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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

ESTUDOS SOBRE A PROJEÇÃO, NO COTIDIANO E NA ARTETERAPIA

 

Obra: René Magritte


Por Eliana Moraes - MG

naopalavra@gmail.com

 

O fenômeno da projeção dá-se como um tema de grande importância a ser estudado pelo arteterapeuta. Algumas teorias buscam pesquisar sobre esse fenômeno mas compreendo que a Psicologia Analítica mostra-se como um bom ponto de partida para esse estudo. Acredito que a Arteterapia pode articular-se com as mais variadas teorias psicológicas, dentre elas a Psicologia Analítica.  Sendo a amplitude do fluxo projetivo uma das especificidades de um setting arteterapêutico, torna-se muito válido compreender as palavras de Jung que muito me orientam em meu trabalho: “A razão geral e psicológica das projeções é sempre um inconsciente ativado que busca expressão.” (JUNG apud SHARP, 1991, 127)

No percurso desse estudo encontrei o livro “Psicoterapia” Marie-Louise von Franz que aborda diversos temas da Psicologia Analítica, em especial o capítulo: “A projeção: seu relacionamento com a doença e com o amadurecimento psíquico”. Nesse capítulo Von Franz discorre sobre a projeção no cotidiano, o que demonstra a validade de seu estudo para o embasamento da escuta do terapeuta quanto às demandas trazidas pelo paciente sobre suas relações interpessoais.

A autora inicia o capítulo conceituando a projeção:

Na visão de Jung [...] todos os conteúdos psíquicos dos quais ainda não temos consciência aparecem de uma forma projetada como supostas propriedades de objetos externos. A projeção, a partir desse ponto de vista, é um deslocamento que ocorre de uma maneira não intencional e inconsciente, ou seja, sem ser percebido, de um conteúdo psíquico subjetivo para um objeto externo. Nesse processo, o inconsciente da pessoa que faz a projeção, via de regra, não escolhe simplesmente qualquer objeto ao acaso, e sim aquele que contém algumas, ou até muitas, das características da propriedade projetada. Jung fala de um “gancho” no objeto no qual a pessoa que faz a projeção a pendura como um casaco. (VON FRANZ, 1990/2021, 307-308)


Obra: "Ligações Perigosas" Renê Magritte

É importante considerar que a projeção é um movimento inconsciente automático e cotidiano. Mais além, a projeção promove uma “ponte” entre o indivíduo e uma outra pessoa, um objeto, uma experiência, ou seja, com o mundo exterior. Inicialmente ela é, de fato, mobilizadora de experiências de vida, sejam elas positivas ou negativas. Elas podem gerar simpatia, antipatia, interesse, rejeição, aproximação, afastamento, enfim, vivências geradas pelo cotidiano. Ela não é “boa” ou “má” em si, apenas devemos observá-la com mais atenção quando constatamos que uma manifestação projetiva ou sua retirada provocou uma resposta intensificada no sujeito:

Somente quando nossa energia psíquica por algum motivo se retira dessas projeções, por exemplo, quando nosso amor se transforma em rejeição ou nosso ódio começa a parecer absurdo até para nós mesmos – somente nesse ponto é chegada a hora, a oportunidade de reflexão se apresenta, para que nós reconheçamos a até então inconsciente projeção. (VON FRANZ, 1990/2021, 311)

Segundo a autora, em todo processo de projeção envolve um emissor e um receptor. Elas emanam dos complexos ou arquétipos do inconsciente do emissor como uma forma pontuda, como uma flecha mágica ou um míssil:

A projeção dos conteúdos psíquicos não percebidos conscientemente provoca no emissor a “perda da alma”, uma das doenças mais temidas entre os povos nativos. Isso torna o indivíduo apático, depressivo ou suscetível de ser dominado pelas outras pessoas. (VON FRANZ, 1990/2021, 313-314)

Na visão primitiva, um deus, demônio ou pessoa má lançava as “pontas mágicas”. O receptor atingido ficava doente e a extração do projétil o curava:

O indivíduo sobre quem outra pessoa faz uma projeção também é afetado – na visão primitiva, ele é afetado por uma flecha. Se o receptor tiver consciência do ego fraca (como as crianças, por exemplo), será facilmente influenciado e levado a agir de acordo com o que foi projetado sobre ele. Na visão primitiva, significa que ele está possuído. Nós nos sentimos compelidos a nos relacionarmos com a paixão de outra pessoa por nós, ou fazemos involuntariamente ao indivíduo a coisa má que ele está esperando de nós baseado na sua projeção. (VON FRANZ, 1990/2021, 314-315)


Obra: "Os amantes" René Magritte

Aqui reside uma das maiores importâncias de se estudar o fenômeno da projeção para o desenvolvimento da escuta terapêutica. Os sofrimentos e queixas trazidos pelo paciente/cliente muitas vezes envolvem tramas projetivas em suas relações pessoais, seja amorosa, familiar, profissional ou social. Como emissores ou receptores, os indivíduos relatam seus encontros e desencontros causadores de intensas experiências que, a depender da maneira que são vividas, causam algum impacto emocional importante.

Ampliando essa perspectiva, faz-se necessário ressaltar que nos dias atuais, vivemos em um campo altamente propício para que essas trocas projetivas aconteçam. Na esfera coletiva esses fenômenos também se manifestam, tendo sido estudados em outros momentos da história. Porém, ao lermos a descrição sobre as manifestações das projeções de Von Franz, temos a impressão de que descreve nossos dias e observamos que sua articulação teórica faz eco a tantos de nossos casos clínicos atuais:

A manifestação mais gritante das projeções se dá nas rígidas convicções políticas – os “ismos” – e nas teorias apaixonadamente defendidas, como ideias científicas preconcebidas. Tão logo a tolerância e o humor desaparecem, podemos supor que as projeções entraram em cena. Quando notamos que alguém está reagindo com uma afetividade exagerada em uma discussão e começa a ceder à tentação de desacreditar seu oponente, existe motivo para suspeitarmos de que a pessoa está projetando algo no oponente ou na teoria dele. Se tivermos o proveitoso hábito de prestar atenção aos nossos sonhos, veremos que frequentemente sonhamos com esses oponentes. Isso nos dá o sinal: “Alguma coisa a respeito desse oponente repousa dentro de mim”. Ainda que apenas outras pessoas estejam projetando, é difícil não nos deixarmos arrastar pela situação. Como os afetos e as emoções são extremamente contagiantes, é preciso uma tremenda coragem para não perdermos o equilíbrio nas situações de grupo, como todo moderador de grupo ou líder de discussão em grupo sabe muito bem. (VON FRANZ, 1990/2021, 312)

Se o fenômeno projetivo pode ser algo bastante prejudicial a um indivíduo, na mesma medida é importante que o terapeuta tenha o devido cuidado no trabalho de “retirada” dessas projeções. Cabe lembrar que se um sujeito está fazendo uma projeção, significa que aquele conteúdo inconsciente lhe é bastante assustador à ser integrado a consciência. Faz-se necessário a observação do terapeuta sobre o quanto aquele sujeito está fortalecido para recolher aquele conteúdo à sua consciência ou o quanto é necessário um processo de preparo para tal. Caso contrário, a retirada da projeção de forma abrupta, pode ser fatal para o paciente:

[...] qualquer retirada de uma projeção põe uma carga sobre a pessoa que reflete. Ela se torna responsável por uma parte da sua psique que até então ela não encarara como um fardo por achar que não fazia parte dela. O psicoterapeuta precisa, portanto, avaliar cuidadosamente quando pode pedir a um paciente ou parceiro que reconheça. A consciência do ego é como um pescador em um bote grande ou pequeno; ele só pode acomodar certa quantidade de peixes (os conteúdos inconscientes) no barco, caso contrário esse afunda. Às vezes, somos forçados a permitir que o analisando continue a acreditar em maus espíritos ou em pessoas que o estão perseguindo, porque o reconhecimento de que ele tem esse demônio dentro de si literalmente o mataria.

