Por Eliana Moraes
@naopalavra
Diante da proposta do projeto Não Palavra em se
consolidar como um espaço de formação continuada livre em Arteterapia, temos
como orientação de produção de conteúdos e eventos o que acreditamos ser “o
quadripé” que sustenta o arteterapeuta. Tomando como inspiração o o modelo da
psicanálise que sugere um tripé para a sustentação de um bom analista,
acreditamos que o arteterapeuta necessita de quatro bases que o sustentem: terapia pessoal, o estudo teórico (individual
e em grupo) e em específico, a experiência pessoal com seu processo criativo e
a própria produção de imagens. Como modelo orientador dessa proposta, e
consequentemente do Não Palavra Arteterapia, desenvolvi o esquema abaixo:
Esquema de autoria de Eliana Moraes
Cada base que compõe o quadripé sustentador do
arteterapeuta merece um aprofundamento teórico em si. No presente texto
pretendo me aprofundar na terceira perna: a continuidade do estudo teórico ao
longo da prática arteterapêutica, mas em específico na modalidade grupal.
Compreendemos que em todo curso formação
profissional, é apresentado ao aluno as bases teóricas que compõem aquele
saber. E no decorrer de seu desenvolvimento, o profissional tem como
autorresponsabilidade buscar especializações que possam lapidar sua atuação. Em
Arteterapia, entretanto, acreditamos que esse processo adquire outras
ramificações uma vez que ela possui a característica de dialogar e fazer interseções
com diversos outros saberes, tanto da Psicologia em suas várias teorias, mas
também de outras disciplinas além desta.
Nesse sentido acreditamos ser fundamental ao
arteterapeuta aquilo que chamamos de formação continuada, aquela que se
estende de forma livre e autogestiva, mantida pelo profissional ativo.
Para tanto, compreendemos que a modalidade de
estudos grupais faz-se como um excelente recurso de desenvolvimento e amadurecimento,
teórico e prático, ao arteterapeuta. Porém, a partir da experiência dos últimos
anos com a rede de arteterapeutas inserida nos territórios do Não Palavra,
observamos que, para além de uma lapidação técnica, o grupo de estudos proporciona
aos profissionais uma experiência de ancoramento, pertencimento, vínculo e coperação
mútua.
Fazer parte de um grupo de estudos pós formação coopera para um maior comprometimento do estudo continuado através da relação com o outro. A regularidade dos encontros promove o desenvolvimento do raciocínio e do manejo clínicos, experimentando em si o compartilhamento teórico e prático do outro semelhante. Mas sobretudo, constatamos que a consolidação desse território de relações gera um desenvolvimento do sujeito-terapeuta, integrando a persona profissional com sua pessoalidade.
Vale destacar que a consolidação do Não Palavra
como um espaço de formação continuada só foi e é possível contando com algumas
parcerias, em especial, do Espaço Crisântemo-SP, regido pela batuta da maestra
Regina Célia Rasmussen. Por esse motivo, o presente texto é escrito na primeira
pessoa do plural, pois ele só existe como “nós”. Nesse território virtual construímos
um grande grupo de estudos aberto, através do qual são oferecido diversos
encontros teóricos e/ou práticos que, mesmo tendo a proposta de participação a
medida da disponibilidade de cada participante, conquistamos um núcleo de
arteterapeutas que se relacionam, aprendem, debatem, se desenvolvem e trocam
entre si, continuamente.
Para embasar nossas percepções práticas,
encontramos eco nas palavras de Beatriz Cardella em seu tão belo livro “De
vonta para casa”, especialmente no capítulo “Grupo
de estudos e pertencimento: caminhos para a formação continuada em
Gestalt-terapia”. Natualmente observamos que a autora orienta sua escrita
para seu campo de atuação, qual seja, psicoterapeutas orientados pela Gestalt
Terapia. Entretando, nossa proposta é beber da fonte de sabedoria da autora e
aplicar suas reflexões em nossos contornos arteterapêuticos.
Grupos de estudos e seus
benefícios
Um primeiro ponto que gostaríamos
de destacar se refere justamente à passagem de uma vivência profissional no
singular, para uma experiência plural. A profissão de terapeuta por muitas
vezes se constrói como uma jornada solitária pois em seu ofício, o
comprometimento ético com o sigilo de tudo aquilo que ouve, fala e vivencia
dentro do setting terapêutico, é imperativo. Porém, em sua humanidade, o
terapeuta ainda guarda suas necessidades fundamentais de inclusão, troca e
pertencimento:
As necessidades de pertencimento e
inclusão são necessidades fundamentais da pessoa humana, dando sentido ao papel
dos Grupos de Estudos e Pertencimento não só como possibilidade de
ampliação e aprofundamento do
conhecimento em Psicoterapia, mas de troca viva de experiências entre
psicoterapeutas, cujo ofício é caracterizado por uma solidão decorrente
do imperativo ético do sigilo profissional. (CARDELLA, 2020,271)
Essa caminhada solitária também acontece
devido a características específicas da “relação terapêutica”. Nesses contornos,
o terapeuta se relaciona com muitas pessoas, porém imbuído de sua persona de
profissional – recurso bastante importante para a boa condução de sua prática. Por
outro lado, faz-se bastante salutar que este terapeuta-sujeito tenha a
oportunidade de adentrar em algum espaço seguro, entre seus pares, para que
possa (re)ver-se sobre suas humanidades contidas por detrás da persona:
Diferente de outros profissionais, o
psicoterapeuta muitas vezes inundado pela intensidade e pela complexidade de
suas vivências junto aos seus pacientes, conta apenas consigo mesmo para
elaborá-las e atravessá-las, impossibilitado que está de compartilhar essas
mesmas vivências com amigos ou familiares.
