Por Selma Lessa RJ-PE
slessa.rj@terra.com.br
Este
texto é um fragmento da minha monografia da Pós Graduação em Psicologia
Junguiana intitulada “INTERFACES ENTRE CRIATIVIDADE E OPUS ALQUÍMICO
SOB O VIÉS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA”. Este
fragmento será dividido em duas partes para publicação no blog.
A palavra criatividade vem do latim Creatus,
significando criar, do verbo infinito CREARE. E, de acordo com o dicionário
Houaiss, criatividade pode ser definida como "a qualidade ou característica
de quem [...] é criativo; inventividade; inteligência e talento, natos ou
adquiridos, para criar, inventar, inovar". O dicionário Aurélio define
criatividade como "capacidade criadora, engenho, inventividade; capacidade
que tem um falante nativo de criar e compreender um número ilimitado de
sentenças em sua língua." Portanto, podemos entender que ser criativo é
encontrar novas soluções para novos e velhos problemas.
Todo o processo de criação tem em sua origem, tentativas de
estruturação, de experimentação e controle, processos produtivos onde o homem se
descobre, onde ele próprio se articula a medida que passa a identificar-se com
a matéria. São transferências simbólicas do homem à materialidade das coisas, e
que novamente são transferidas para si. (OSTROWER, 1991, p. 53)
A criatividade sempre despertou meu interesse desde a infância: nos
cursinhos de pintar, mais tarde nas aulas de artesanato, restauração de móveis,
na formação em Arteterapia, na faculdade de Artes Visuais, nos atendimentos psicológicos
e arteterapêuticos, como também na pós em psicologia Junguiana, “A criatividade
e o Opus Alquímico” foi o tema do TCC e continua sendo tema da minha paixão no
dia-a-dia.
Na curiosa pesquisa sobre a morada da criatividade, e percebendo o
porquê da facilidade de alguns e frustração de outros (me sentindo por muitos
anos incluída nessa categoria) em criar, se ela não vinha até mim
(criatividade), decidi ir buscá-la porque meu processo criativo dependia dela, em
todos seguimentos da minha vida profissional e pessoal.
De onde vem a criatividade, o ato
criativo? Esta é a pergunta que sempre me instigou na descoberta profissional e
de vida.
Erich Neumann, (2014, p.26) Na
História da Origem da Consciência, fala sobre a questão do princípio que é
também a questão: ”de onde?”:
... trata-se da pergunta original e fatídica, que tanto a
cosmologia e os mitos da criação sempre tentaram dar novas e diferentes
respostas. Essa pergunta original acerca da origem do mundo é, ao mesmo tempo,
uma pergunta sobre a origem do homem, da consciência e do ego; é a pergunta
fatal: “de onde vim”? , que desafia o ser humano assim que este atinge o limiar
da autoconsciência. (NEUMANN, 2014 p.26/27)
O percurso do processo de individuação requer superar desafios, e a
criatividade é uma ferramenta essencial. O ato criativo traz o novo para a vida
cotidiana, pois provoca um transitar de conteúdos entre a consciência e o
inconsciente, e dinamiza as transformações necessárias para que o homem atinja
seus potenciais.
Segundo Fayga (1991):
Nessa busca de ordenações e de significados reside a profunda motivação
humana de criar; trata-se de possibilidades do homem que correspondem a
necessidades existenciais. Impelido a compreender, o homem é impelido a criar.
Ele precisa ordenar os fenômenos e a avaliar o sentido das formas ordenadas,
precisa comunicá-lo à outros seres humanos através de novas formas ordenadas.
(OSTROWER, 1991, p. 11)
Para Jung (1988) a criatividade faz parte dos instintos, portanto, ela
(a criatividade), não está fora do ser, mas, dentro dele. Quando relatei que
decidi ir buscar a criatividade, estava tão voltada para fora que me esqueci de
olhar para dentro, para meus instintos.
Jung (1988) relata os cinco grupos de fatores instintivos básicos do
homem: a fome, a sexualidade, a atividade, a reflexão e a criatividade.
Sobre a criatividade, Jung (1988) relata ser o homem dotado com a
capacidade de criar coisas novas e capaz também de reprimir seus instintos,
mesmo sendo o instinto, um sistema organizado de forma estável e inclinado à
repetição. Assim como os outros instintos, o instinto criativo urge ser
satisfeito.
Ele faz uma observação importante no que ele chama de criatividade sendo
um instinto, dizendo não estar certo ao usar a palavra “instinto” e o “aspecto
criativo” do homem juntos, mas o faz por achar que a criatividade se assemelha
ao instinto (JUNG, 1988, § 245).
Sobre a criatividade, diz Jung:
É compulsivo, como o instinto, mas não é universalmente difundido nem é
uma organização fixa e herdada invariavelmente. Prefiro designar a força
criativa como sendo um fator psíquico de natureza semelhante à do instinto. Na
realidade, há íntima e profunda relação com os outros instintos, mas não é
idêntico a nenhum deles. Suas relações com a sexualidade são um problema muito
discutido, e sem muita coisa em comum com o impulso a agir e com o instinto de
reflexão. Mas pode também reprimir todos estes instintos e colocá-los a seu
serviço até a autodestruição do indivíduo. A criação é ao mesmo tempo
destruição e construção. (JUNG, 1988 § 245).