Mas mesmo as pessoas com grande capacidade de reconhecimento têm seus limites. (VON FRANZ, 1990/2021, 316)


Obra: René Magritte

Diante do que foi exposto, compremos que o objetivo terapêutico se dá na busca de autoconhecimento encaminhado para uma autorresponsabilização do indivíduo por si e suas relações. É necessário ao sujeito um trabalho de conscientização do ego, o que colabora para minimizar, suas projeções ao outro, bem como de corresponder às projeções do outro em si.

Quanto mais a pessoa se conhece, por conseguinte, menos faz projeções sobre os outros, mais pode se relacionar consigo mesma e com as outras pessoas de maneira objetiva, genuína e sem ilusões. Aí reside, em última análise, a distinção entre a simpatia ou paixão e o verdadeiro amor, ou entre o ódio e a rejeição objetiva e o desapego. Todo progresso realizado na compreensão mútua e na melhora das relações entre as pessoas depende da retirada das projeções. (VON FRANZ, 1990/2021, 317)

 

Especificidades da Arteterapia: a projeção no setting arteterapêutico



Uma das especificidades da Arteteterapia, bem como uma de suas complexidades, está no fato de que a partir da tríade arteterapeuta-paciente-material abre-se um leque de fluxos projetivos para além das projeções relatadas em demandas terapêuticas.

Neste texto poderemos elencar pelos menos quatro fluxos projetivos presente e atuantes em um setting arteterapêutico:

- A projeção na figura do terapeuta

No recorte do setting, a projeção do paciente em direção ao terapeuta recebe uma nomenclatura específica, a transferência. E a projeção do terapeuta para com o paciente é denominada contratransferência.  Aqui reside um conteúdo de grande importância que o arteterapeuta deverá beber da fonte das teorias da psicologia e obter recursos para o devido manejo dessas projeções inseridas na dinâmica terapêutica.

- Projeções em expressões artísticas

Como arteterapeutas nosso primeiro instrumento de trabalho é a Arte. Antes do processo criativo em si podemos tomar da Arte como fruição, contemplação, alimento da alma.  Nesse sentido, é interessante que o arteterapeuta vá construindo seu repertório com expressões artísticas que lhe servirão como estímulos projetivos diversos. Compreendemos que toda expressão artística, em qualquer linguagem da arte, é a manifestação de conteúdos humanos constelado em uma imagem. Por essa razão podemos concluir que as expressões artísticas servirão de estímulos projetivos, disparadores e mobilizadores de grandes conteúdos inconscientes a serem elaborados.

- Projeções nos processos criativos

Antes da imagem resultante, o próprio ato criativo se revela como a projeção do funcionamento interior do criador. Assim, o processo de criação projeta conteúdos inconscientes do sujeito nos gestos, ações e atuações.

Além disso, o sujeito também projeta na transformação da materialidade, sua transformação interior. Agindo sobre o material, ele se percebe e toma decisões de transformações de si e perante a vida.

- Projeções nas imagens criadas

Por fim, como produto de todo esse percurso, as imagens e símbolos criados pelos experienciadores sempre espelham (projetam) conteúdos psíquicos interiores, sejam eles figurativos ou abstratos. 

 

Todos esses fluxos projetivos são materiais de trabalho do arteterapeuta. Simultaneamente.

Que através da formação continuada o arteterapeuta possa reconhecer a complexidade e a beleza da técnica que tem em mãos, bem como desenvolver-se para seu manejo cada vez mais consistente.

 

Referências Bibliográficas:

DUCHASTEL, Alexandra. "O caminho do imaginário"

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 

SHARP, Daryl. Léxico Junguiano.

VON FRANZ, Marie-Louise. Psicoterapia.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

Um comentário:

  1. Conteúdo super rico para compreender como acontecem os processos projetivos na Arteterapia!

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