segunda-feira, 6 de maio de 2024

DIÁLOGO DO BARRO COM O PROCESSO DE APRENDIZAGEM DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA VISUAL: RELATO DE EXPERIÊNCIA



Por Lucia Palermo - RJ

llpalermo5@gmail.com


INTRODUÇÃO

Meu Interesse pela cerâmica na Fundação Mokiti Okada, no Rio de Janeiro, há alguns anos, começou quando eu ainda não era da área de educação. Não só a trajetória de vida, mas também a formação acadêmica levaram-me a praticar e entender a Arte Cerâmica como um elemento que, num processo intencional de significação, contribuiria para o crescimento do ser humano de forma inter e intrapessoal. E foi a partir dos Projetos de Pesquisa da Pós-graduação em Arteterapia, que coloquei em prática aquilo em que eu acreditava. 


A partir do desenvolvimento do Projeto Caminhos Facilitadores, é possível descrever a proposta consciente de um paradigma não linear permeando o objetivo de uma visão pedagógico da matéria prima barro/argila, como uma ferramenta de auxílio na alfabetização de crianças  e adolescentes cegos e baixa visão, do Instituto Benjamin Constant - IBC, o qual é um Centro de Referência, a nível nacional para questões da deficiência visual. O IBC tem uma     Estrutura Regimentar, integra vários Departamentos e Atividades.


O Deficiente Visual, seja cego ou com baixa visão, tem com todos os recursos possíveis, pouco acesso às informações visuais e, portanto, sua necessidade educacional especial é ter disponível outras fontes adaptadas de informação para que o conteúdo acessível a ele seja o mesmo daqueles que enxergam (NUNES; SAIA; TAVARES, 2014)


A Oficina Inclusiva de Cerâmica com Fins Pedagógicos, que é parte integrante do Projeto Caminhos Facilitadores, procurou desenvolver ao longo do processo, como a Arte e a Arteterapia poderiam contribuir, para minimizar e/ou facilitar a dificuldade da leitura e da escrita dos alunos Deficiente Visuais do IBC, com vivências da linguagem visual e tátil. E assim, foram desenvolvidas com os alunos, adaptações curriculares, que são estratégias que favorecem o desenvolvimento do estudante no contexto de sua escola, considerando suas individualidades, através do princípio de atenção à diversidade, pois nesse aspecto centrado na aprendizagem, a informação é arquitetada e reconstruída continuamente (JOSÉ E COELHO, 1989. In CARLOU, 2018).


Quando existe uma falha no ato de aprender, segundo Ciasca, 2004, esta exige uma modificação dos padrões aquisição, assimilação e transformação, seja por vias internas ou externa do indivíduo (NERES; CORRÊA, 1992-2017).

 

“A matéria-prima formada pela energia psíquica antes difusa e fugidia ganha um continente. Assim, à etapa de dar forma, segue-se a possibilidade de In-Formar, cumprindo-se a função transcendente. A forma permite que surja a compreensão, a codificação e a atribuição gradual de significado pela consciência. O deslocamento seguinte é que, da informação, surge a possibilidade de transformação, ou seja, a ‘ação de atravessar a forma’ e já está pronto para um novo estágio de funcionamento, comunicação e expressão.” (Philippni, 2008, pg. 51).

Ao atravessar as transformações, o homem se configura, se recria.

DESENVOLVIMENTO      



                                                                                                 

 

Crianças com dificuldade de aprendizagem não apresentam distúrbios neurobiológicos, isto quer dizer que os problemas apresentados têm caráter provisório e suas causas     podem ser localizadas em diferentes dimensões do processo de aprendizagem do indivíduo. Consideramos que, estas dimensões são: a) social; b) pedagógica; c) psico-afetiva; d) psico-cognitiva; e) orgânica (WEISS & CRUZ, 2011).

 

No início do Projeto, ainda explorando o espaço físico, foi observado, que os alunos cegos da Oficina Inclusiva de Cerâmica com Fins Pedagógicos, não tinham uma noção adequada dos conceitos espaciais e por isso, para que se locomovessem de forma mais independente no ambiente da sala, iniciamos a prática oral e tátil, conscientizando-os da localização da posição do mobiliário já existente na sala, onde estavam os materiais a serem utilizados por eles, o local onde os aventais se encontravam pendurados, onde se colocavam as mochilas, localização da pia e de como encontrar a bica através do tato, ou seja, fazendo o reconhecimento de todo o ambiente, pois como afirma Gil (org. N1/2000), os recursos fundamentais de que dispõe para ajudar a integrar as informações recolhidas no ambiente, é a percepção tátil e a sonora, além da afetividade.


Com o passar do tempo, de forma gradativa e respeitando o tempo de cada aluno, fomos observando o que poderia estimular ainda mais a capacidade de cada um. Fui observando que preferiam o tom de voz baixo e a forma exploratória tátil e individualizada para todas as orientações prévias necessárias ao desenvolvimento das atividades artísticas/pedagógicas.