Ao analisarmos atendimentos terapêuticos que se utilizam de técnicas
expressivas, verificamos a criatividade sendo de fato exercida, cujo objetivo é
colocar a psique para recriar a si próprio, sendo uma narrativa do que acontece
ao indivíduo. Entre esses pacientes, alguns fazem arte, outros fazem o criativo
(instinto).
As técnicas expressivas em psicoterapia visam recuperar e recolocar o
instinto criativo no seu devido lugar que é o de gerar formas e aí se encontra
a criatividade.
De acordo com Fayga (1991), ela cita:
Nós nos movemos entre formas. Caminhar pela rua e observar as casas e as
pessoas, notar a claridade do dia, o calor, reflexos, cores, sons, cheiros,
lembrar-se do que se tencionava fazer, de compromissos a cumprir, gostando ou
detestando o preciso instante e ainda associando-o a outro – são formas em que
as coisas se configuram para nós. De inúmeros estímulos que recebemos a cada
momento, de estados e sensações que ocasionam, relacionamos alguns e, nesses
relacionamentos, nós os percebemos. (OSTROWER, 1991, p. 11)
Mircea Eliade (2000), relata que a psique tende naturalmente a criar
caminhos para si próprio, ela é auto-reguladora, auto criadora.
Para o alquimista, o homem é um criador: ele regenera a natureza e
domina o tempo e aperfeiçoa a criação divina. Poder-se-á comparar esta
<<escatologia natural>> à teologia evolucionista, redemptória e
cósmica de Teilhard de Chardin, que é geralmente aceite como uma das raras
teologias cristãs otimistas. Será certamente esta concepção do homem e como ser
criador de uma imaginação inesgotável que explicará a sobrevivência dos ideais
alquimistas na ideologia do século XIX; ...(ELÍADE, 2000)
O ato criativo está enraizado nesta imensidão que é o inconsciente e
qualquer forma de entendimento a respeito dele, estará fadada ao fracasso.
Jung (1985) afirma que muito pouco pode ser falado sobre o artista, por
ele reconhecer que uma obra de arte é um produto complexo da atividade
psíquica. Seria leviano fazê-lo, pois tenderia ao achismo. Considerando que a
criatividade é originária de uma área onde a verdadeira vida psíquica tem a sua
origem, que é no inconsciente coletivo.
A totalidade dos processos psíquicos que se dão no quadro do consciente,
pode ser explicada de maneira causal; no entanto, o momento criador, cujas
raízes mergulham na imensidão do inconsciente, permanecerá permanentemente
fechado ao conhecimento humano. (JUNG, 1985 § 135)
Em seu livro “O Mito da análise”, Hillman (1984) devota um capítulo
inteiro sobre dimensões da criatividade, expressões criativas, investiga em sua
escrita, as noções que temos sobre criatividade e sobre as pessoas criativas,
os símbolos, metáforas, fantasias criadas acerca do assunto.
Hillman (1984) compreende a criatividade estando fora do domínio do
psíquico e corrobora com a idéia Junguiana de um instinto criativo. O autor
também reforça ser a criatividade um tema complexo e que nossa consciência não
é capaz de absorver e analisar toda aura que a envolve.
Converte o mistério criativo num problema a ser solucionado não é
somente indecente, é impossível. Analisar a criatividade significaria desnudar
a natureza do homem e a natureza da criação. Esses são mistérios que dizem
respeito a questões de onde viemos, do que vivemos e para onde retornamos. Não
se sujeitam a análise, a uma psicologia explicativa. Podemos especular e
fantasiar e com nosso logos contar uma história, isto é, confabular um pouco,
apresentando um mitologema como contribuição à criatividade, para celebrá-la,
comungar com ela; mas não nos encarregaremos de seu sacrifício (mesmo se isso
fosse possível), nem de seu desmembramento ritual, por meio da análise
psicológica. Portanto não haverá definição, que limita e corta, mas uma
ampliação, que estende e relaciona. (HILLMAN, 1984, p. 37)
Justifica que a criatividade está para além da alma, todavia é
intrínseco ao homem. “A força instintiva ectopsíquica[1],
porque vem de além da psique, é mais que humana e mais potente que seu
possuidor.” (HILLMAN, 1984, p. 41)
Hillman (1984) comunga com Jung quando, ao falar sobre o criativo como
instinto, não se restringir a poucos, sendo eles gênios ou artistas, seria
novamente confundir o artístico com ao criativo e em sendo instinto básico,
assim como fome, sexualidade, atividade e reflexão, é dado a todos.
Sobre a criatividade psicológica, Hillman (1984)
Mesmo sem talento artístico, mesmo sem a força egóica da vontade, mesmo
sem fortuna, uma forma do criativo está continuamente aberta para cada um de
nós: a criatividade psicológica. Fazer alma: nós podemos engendrar a alma. Ou,
como diz Jung, “Mas o que pode um homem ‘criar’ se por acaso não for um poeta?
