Por Eliana Moraes - MG
naopalavra@gmail.com
O fenômeno da projeção dá-se como
um tema de grande importância a ser estudado pelo arteterapeuta. Algumas teorias
buscam pesquisar sobre esse fenômeno mas compreendo que a Psicologia Analítica
mostra-se como um bom ponto de partida para esse estudo. Acredito que a
Arteterapia pode articular-se com as mais variadas teorias psicológicas, dentre
elas a Psicologia Analítica. Sendo a amplitude
do fluxo projetivo uma das especificidades de um setting arteterapêutico,
torna-se muito válido compreender as palavras de Jung que muito me orientam em
meu trabalho: “A razão geral e psicológica das projeções é sempre um
inconsciente ativado que busca expressão.” (JUNG apud SHARP, 1991, 127)
No percurso desse estudo encontrei
o livro “Psicoterapia” Marie-Louise von Franz que aborda diversos temas da
Psicologia Analítica, em especial o capítulo: “A projeção: seu relacionamento
com a doença e com o amadurecimento psíquico”. Nesse capítulo Von Franz discorre
sobre a projeção no cotidiano, o que demonstra a validade de seu estudo para o
embasamento da escuta do terapeuta quanto às demandas trazidas pelo paciente sobre
suas relações interpessoais.
A autora inicia o capítulo
conceituando a projeção:
Na visão de Jung [...] todos os conteúdos psíquicos dos quais ainda não temos consciência aparecem de uma forma projetada como supostas propriedades de objetos externos. A projeção, a partir desse ponto de vista, é um deslocamento que ocorre de uma maneira não intencional e inconsciente, ou seja, sem ser percebido, de um conteúdo psíquico subjetivo para um objeto externo. Nesse processo, o inconsciente da pessoa que faz a projeção, via de regra, não escolhe simplesmente qualquer objeto ao acaso, e sim aquele que contém algumas, ou até muitas, das características da propriedade projetada. Jung fala de um “gancho” no objeto no qual a pessoa que faz a projeção a pendura como um casaco. (VON FRANZ, 1990/2021, 307-308)
É importante considerar que a
projeção é um movimento inconsciente automático e cotidiano. Mais além, a
projeção promove uma “ponte” entre o indivíduo e uma outra pessoa, um objeto,
uma experiência, ou seja, com o mundo exterior. Inicialmente ela é, de fato,
mobilizadora de experiências de vida, sejam elas positivas ou negativas. Elas
podem gerar simpatia, antipatia, interesse, rejeição, aproximação, afastamento,
enfim, vivências geradas pelo cotidiano. Ela não é “boa” ou “má” em si, apenas
devemos observá-la com mais atenção quando constatamos que uma manifestação
projetiva ou sua retirada provocou uma resposta intensificada no sujeito:
Somente quando
nossa energia psíquica por algum motivo se retira dessas projeções, por
exemplo, quando nosso amor se transforma em rejeição ou nosso ódio começa a
parecer absurdo até para nós mesmos – somente nesse ponto é chegada a hora, a
oportunidade de reflexão se apresenta, para que nós reconheçamos a até então
inconsciente projeção. (VON FRANZ, 1990/2021, 311)
Segundo a autora, em todo
processo de projeção envolve um emissor e um receptor. Elas emanam dos
complexos ou arquétipos do inconsciente do emissor como uma forma pontuda, como
uma flecha mágica ou um míssil:
A projeção dos
conteúdos psíquicos não percebidos conscientemente provoca no emissor a “perda
da alma”, uma das doenças mais temidas entre os povos nativos. Isso torna o
indivíduo apático, depressivo ou suscetível de ser dominado pelas outras
pessoas. (VON FRANZ, 1990/2021, 313-314)
Na visão primitiva, um deus,
demônio ou pessoa má lançava as “pontas mágicas”. O receptor atingido ficava
doente e a extração do projétil o curava:
O indivíduo
sobre quem outra pessoa faz uma projeção também é afetado – na visão primitiva,
ele é afetado por uma flecha. Se o receptor tiver consciência do ego fraca
(como as crianças, por exemplo), será facilmente influenciado e levado a agir
de acordo com o que foi projetado sobre ele. Na visão primitiva, significa que
ele está possuído. Nós nos sentimos compelidos a nos relacionarmos com a paixão
de outra pessoa por nós, ou fazemos involuntariamente ao indivíduo a coisa má
que ele está esperando de nós baseado na sua projeção. (VON FRANZ, 1990/2021,
314-315)
Aqui reside uma das maiores
importâncias de se estudar o fenômeno da projeção para o desenvolvimento da
escuta terapêutica. Os sofrimentos e queixas trazidos pelo paciente/cliente
muitas vezes envolvem tramas projetivas em suas relações pessoais, seja
amorosa, familiar, profissional ou social. Como emissores ou receptores, os
indivíduos relatam seus encontros e desencontros causadores de intensas experiências
que, a depender da maneira que são vividas, causam algum impacto emocional
importante.
