice um olhar talvez mais despreocupado, mais leve, mais alegre, em relação a suas vidas. Tem, com certeza, um toque pessoal seu, mas foi a tessitura social que acessamos através do nosso velho e bom SUS, como disse uma vez o professor Saldiva no jornal da Cultura ( se referindo ao front na luta contra o corona) sem dúvida colaborou e muito nessa percepção diferenciada. Parabéns Clau. Abraço com carinho.
ResponderExcluirMaria Aparecida Verga
Cláudia vc é inspiradora. Que lindo seu trabalho.
ResponderExcluirQue gostoso ler suas postagens, me trazem muita paz e alegria.Imagino quando você chegou na casa deles quantas coisas não tinha pra conversar e quanta vontade de abraçar.....Este momento realmente está sendo de grande aprendizado para todos nós!Seu pai me pareceu bem humorado, o que deve ajudar muito.Belo trabalho. Um carinhoso abraço minha querida Claudia.
ResponderExcluirLinda reportagem! Poético e inspirador. Muito gentil compartilhar conosco estas vivências arte terapêuticas de seus familiares queridos conosco. Obrigada Cláudia!
ResponderExcluirClaudia, que trabalho empolgante!
ResponderExcluirSua dedicação e habilidade na sessão foram incríveis.
O seu trabalho com certeza está fazendo a diferença na vida das pessoas (olha que não é só para as que participam das sessões, mas para nós que lemos o seu texto).
Parabéns!
Que venham mais sessões!
Do seu marido,
Leonardo
Oh Claudia, como gosto de ler os seus textos, e me fazem bem. Adorei ler as intervenções e pedidos de seu Pai. São fantásticas as pinturas que sua Tia e seu Pai fizeram, com a idade que têm. É muito bom o seu trabalho de Arteterapeuta, porque a Claudia é super dotada para isso. Pena ter estado 34 dias, sem visitá-los, tenho a certeza que lhes fez muita falta, mas dadas as circunstâncias actuais, procedeu bem.
ResponderExcluirParabéns, Claudia, e espero que continue a ter a maior força para continuar.um grande beijinho, do Algarve, onde estamos neste momento.
Cláudia você é um encanto de pessoa.
ResponderExcluirCláudia, quê bacana a sua criatividade. Bonita interação na arte terapia. Parabéns.
ResponderExcluir... Parabéns
ResponderExcluirCláudia, quê bacana a sua criatividade. Bonita interação na arte terapia. Parabéns.
ResponderExcluirCláudia, o teu trabalho tem a profundidade que só a delicadeza permite ter. Parabéns! Muito inspirador.
ResponderExcluirNão consegui me identificar, Claudia. Eu sou a Eliz. Beijo!
ExcluirParabéns, Cláudia pelo grande empenho que demonstra um amor condicional pelo seu pai e pela sua tia. Chamo isso de ACALENTO, pois você consegue carrega-los no colo envoltos pela criatividade que a arte disponibiliza. Sou Beatriz Gutierrez
ResponderExcluir