(...) Se você não tiver absolutamente nada para criar, então talvez crie a si
próprio.” (HILLMAN 1984, p. 44)
Wassily
Kandinsky foi um dos grandes pintores de
todos os tempos, para ele a pintura
deveria expressar algo interior, não havia necessidade de uma mensagem para
intermediar, para ele “o essencial da forma é saber se ela nasceu ou não de uma
necessidade interior.” (2015)
Ainda sobre o instinto criador, Kandinsky
fala de uma maturidade alcançada através de uma necessidade de criar, podemos
fazer um paralelo a esse instinto criativo que exige ser satisfeito:
As necessidades
alcançam a maturidade quando chega a sua hora. Em outras palavras, é então que
o espírito criador (que se pode chamar de espírito abstrato) tem acesso à alma
e depois às almas, provocando uma inspiração, um impulso íntimo. (KANDINSKY,
2015, p. 140)
Sobre a necessidade da criatividade em gerar
formas:
Quando as condições
necessárias à maturação de uma forma específica estão preenchidas, essa
aspiração, esse impulso íntimo recebem o poder de criar no espírito humano um
novo valor, que começa a viver consciente ou inconscientemente no homem. A
partir desse momento, o homem busca consciente ou inconscientemente um forma
material para o valor novo que vive nele sob uma forma espiritual. (KANDINSKY,
2015, p. 140//141)
No próximo texto será dada a continuidade desse fragmento de minha
monografia, com o título “A Criatividade e o Mito”.
[1] A ectopsique é um sistema de relacionamento dos conteúdos da consciência
com os fatos e dados originários do meio ambiente, um sistema de orientação que
concerne à minha manipulação dos fatos exteriores com os quais entro em contato
através das funções sensoriais. (Jung, 1998, p.9).
REFERÊNCIAS
Dicionário Houaiss.
ELIADE, Mircea – O Mito da Alquimia. Rio de Janeiro. Editora Fim do
Século, 2000.
HILLMAN, James. O Mito da Análise: três ensaios de psicologia
arquetípica; tradução de Norma Abreu Telles. – Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984. (Coleção Psiquê; v.1)
JUNG, C. G. Determinantes psicológicas do comportamento humano. In:
______. Obras Completas de C. G. Jung. Volume VIII: a dinâmica do inconsciente.
Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. 3ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes,
1988.
_______. Mysterium Coniunctionis: Pesquisas sobre a separação e a
Composição dos Opostos Psíquicos na alquimia / C.G. Jung., com a colaboração de
Marie-Louise von Franz; tradução Valdemar do Amaral; revisão literária Orlando
dos Reis; revisão técnica Jette Bonaventure. - Petrópolis. RJ: Vozes .2015.
JUNG, C.G. Psicologia e Alquimia, vol. 12, Vozes: Petrópolis, 1994.
JUNG, C. G. Psicologia e poesia. Tradução de Dora Ferreira da Silva e
Ruben Siqueira Bianchi. In: ______. Obras Completas de C. G. Jung. Volume XV: O
espírito na arte e na ciência. Tradução de Maria de Moraes Barros. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1985.
KANDINSKY, Wassily Do Espiritual na Arte; tradução Àlvaro Cabral,
Antonio e Pádua Danesi. – 3. Ed. – São Paulo: Martins fontes – Selo Martins,
2015.
NEUMANN, Erich – História da Origem da consciência. Ed. São Paulo:
Cultrix, 2014.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 13. Ed.
Petropólis: Vozes,1991.
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Sobre a autora: Selma Lessa
Psicóloga/ Arteterapeuta/Artista visual/ Instrutora de Yoga Integral
Pós-Graduada em Arteterapia
Pós-Graduanda em Psicologia Analítica
Colaboradora e professora do Ateliê de Artes e Terapias Eveline Carrano.
Eu vejo o olhar da Selma de uma forma integral ao olhar do fazer artístico aliado ao terapêutico.
ResponderExcluirE essa integralidade nos preenche o vazio que trazemos, nos chama a percepção de quem somos. O silêncio que grita. A felicidade q quer ser liberta. O grito na garganta através dos fazeres artísticos.
Selma, obrigada pela ajuda do oferecimento do seu doar para o acolhimento do Outro. Bjs!
Obrigada Selma. Seu estudo é aprofundado e exige tempo para uma reflexão mais aprofundada. Retenho de imediato essa questão que me toca particularmente. Quantas vezes nossas atividades profissionais nos levam para longe de nós mesmos? Pensamos estar realizando um trabalho significativo quando na verdade estamos sendo movidos por impulsos arcaicos, heranças familiares e auto-obrigações... afastando-dos da salutar criatividade. Pensamos estar realizando uma carreira, mas cada vez mais nos distanciamos do que realmente importa para nós. Muito bela a atividade dos arteterapeutas. Parabéns.
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