Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
@naopalavra
Compreendemos que, dentre as
modalidades terapêuticas, a Arteterapia possui uma especificidade: a entrada do
terceiro elemento, o material e tudo o que ele envolve. Assim, na dinâmica do setting
arteterapêutico forma-se uma tríade: paciente-arteterapeuta-material.
Parte essencial do nosso
estudo se dá na observação do fenômeno que se constela entre paciente e
material. Entretanto, a via da relação entre o material e o arteterapeuta
também se dá como um eixo estruturante desse profissional. Considerando
que o arteterapeuta pretende se colocar como facilitador do processo criativo
de outros experienciadores, sabemos da importância de que ele conheça e seja
capaz de manejar bem as múltiplas materialidades possíveis, para que possa
oferecer cada uma delas com conhecimento técnico bem como de instrumentalizar os
experienciadores com muita ou pouca experiência criativa. Entretanto, como a
Arteterapia se constitui como uma formação que recebe pessoas com diversas
formações anteriores, muitas vezes a vivência do próprio processo criativo e a construção
de intimidade com os materiais são, muitas vezes, construídas a partir do curso.
E assim, deve seguir em desenvolvimento enquanto o profissional se pretender
atuar na área.
Essa é uma temática que venho
ecoando e escrevendo, para que possa permanentemente lembrar ao arteterapeuta
de sua importância. Esse é um tema que por vezes parece óbvio, mas justamente não
raras vezes, o óbvio sai do nosso campo de visão e ele se perde. E quanto ao
tema mencionado, observo no meu cotidiano como supervisora de estudantes e arteterapeutas
formados o quanto a experiência pessoal com a materialidade, com a criatividade
e com as imagens produzidas fazem falta no cotidiano do arteterapeuta.
Para corroborar com essa
pesquisa, hoje contemplaremos as palavras de Angela Philippini em seu livro “Cartografias
da coragem”, mais especificamente o capítulo “O arteterapeuta: acompanhante
especial”.
Segundo a autora:
Favorecer a expressão e
expansão das atividades criativas de cada cliente através do convívio
terapêutico será facilitado também pela construção e ampliação das próprias
vivências criativas do arteterapeuta. (PHILIPPINI, 2013, 25)
Contudo, esse se mostra um desafio desde o
início da formação:
Esta é,
certamente, um das primeiras dificuldades no trabalho de formação de novos
arteterapeutas pois muitos chegam ao processo com pouca ou nenhuma intimidade
com a arte e suas manifestações. E se uma das tarefas do arteterapeuta é
resgatar as possibilidades criativas de seus clientes, mantendo um convívio
terapêutico diário com o processo criativo, é fundamental que possa
construir e ampliar suas próprias vivências criativas. (PHILIPPINI, 2013,
23-24)
Formar-se
em Arteterapia é mais do que um aprendizado. A verdadeira formação se inicia
com a experiência do “fenômeno” proporcionado pela vivência arteterapêutica. Todo
arteterapeuta reconhece, por teoria e prática, que o fenômeno arteterapêutico
deve acontecer primeiro em si. Somente através da experiência será possível
associar o fenômeno com os embasamentos teóricos. Somente a partir da união
desses recursos o arteterapeuta poderá fazer o bom convite para que outro
experienciador se aventure ao desbravar de uma nova caminhada expressiva e
terapêutica, oferecendo-lhe segurança para que encontre seus próprios recursos
e caminho. Nas palavras de Philippini:
Para transformar-se em
observador presente, ativo, empático companheiro nesta aventura do construir-se e
transformar-se pela via das imagens, precisará o arteterapeuta do contínuo
trabalho de auto desvelar-se expressivo do ateliê. Precisará do
aprofundamento da pesquisa em sua linguagem
plástica particular, a qual deve ser
reciclada e renovada continuamente, para que assegure uma comunicação fluente
através de estratégias expressivas diversas. Deste modo, estará
efetivamente contribuindo para amenizar bloqueios no processo criativo de seus
clientes e facilitando que estes possam encontrar e/ou construir suas próprias
alternativas de reconhecimento e transformação através da sua
produção imagética. A necessária contemplação advêm
do contínuo estudo no
modelo teórico escolhido para
nortear sua prática terapêutica e do persistente trabalho
de autoconhecimento em seu próprio processo terapêutico. (PHILIPPINI,
2013, 26)
É importante destacar que a
autora descreve como imperativo à sustentação do arteterapeuta a terapia
pessoal, e na mesma proporção da experiência pessoal com a arte:
[...] é
inaceitável que um arteterapeuta, ou qualquer outro terapeuta,
aventure-se ao trabalho terapêutico sem o essencial
suporte de sua própria terapia, seja individual ou
grupal.