Ampliando essa perspectiva,
faz-se necessário ressaltar que nos dias atuais, vivemos em um campo altamente
propício para que essas trocas projetivas aconteçam. Na esfera coletiva esses
fenômenos também se manifestam, tendo sido estudados em outros momentos da
história. Porém, ao lermos a descrição sobre as manifestações das projeções de
Von Franz, temos a impressão de que descreve nossos dias e observamos que sua articulação
teórica faz eco a tantos de nossos casos clínicos atuais:
A manifestação
mais gritante das projeções se dá nas rígidas convicções políticas – os “ismos”
– e nas teorias apaixonadamente defendidas, como ideias científicas
preconcebidas. Tão logo a tolerância e o humor desaparecem, podemos supor que
as projeções entraram em cena. Quando notamos que alguém está reagindo com uma
afetividade exagerada em uma discussão e começa a ceder à tentação de
desacreditar seu oponente, existe motivo para suspeitarmos de que a pessoa está
projetando algo no oponente ou na teoria dele. Se tivermos o proveitoso hábito
de prestar atenção aos nossos sonhos, veremos que frequentemente sonhamos com
esses oponentes. Isso nos dá o sinal: “Alguma coisa a respeito desse oponente
repousa dentro de mim”. Ainda que apenas outras pessoas estejam projetando, é
difícil não nos deixarmos arrastar pela situação. Como os afetos e as emoções
são extremamente contagiantes, é preciso uma tremenda coragem para não
perdermos o equilíbrio nas situações de grupo, como todo moderador de grupo ou
líder de discussão em grupo sabe muito bem. (VON FRANZ, 1990/2021, 312)
Se o fenômeno projetivo pode ser
algo bastante prejudicial a um indivíduo, na mesma medida é importante que o
terapeuta tenha o devido cuidado no trabalho de “retirada” dessas projeções. Cabe
lembrar que se um sujeito está fazendo uma projeção, significa que aquele conteúdo
inconsciente lhe é bastante assustador à ser integrado a consciência. Faz-se
necessário a observação do terapeuta sobre o quanto aquele sujeito está
fortalecido para recolher aquele conteúdo à sua consciência ou o quanto é
necessário um processo de preparo para tal. Caso contrário, a retirada da
projeção de forma abrupta, pode ser fatal para o paciente:
[...] qualquer
retirada de uma projeção põe uma carga sobre a pessoa que reflete. Ela se torna
responsável por uma parte da sua psique que até então ela não encarara como um
fardo por achar que não fazia parte dela. O psicoterapeuta precisa, portanto,
avaliar cuidadosamente quando pode pedir a um paciente ou parceiro que
reconheça. A consciência do ego é como um pescador em um bote grande ou
pequeno; ele só pode acomodar certa quantidade de peixes (os conteúdos
inconscientes) no barco, caso contrário esse afunda. Às vezes, somos forçados a
permitir que o analisando continue a acreditar em maus espíritos ou em pessoas
que o estão perseguindo, porque o reconhecimento de que ele tem esse demônio
dentro de si literalmente o mataria.