Embora possa contar com seu próprio
terapeuta e com supervisores, observo que o compartilhamento com colegas, ou
seja, o pertencimento a uma comunidade, possibilita a apropriação de suas
dúvidas, angústias, problemas, conflitos, descobertas, conquistas, inseguranças,
encantamentos, conhecimentos e sabedorias, tornando-as experiências e
contribuindo para a constituição de senso de si mesmo. (CARDELLA, 2020,
271)
Na comunidade formada por um grupo
de estudos arteterapêutico é possível encontrar ecos de nossas experiências
pessoais, espelhamentos, acolhimento e devolutivas à possíveis contratransferências,
sincronicidades que apontam o campo formado pela união dos inconscientes dos
terapeutas e seus pacientes, enfim, consolida-se um grupo de “ajuda mútua” onde
terapeutas-sujeitos vivenciam o que Beatriz Cardella chama de “alternância de
cuidados”, tão importância para a manutenção de sua saúde.
Retomando a reflexão de uma prática profissional
em experiência plural, é possível apontar outra conotação para essa expressão: refere-se à oportunidade de
ampliação de olhares, perspetivas, pontos cegos. A caminhada solitária do
arteterapêuta também contém o perigo de formar um olhar parcial e limitado às percepções e repertórios pessoais do sujeito-terapeuta e
consequentemente construindo uma escuta clínica reducionista frente à complexidade
humana. A experiência do grupo de estudos arteterapêutico proporciona a
abertura para o contato e integração da diversidade humana à ser recebida do setting
arteterapêutico. O chão seguro para o compartilhamento da multiplicidade de
experiências proporciona ao sujeito-terapeuta o desenvolvimento de seu
autossuporte:
Compartilhar com colegas estabelece
uma rede de sustentação e uma comunidade de destino, apaziguando tensões,
ajudando a dar significados e sentidos em suas vivências, olhando-as de
múltiplas e diferentes perspectivas e abrindo possibilidades e esperanças.
O compartilhamento de experiências e
o confronto com as diferenças possibilita, paradoxalmente, o desenvolvimento
do autossuporte no exercício da profissão, já que nos constituímos sempre
em presença do outro. (CARDELLA, 2020, 271-272)
Na experiência plural, em
contramão de uma vivência solitária, observamos que algo fundamental que
compõem nossa rede se dá na troca de experiências e narrativas. O
compartilhamento das sensações de conquistas, sucesso, insights, saltos
e superações ou então sensação de insegurança, fracasso e equívocos. Em um
grupo bem vinculado é possível compartilhar todas as experiências entre luz e
sombra. Compartilhamentos de minha experiência no lugar de sustentadora do
espaço, também tem seu lugar nesse campo de amadurecimento:
Percebo que quando relato
experiências contando episódios e impasses na relação com determinados
pacientes e de acontecimentos que marcaram meu percurso profissional, minhas
dificuldades, dúvidas e desafios passados ou atuais, sentem-se legitimados,
confirmados, apaziguados, consolados, inspirados, acompanhados e provocados em
seus próprios embates.
Encontram referências para compreender suas intervenções e
passam a ser capazes de nomear algumas de suas experiências […]
As narrativas acontecidas durante os
encontros, tanto da coordenadora quanto dos colegas são formas de Transmissão
Oral, tão rara no nosso mundo [atual]. (CARDELLA, 2020, 276)
Assim, como
antídoto de uma prática arteterapêutica solitária, formamos um território de enraizamento
e pertencimento:
As narrativas possibilitam também o encontro de raízes, o
estabelecimento das comunidades, a apropriação da Tradição, fundamentais na
experiência de pertencimento e inclusão. (CARDELLA, 2020, 277)
Nessa caminhada, Beatriz Cardella também tounou-se
uma grande referência para mim mesma, como supervisora-sujeito. Sempre
acreditei que o papel do supervisor é cooperar para o desenvolvimento do estilo
pessoal do terapeuta em construção. Ajudá-lo a encontrar seus recursos singulares
e fazer o melhor uso de cada um deles, de maneira autônoma e segura. Na
sustentação de um grupo, acredito que o papel do coordenador seja sustentar o
campo para que o grupo faça seus movimentos de autorregulação e ajustamento
criativo, para além do meu “poder de controle”. Sinto felicidade quando vejo os
arteterapeutas de nossa rede se relacionando, trocando se desenvolvendo entre
si. Essa é uma experiência plural e enraizadora:
Tanto a presença do coordenador como
dos colegas oferece ao participante a possibilidade de enraizamento e de
abertura; a depender das atitudes do coordenador na direção de promover
autossuporte e autonomia dos colegas menos experientes, iniciará o importante
processo de deixar heranças, desocupando gradativamente os lugares alcançados […]
Construção e desconstrução acontecem
durante os encontros entre terapeutas no processo de formação continuada; os
novos controem, crescem para cima e vão se tornando experientes, e o experiente
cresce para baixo, deixa heranças, desconstrói e desocupa os lugares alcançados,
realizando e atualizando as tarefas do percurso humano, processos de contínuos
ajustamentos criativos. (CARDELLA, 2020, 273)
Encontrei nas palavras de Beatriz uma orientação
que eu já vivia de forma intuitiva. Meu desejo é que meus alunos arteterapeutas
“cresçam para cima”, se desenvolvam, se desafiem e levem a Arteterapia ao mundo
como uma prática potente e consistente. Enquanto isso, sigo “crescendo para
baixo”, deixando minhas heranças e abrindo espaço para que eles possam voar
cada vez mais alto!!!
______________________________________________________________________________
Sobre a autora: Eliana Moraes
Nenhum comentário:
Postar um comentário