                                   

A interação propiciada pelas temáticas sugeridas muitas vezes por eles mesmos, tendo como ponto de partida a vida social e cultural da História da Cerâmica e a da Cerâmica Marajoara e sua Geometrização, contada de forma contextualizada e com interação, enriquecia a busca do processo de aprendizagem e o desejo deles construírem suas obras/cerâmica. Eles respondiam não só concretamente, mas também cognitivamente. Era maravilhoso. Quando percebemos que já se fazia presente a evolução da aprendizagem dos alunos, resolvi (como proponente do projeto e docente da Oficina Inclusiva) continuar a desenvolver o projeto por mais um ano, logicamente  após ter conversado e acordado com a Chefe da Divisão de  Ensino/IBC.


Segundo Assman (2004), o Tempo Pedagógico é o tempo dedicado a produzir vivências do prazer de estar aprendendo. O tempo da escola só se transforma em tempo pedagógico quando seu transcurso cria um espaço e um clima organizativo propício às


experiências de aprendizagem e como afirma Gil (org. N1/2000), o aprendizado da leitura e da escrita em Braille requer um elevado desenvolvimento das habilidades motoras finas, além da flexibilidade nos punhos e agilidade nos dedos.




 

A linguagem visual/tátil da geometrização da Cerâmica Marajoara, como proposta para o desenvolvimento do processo de alfabetização, através da argila como recurso tátil, teve subjacente o desenvolvimento psicomotor; o desenvolvimento das habilidades básicas necessárias ao preparo da leitura e da escrita como diz José e Coelho (1989); o desenvolvimento de uma diversidade de noções conceituais de forma concreta, como afirma Nascimento (1997), empregadas no processo inicial da alfabetização permitindo uma compreensão mais fácil e o uso flexível de conceitos; o desenvolvimento da percepção tátil.

 

Constatei através do diálogo com os alunos, com observação constante e com as informações passadas pelos seus responsáveis, que as limitações não eram apenas da falta da visão e da parte motora. E foi permeando as experiências sensoriais, perceptivas e reflexivas nas construções concretas, de forma individual e em grupo, inicialmente através da argila e posteriormente de outros recursos materiais que iniciei o caminho para minimizar também as outras limitações.

Iniciamos com a exploração das mãos como identificação de si próprio, que como afirma Ostrower (2002), a percepção de si mesmo dentro do agir é um aspecto relevante que distingue a criatividade humana. [...] o ato intencional pressupõe existir uma mobilização interior, não necessariamente consciente, que é orientada para determinada finalidade antes mesmo de existir a situação concreta para a qual a ação seja solicitada.

Alguns alunos apresentavam algumas dificuldades por não terem podido ser estimulados quando ainda menores, então a partir do vínculo afetivo, foi promovido a re-significação do desenvolvimento das sensações tátil-cinestésicas. E foi de forma gradativa e em vários momentos, que cada elemento da natureza ou material diferenciado proposto para as atividades, foram explorados de forma tátil (cegos) e visual (ampliados através da lente de aumento para o aluno baixa visão).

 

Após estes momentos de sensações e de identidades, durante o processo de ensino aprendizagem, de forma oral e dentro da fase de entendimento de cada um, foi feita uma analogia das silhuetas das mãos dos alunos com a  Arte Rupestres da Pré-História procurando passar para eles, que significava uma forma de expressão e interação entre o homem e a natureza, transformando-a e transformando-se. Faziam muitas perguntas. Mostravam-se interessados e queriam tatear as paredes para sentirem como era. De acordo com PHILIPPINI (2008), [...] neste universo de mãos e materialidade construímos nossa autonomia expressiva e ativamos nosso processo criativo, deste modo, estas mãos são instrumentos potenciais de germinação e construção. Também, afirmam JOSÉ e COELHO (1989), que o preparo para iniciar a leitura e a escrita (alfabetização) depende de uma complexa integração dos processos neurológicos e de uma harmoniosa evolução de habilidades básicas. Assim, sendo o esquema corporal uma das várias habilidades básicas, e que implica o conhecimento do próprio corpo, de suas partes, dos movimentos, das posturas e das atitudes, deve ser estimulado. Continua afirmando, que a criança que não consegue desenvolver bem o seu esquema corporal pode ter sérios problemas em orientação espacial e temporal, no equilíbrio e na postura; dificuldade de se locomover num espaço [...]. 

 

E foi a partir dessa conscientização de suas identidades e do valor que cada uma das mãos representava, que começamos um caminho constante, gradativo e agradável do ensino aprendizagem dos elementos básicos que permitissem apreender as noções básicas de geometria, exercícios psicomotores, técnicas básicas da modelagem da argila, e [...] outras estratégias de ensino flexível e diferenciadas de modo a proporcionarem experiências de aprendizagem adequadas e desafiantes [...] (CARLOU, 2018),  resultando mais tarde na evolução dos alunos, propiciando a aprendizagem.