Mas mesmo as
pessoas com grande capacidade de reconhecimento têm seus limites. (VON FRANZ,
1990/2021, 316)
Diante do que foi exposto, compremos
que o objetivo terapêutico se dá na busca de autoconhecimento encaminhado para
uma autorresponsabilização do indivíduo por si e suas relações. É necessário ao
sujeito um trabalho de conscientização do ego, o que colabora para minimizar, suas
projeções ao outro, bem como de corresponder às projeções do outro em si.
Quanto mais a
pessoa se conhece, por conseguinte, menos faz projeções sobre os outros, mais
pode se relacionar consigo mesma e com as outras pessoas de maneira objetiva,
genuína e sem ilusões. Aí reside, em última análise, a distinção entre a
simpatia ou paixão e o verdadeiro amor, ou entre o ódio e a rejeição objetiva e
o desapego. Todo progresso realizado na compreensão mútua e na melhora das
relações entre as pessoas depende da retirada das projeções. (VON FRANZ,
1990/2021, 317)
Especificidades da
Arteterapia: a projeção no setting arteterapêutico
Uma das especificidades da Arteteterapia, bem como
uma de suas complexidades, está no fato de que a partir da tríade arteterapeuta-paciente-material
abre-se um leque de fluxos projetivos para além das projeções relatadas em demandas
terapêuticas.
Neste texto poderemos elencar pelos menos
quatro fluxos projetivos presente e atuantes em um setting
arteterapêutico:
- A projeção na figura do
terapeuta
No recorte do setting, a projeção do
paciente em direção ao terapeuta recebe uma nomenclatura específica, a transferência.
E a projeção do terapeuta para com o paciente é denominada contratransferência.
Aqui reside um conteúdo de grande importância
que o arteterapeuta deverá beber da fonte das teorias da psicologia e obter
recursos para o devido manejo dessas projeções inseridas na dinâmica terapêutica.
- Projeções em expressões
artísticas
Como arteterapeutas nosso
primeiro instrumento de trabalho é a Arte. Antes do processo criativo em si
podemos tomar da Arte como fruição, contemplação, alimento da alma. Nesse sentido, é interessante que o
arteterapeuta vá construindo seu repertório com expressões artísticas que lhe
servirão como estímulos projetivos diversos. Compreendemos que toda expressão
artística, em qualquer linguagem da arte, é a manifestação de conteúdos humanos
constelado em uma imagem. Por essa razão podemos concluir que as expressões
artísticas servirão de estímulos projetivos, disparadores e mobilizadores de
grandes conteúdos inconscientes a serem elaborados.
- Projeções nos processos
criativos
Antes da imagem resultante, o próprio
ato criativo se revela como a projeção do funcionamento interior do criador. Assim,
o processo de criação projeta conteúdos inconscientes do sujeito nos gestos,
ações e atuações.
Além disso, o sujeito também
projeta na transformação da materialidade, sua transformação interior. Agindo
sobre o material, ele se percebe e toma decisões de transformações de si e
perante a vida.
- Projeções nas imagens criadas
Por fim, como produto de todo
esse percurso, as imagens e símbolos criados pelos experienciadores sempre
espelham (projetam) conteúdos psíquicos interiores, sejam eles figurativos ou
abstratos.
Todos esses fluxos projetivos são
materiais de trabalho do arteterapeuta. Simultaneamente.
Que através da formação
continuada o arteterapeuta possa reconhecer a complexidade e a beleza da
técnica que tem em mãos, bem como desenvolver-se para seu manejo cada vez mais
consistente.
Referências Bibliográficas:
DUCHASTEL, Alexandra. "O caminho do
imaginário"
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de
criação.
SHARP, Daryl. Léxico Junguiano.
VON FRANZ, Marie-Louise.
Psicoterapia.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Conteúdo super rico para compreender como acontecem os processos projetivos na Arteterapia!
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