Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
@naopalavra
Temos vivenciado no grupo Quíron reflexões sobre nossos caminho de vida,
sobre a condição humana de ser um peregrino. Muitas vezes, nossas reflexões
são aquecidas pelas palavras da querida Beatriz Cardella, psicóloga, gestalt
terapeuta e professora formadora de terapeutas, que tão precocemente nos deixou
na última semana. Em espercial, Bia – como gostava de ser chamada – nos acompanha
através do livro “De Volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica
contemporânea”.
Pessoalmente, meu encontro com Beatriz e seu livro, aconteceu em 2020, tornando-se uma leitura estrutural para o processo de meu retorno à minha cidade natal, Belo Horionte, no ano seguinte. Não há dúvidas de que os escritos de Beatriz atravessam nossa vida profissional e deixam marcas em nossa vida pessoal.
Tratar da morada é
fundamental, já que umas das principais problemáticas do mundo contemporâneo
são os desenraizamentos nas suas diferentes formas...
Estamos todos, de certa forma, desalojados, esquecidos das raízes, da origem, desabrigados, impossibilitados de habitar e encontrar lugar entre os outros. De certa forma somos todos sem-teto existenciais. E sofremos. Precisamos voltar para casa e nos recordar que somos humanos. (CARDELLA, 2020, 28)
Em seu livro Beatriz discorre sobre vários aspectos dessa angústia
existencial atualizada na escuta clínica cotidiana. Em síntese a autora defende
que:
Na clínica
isto significa que o terapeuta precisará reconhecer asnecessidades fundamentais
da dignidade humana que constintuem o ETHOS, como por exemplo: a hospitalidade,
o pertencimento, o reconhecimento, a singularidade, a criatividade, a
responsabilidade, a transcendência, entre outras…
Essas formas de sofrimento se caracterizam como Desenraizamentos, a perda das raízes na condição humana. (CARDELLA, 2020, 52-53)
Para Beatriz, somos
todos peregrinos, caminhantes, vivendo experiências e passagens que geram sofrimentos,
aprendizados e resiliência. Porém, é possível que essa jornada seja aquecida por
uma específica “experiência de casa”: aquela que um setting terapêutico,
que comporta uma relação terapêutica, pode gerar:
Ao longo de trinta anos de trabalho como psicoterapeuta percebi que a casa é uma das metáforas fundamentais para tratar o trabalho clínico e da relação terapêutica, lugar de hospitalidade, ternura e cuidado... (CARDELLA, 2020, 27)
Nessa perspectiva, o trabalho terapêutico só pode acontecer se a relação se configurar morada, lugar, onde a pessoa que busca ajuda possa encontrar o terapeuta-anfitrião, o outro-raiz, que a acolha em sua humanidade, recordando-a de si mesma. (CARDELLA, 2020, 29)
Esse ponto de assossego, em meio à caminhada peregrina, proporciona refrigério, nutrição, enraizamento, estrutura, mas não direcionada para o fim do caminho. Segundo a autora, é a “experiência de lar” que possibilita a diferenciação entre o ser peregrino e o perambulante, perdido e desorientado:
Acolhemos a pessoa para que ela possa partir, para que ao invés de viver perambulando possa de fato, caminhar, realizando a obra de ser si mesma mirando o horizonte de seus valores fundamentais. (CARDELLA, 2020, 29)
Com Beatriz Cardella aprendemos sobre a profunda importância de nos oferecermos uma “experiência de lar”, seja ela qual for, mas que para nós faça sentido, pois:
Paradoxalmente, essa é a única possibilidade de resgatarmos nossa condição peregrina, caminhante, e mirarmos o horizonte da existência a partir da singularidade que nos caracteriza, tornando a vida uma criação, a possibilidade de habitar poeticamente o mundo. (CARDELLA, 28)
O paradoxo da "experiência de lar" para a vivência de uma condição peregrina foi lindamente traduzido por uma das participantes do Grupo Quíron que, generosamente, permitiu que sua imagem ilustrasse nossa caminhada. Nela, uma casa apoiada em um skate em movimento, orientada pela palavra "vida" que dentro de sua composição, encontramos a palavra "ida".
A casa como símbolo
Corroborando com as reflexões de Beatriz Cardella e orientada pelos seus escritos, na clínica arteterapêutica por vezes emerge o símbolo da casa como reflexão. Pude perceber que através desse símbolo podemos delinear algumas camadas como:
Casa-eu
Casa-corpo
Casa-psíquica
Casa-alma
Casa-moradia
Casa-trabalho
Casa-religiosidade
Casa-espaço
geográfico
Casa-cultura
Casa-relações
Casa-pertencimento...
Para aquecer a reflexão e dar forma aos conteúdos subjetivos do paciente, tenho utilizado o origami de casa, bidimensional ou tridimensional – a depender do perfil do experienciador. Com essa proposta observamos o que Fayga Ostrower descreve como a matéria objetivando a linguagem, e dessa forma possibilitando que o criador dialogue frente a frente com sua “experiência de lar”, em qual camada lhe convidar à reflexão naquele momento.
Para encerrar esse texto, devolvo à Beatriz Cardella a poesia que dedicou à memória de Fritz Perls em seu livro “De volta para casa”. Hoje, colocamo-nos todos, respeitosamente, no lugar de discípulos, bendizemos Beatriz e tudo o que ela nos ensinou.
A discípula
Bendita a
espécie extinta,
A que voltou
ao repouso em sua origem
E não
peregrina mais,
Benditos
todos que no cativeiro
Por ânsia de
eternidade multiplicam-se,
Bendito o
modo como tudo é feito.
Ancestrais,
luxuoso nome
Para quem
apenas errou antes de nós!
Benditos,
Bendita hora
da tarde
Em que uma serva
repousa
Descansada
de dor e consolo.
Adélia Prado
– Oráculos de Maio
Referência Bibliográfica:
CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos “De Volta para casa: ética e poética
na clínica gestáltica contemporânea”. 2020
Sobre a autora: Eliana Moraes
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