 

CONSIDERAÇÕES  FINAIS

 

Entendendo, que uma aprendizagem se faz necessária e que através de materiais expressivos, tendo a Arte Terapia dialogando com o desenvolvimento dos conceitos básicos necessários à alfabetização, com a articulação dos conceitos da metodológica trazida por Ana Mae Barbosa: fazer artístico, apreciação/tátil significativa e construção do conhecimento, aliado à afirmação de que os alunos com Deficiência Visual, utilizando estratégias pedagógicas adaptadas e dando ênfase às suas potencialidades e não às dificuldades, os alunos, conseguiram no final do projeto, alcançar uma harmoniosa evolução da leitura e da escrita, em Braile e em Tinta. O Projeto contou com uma equipe multidisciplinar da área de saúde, com a colaboração da Supervisão de Ensino – DEN do IBC, das estagiárias do Curso de Pedagogia da Universidade Veiga de Almeida-UVA/RJ, de voluntárias.



 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ASSMAN, Hugo. Reencantar a Educação. Ed. Vozes, 2004.

BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. São Paulo: Coprtez, 2002.

CARLOU, Amanda. Estratégias Pedagógicas para Ensino-Aprendizagem de Estudantes com Necessidades Educacionais Especiais. Revista Espaço Acadêmico –n.205-Junho/2018- mensal – ANO XVII.

CIASCA, Sylvia Maria. Dificuldade de Aprendizagem: compreender para melhor educar. Simpro, Ano5 - nº 6 – Maio, Rio, Rio de Janeiro: 2004

GIL, Marta (org). Deficiência Visual. Caderno da TV Escolaa.Brasília: Mec. Secretaria de Educação a Distância, N1/2000. 80.:Il (Cadernos da TV Escola.1.ISSN 1518-4692)

JOSÉ, Elizabete da Assunção; COELHO, Maria Teresa, ET al. Problemas de Aprendizagem. São Paulo: Ática, 1989.

NASCIMENTO, Regina Maria do, ET al. Arteterapia Revista Imagens da Transformação. R.J.: Clínica Pomar, 1997. Vol.4/6.

 NERES, Celi Corrêa; CORRÊA, Nesdete Mesquita. Análise dos Artigos na área da Deficiência Visual Publicados na Revista Brasileira de Educação Especial (1992-2017).

NUNES, Sylvia da Silveira; SAIA, Ana Lucia; TAVARES, Rosana Elizete. Artigo Educação Inclusiva: Entre a História, OS Preconceitos, a Escola e a Família. Universidade Federal de Alfenas; Universidade Federal de Itajubá, 2014.

PHILIPPINI, Ângela. Imagens da Transformação. Revista de Arteterapia. Agosto/1996-N.3-Vol.3

PHILIPPINI, Angela. Para entender Arteterapia: cartografias da coragem. 4 ed. – Rio de Janeiro: Wak: Ed., 2008.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 16ª ed. Petrópolis:Vozes, 2002.


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Sobre a autora: Luigina Lucia Palermo Antas




 

Formação:

Arteterapeuta AARJ 672/0515

Graduação em Pedagogia/ Licenciatura Plena

Graduação em Educação Artística - Artes Visuais

Pós graduada em Arteterapia em Educação e Saúde

Pós graduada em Psicopedagogia

Formação Clínica em Arteterapia  na Clínica POMAR

 

Área de atuação/projetos/trabalho:

Professora de Artes Plásticas no Município do Rio de Janeiro, no âmbito da Secretaria Municipal de Educação. Servidora Pública Ativa na Escola Municipal Vital Brasil/ RJ e na Escola Municipal Albert Schwheitzer/RJ.

 

Proponente, coordenadora e docente do Projeto Caminhos Facilitadores do Desenvolvimento Humano – Publicado no site Instituto  Arte na Escola em Relato de Experiencia; Publicado no Caderno de Resumo dos Anais do CEDERJ , após conclusão do Curso de Aperfeiçoamento em Educação Especial e Inclusiva para Professores de Educação Básica/Fundação CECIERJ.

 

Projeto  “Todos Somos: Arte e Cultura Africana” – Certificado como Semifinalista no XIX Prêmio Arte na Escola Cidadã/São Paulo

Um comentário:

  1. Querida Lucia, que alegria ver este texto tão rico em conteúdo e possibilidades, ampliando a atuação do Arteterapeuta em contextos diferenciados e promovendo inclusão com tanta potência. Espero que seja o primeiro de muitos outros textos. Parabéns e seja bem vinda à Rede Não Palavra. Com carinho, Tania Moreira

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