segunda-feira, 15 de agosto de 2022

COLANDO O CAOS E RESGATANDO MEMÓRIAS



Por Rosangela Nery - RJ

rosanery1975@hotmail.com

              Há 04 anos participo de um projeto que atende as comunidades ribeirinhas no Rio Negro, na região de Manaus.  Trata-se de um grupo de voluntários que se reúne, mora por 10 dias em um barco, dorme em redes e se disponibiliza à atender as demandas das comunidades, sejam elas de saúde, construção civil, montagem de horta comunitária, dentre outras. Normalmente passamos 10 dias acolhendo e sendo acolhidos por um povo afetuoso e cordial. As maiores demandas sempre são por atendimento medico e odontológico para adultos e crianças, porém, dessa vez, do dia primeiro à 11 de julho de 2022, levamos atendimento psicológico também.



              É importante ressaltar que nos deparamos com uma comunidade de 68 famílias devastadas pela pandemia e muito castigada pela exploração do trabalho manual na produção de espetinhos de churrasco, feitos de madeira e vendidos para Manaus por um valor ínfimo. Não é possível atribuir a situação de caos da comunidade somente a esse fato, porém, é necessário cuidar de todo esse caos que, como consequência, tem o uso abusivo de álcool e outras drogas, violência doméstica de praticamente todas as mulheres (incluindo adolescentes), quadros depressivos graves com a presença de automutilação, atrasos na linguagem de crianças com 7 anos ou mais e outros.

Enquanto profissional da psicologia, fiquei pensando em como abordar e acolher todas essas demandas e minimamente contribuir para produção de saúde   daquelas famílias, principalmente no que tange à saúde mental.

É pela ARTE!

Tinha na bagagem uma caixa com recortes de revistas, pincéis, lápis de cor, tintas diversas, folhas coloridas e muito desejo de estar perto delas, entendi que era o que precisava e assim lá fui eu.

 


Dentre muitas experiências, hoje quero dividir a história de Dona R., 55 anos, mãe de 9 filhos, sendo que somente 5 estão vivos. Conheci Dona R. na feira de saúde que nossa equipe prepara, para falar sobre alimentação e outros remédios da natureza.  Dona R. me vê e diz: “Minha filha, eu tô muito agoniada, posso ir embora?” Na mesma hora disse a Dona R. que ela podia ir sim, mas, se quisesse conversar sobre a sua “agonia”, eu estava disponível. Ela foi embora e não falou mais nada. Terminamos a feira e no caminho de volta para o barco encontrei M.I, filha de Dona R. e decido perguntar o que ela achava se eu fizesse uma visita à sua mãe. M.I. me diz que certamente a mãe me receberia, mas, ressaltou que ela poderia não me dar muita atenção, pois, a mesma se dedica muito ao trabalho. Rapidamente fui até a casa de Dona R. e perguntei se poderia voltar no outro dia para bater um papo, ela disse que sim e que eu fosse às 14h.

Lá fui eu com minha caixa de imagens diversas, cola, papéis coloridos e tesoura.

Afinal, a  técnica da colagem de apresentação tem sido minha parceira nos atendimentos do consultório e também na unidade de saúde que trabalho.

Segundo Philippini (2009), a colagem permite ao paciente um campo simbólico de inúmeras possibilidades de estruturação, integração, organização espacial e descoberta de novas configurações

A colagem tem sido um recurso de muita potência, onde as palavras não dão conta de expressar os sentimentos. Ouvir os relatos dos pacientes após as produções criativas, tem colaborado na interpretação e ressignificação dos fatos da vida, e era isso que Dona R. precisava naquele momento, pois, a dor de perder seus quatro filhos  de forma brutal, apesar de já ter passado muito tempo do ocorrido, ainda estava muito latente. E como ela mesma disse chorando: “Ainda dói muito!!!”