Do
mesmo modo, se não criar continuamente,
não estará apto a desbloquear o processo criativo de ninguém
e tão pouco poderá ser produtivo como terapeuta, se
não estiver em contínuo processo de ver-se, rever-se, ouvir-se, e desvelar-se [...] (PHILIPPINI, 2013, 26)
Compreendendo
a Arteterapia como um procedimento terapêutico baseado na psicologia profunda e
nos caminhos do inconsciente, constatamos ser estrutural que o arteterapeuta
também se dedique a sua própria produção de imagens e diálogo com seu próprio universo
simbólico para investir em sua estrutura pessoal e diferenciar-se da produção simbólica de seu
paciente, o que por vezes mostra-se desafiador:
Em contrapartida, o papel
de acompanhante do processo arteterapêutico assegura o privilégio de ser
estimulado por singulares processos de criação,
ser instigado e sacudido por imagens fascinantes e surpreendentes, e também, eventualmente,
ser confrontado por formas as quais poderão ser vividas como difíceis e
ameaçadoras.
Acredito
que estas são boas razões para que o
arteterapeuta cuide de estar em bons termos com suas próprias imagens internas,
o que poderá ser favorecido pela frequência regular a um ateliê ou oficina de
criação onde possa pesquisar e desenvolver sua própria linguagem expressiva.
(PHILIPPINI, 2013, 24)
Tenho
defendido que é nesse ponto que se encontra o potencial de constratransferência
específica do arteterapeuta. No texto “O arquétipo do curador ferido e o
arteterapeuta” (2023) descrevo:
E aqui reside uma das
especificidades mais caras do arteterapeuta: sua contratransferência aparece
quando este projeta seu próprio universo simbólico no processo criativo e nas
formas produzidas por seu paciente [...] Enfim, é essencial que o
arteterapeuta esteja de posse da sua relação pessoal com seus símbolos
recorrentes, seus gestos, traços e cores, os materiais e linguagens que lhe
acessam ou provocam resistência, para assim evitar que seu universo simbólico
arteterapêutico seja projetado nas imagens, processos, materialidades,
temáticas, e consignas trabalhadas com seus pacientes.
É importante destacar que o
arteterapeuta lidando com conteúdos “não palavra”, o potencial projetivo se dá
de forma mais sensível e ampliada. O antídoto para evitar a
contratransferência imagética está na manutenção de um espaço e tempo separado
para que o arteterapeuta permaneça em contato pessoal com as materialidades,
seu processo criativo e produção de imagens pessoais. (MORAES, 2023)
Retomando
o início de nossa reflexão, a Arteterapia como um procedimento terapêutico que
se diferencia por basear-se na tríade paciente-terapeuta-material para fins
clínicos, possui suas especificidades e singularidade. Faz-se importante que o
arteterapeuta reconheça a unicidade dessa prática tão potente e não se deixe
cair em sutis convites para a desconexão com sua essência. Philippini recorda
que:
Allen (1992)
aponta os riscos de síndrome da clinificação que pode acontecer aos
arteterapeutas, comprometendo sua produção artística [...] arteterapeutas
são terapeutas muito singulares, por utilizarem
a arte como mediadora e suas atividades clínicas e seu
bom desempenho depende fundamentalmente da
manutenção e exercício constante de sua própria
prática expressiva...
Assim, que
os arteterapeutas apostem na diferença e não na tentativa improdutiva de
semelhança a outras abordagens clínicas. A produtividade da Arteterapia
reside basicamente na possibilidade de facilitar caminhos expressivos
singulares para cada cliente e o fluir neste processo vem da prática,
experimentação e estudo de modalidades expressivas diversas. Evitando cair na
armadilha de “ter que” unificar a linguagem ou
utilizar práticas homogeinizadoras, cabe zelar pelos territórios de criação,
sejam internos ou externos. (PHILIPPINI, 2013, 24)
A Psicanálise, e por
decorrência a Psicologia, orientam que a sustentação de um bom
analista/psicoterapeuta deve ter como base um tripé: a terapia pessoal, a
supervisão e o estudo teórico individual e grupal. Tendo em vista a especificidade
da Arteterapia desenvolvida nesse texto, tenho escrito sobre a “quarta perna” que
sustenta o arteterapeuta: a experiência pessoal com os materiais, o processo
criativo e produção de imagens. Assim, construímos “o quadripé” que sustenta o
arteterapeuta representado pelo esquema abaixo:
Esquema desenvolvido pela autora
Com a produção de textos
sobre esse tema e outras especificidades da Arteterapia pretendemos cooperar
para que o arteterapeuta se reconheça naquilo que nos diferencia de outras modalidades
terapêuticas, que se sinta seguro em atuar com a técnica arteterapêutica,
reconhecendo a grande potência contida na Arteterapia em si. Nosso desejo é
que:
Assim, em Arteterapia,
que se possa apostar naquilo
que nos distingue como terapeutas, a promoção de saúde por meio da Arte e do
exercício constante na prática expressiva. Para tanto, cabe evitar
algumas armadilhas, cuidando de manter bem protegido e bem cuidado o próprio
território de criação. E, sobretudo,
aprendendo a criar mecanismos de livre expressão, fortalecendo a própria
autonomia criativa.(PHILIPPINI, 2013, 25)
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