O PROCESSO

Assim que cheguei, Dona R. me fala: “Achei que não vinha.”. Ela estava com dois filhos, um vizinho e todos trabalhando na produção de “espetinhos” de madeira. Perguntei se poderíamos conversar a sós e naquele momento ela se levantou, deixou o trabalho e me levou para dentro de sua casa. Sentamos no chão, apresentei o material para Dona R., e pedi que ela me contasse um pouco sobre ela através das imagens. Preciso dizer que os olhos de Dona R. brilharam de forma diferente ao ver os papéis coloridos. Enquanto olhava as imagens, Dona R. foi me falando do quanto gostava de trabalhos manuais, do quanto gostava de recorte e colagem, porém, há tempos que não fazia isso. Lembram que cheguei na casa de Dona R. ás 14h? Pois é! Já eram 15:30 e Dona R. havia produzido muito, mas não eram “espetinhos” e sim uma “colagem” de parte da sua vida e uma parte que a mesma nunca conseguira falar até aquele momento. Que potência! Finalizamos o trabalho às 15:50 e perguntei a Dona R. se eu poderia voltar no outro dia no mesmo horário, ela me disse que sim e pediu desculpas por não ter uma mesa para sentar.



Atendi Dona R. por mais 4 dias consecutivos e o que pude recolher enquanto profissional é o poder de cura da arte! Um dia antes do meu retorno para o Rio de Janeiro, ao me despedir de Dona R. recebi um abraço,  um remo de madeira pintado por ela e toda energia dessa mulher gigante que resiste às mais duras provas que a vida pode dar à uma mãe: perder um filho.

Foi preciso pensar em como dar suporte para Dona R. após a minha saída do processo. Porém, àquela altura da nossa relação, Dona R. já estava familiarizada com os materiais e ficou muito feliz quando eu disse que ela poderia ficar com a cola, as folhas coloridas e que quando se sentisse “agoniada” poderia escrever, colar e redescobrir uma forma de continuar.

Ao final daquele último dia de atendimento, como faço no consultório, perguntei à Dona R. se gostaria de  ficar com sua produção e rapidamente ela me disse: “Rosangela, você pode colar bem aqui na minha parede?” Eu disse que sim e enquanto fazia a colagem, seu neto entrou e perguntou o que era aquilo, ela respondeu: “Minha vida!”

Foi difícil segurar as lágrimas.


* As imagens publicadas foram altorizadas por Dona R.

Referência Bibliográfica:

PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades, Rio de Janeiro, WAK Editora, 2018

____________________________________________________________________________________________

Sobre a autora: Rosangela Nery



Psicóloga,  especialista em Ciência, Arte e Cultura na saúde pelo IOC - Instituto Oswaldo Cruz - FIOCRUZ  e  em Saúde Mental e atenção Psicossocial pela ENSP - Escola Nacional de saúde pública - FIOCRUZ.

Estudante de Arteterapia no Instituto Faces. 

Atendimento individual à adolescentes e adultos no Espaço Recriar-se, RJ.

Diretora do Núcleo de desinstitucionalizacão Franco da Rocha no Instituto Municipal de Assistência a saúde  Juliano Moreira/RJ.

4 comentários:

  1. Impactada com seu relato e através do seu testemunho continuar me afirmando como a arte e sua manifestação atraves da Arteterapia é potente, eficaz, balsâmica, eliminadora de "agonias" e cheia de significados. Parabéns pela experiencia, coragem e despreendimento. Obrigada por compartilhar e nos enriquecer com esse relato!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada pelo retorno, seguimos na caminhada pulsando ARTE

      Excluir
  2. Rosangela, achei sensacional o seu texto ! Me fez lembrar do tempo que eu participei do Projeto Rondon, na faculdade. Fui parar em Irecê, Bahia, no campus avançado...faz tempo...
    Sua experiência aqui me trouxe memórias e o seu relato foi emocionante.
    Parabéns por este texto !!!
    Abraços, Claudia Abe

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom Cláudia ☺️. Assim como o título, resgatou memórias. Grande abraço.

      Excluir