Por Eliana Moraes – MG
naopalavra@gmail.com
O ciclo de palestras mensais sustentado pelo Não Palavra e Espaço Cristântemo, adentrou em uma nova fase em 2022. Por sua regularidade de estudo continuado e frequência dos participantes, atuamente temos vivenciado este espaço como um grupo de estudos com contornos mais abertos, porém que mantém grande consistência. Nosso objetivo é colaborar para o desenvolvimento da escuta arteterapêutica de forma ampla, mas em especial, para a escuta atenta dos fenômenos coletivos da atualidade que se apresentam nas demandas terapêuticas individuais.
Percebemos que uma das
demandas tão recorrentes no decorrer de 2022, foram os caminhos trilhados para a
retomada de um repertório externo – como o retorno ao trabalho e estudos
presenciais, reencontro com familiares, amigos e conhecidos em eventos sociais
- e seus enfrentamentos. Desta forma, tornou-se notório dentro do setting
terapêutico o reaquecimento de temáticas que envolvem os relacionamentos
interpessoais.
Para instrumentalizar a escuta terapêutica atual precisamos, retomar a literatura e atualizá-la para aquilo que se apresenta como específico de nosso tempo. Um dos embasamentos teóricos que tenho me dedicado ao estudo é a teoria da Gestalt Terapia, em especial os (tão belos e poéticos) livros da professora Beatriz Cardella (dos anos 1994 e 2020, que se mostram extremamente atuais). Neste texto trago fragmentos da palestra “Reflexões sobre o ‘estado de amor’ na escuta e práticas arteterapêuticas”, construída com fragmentos de dois livros da autora que abordam aspectos sobre os relacionamentos humanos, em diálogo com questões terapêuticas recorrentes na escuta clínica neste recorte temporal. São eles “O amor na relação terapêutica: uma visão gestáltica” (1994) e “De volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica Contemporânea” (2020).
O sofrimento humano
Em seus livros, Beatriz nos apresenta sua visão sobre o sofrimento
humano em suas relações:
Atualmente,
o homem ocidental... Reconhece-se isolado e cheio de receios diante de seus
semelhantes. Percebe que as relações e a capacidade para amar e sentir-se amado
não evoluíram tanto quanto seu intelecto, seu poder e raciocínio. Busca
meios e formas (nem sempre eficazes) para sentir-se amado, aceito e valorizado,
de dar sentido a suas realizações...
No
contexto terapêutico, observo que as dificuldades relativas à vivência do amor
estão frequentemente presentes... Observo que
quanto mais carentes de amor e aceitação alguns clientes se apresentam, mais
isolamento, desconfiança e descrença manifestam em suas relações, que ficam
comprometidas em sua qualidade. Muitos não se sentem amados, percebem-se
incapazes de amar, de discriminar e expressar sentimentos, além de
desconhecerem a experiência de entrega e plenitude em seus relacionamentos.”
(CARDELLA, 1994, 13-14)
“Observo
no cotidiano da clínica as formas do sofrimento produzidas pela
contemporaneidade; muitos sofrem ao viverem num mundo excessivamente
competitivo, de relações superficiais e de dilaceramento dos vínculos humanos;
testemunho o anseio de meus pacientes por viverem relações significativas,
amorosas, de confiança e de intimidade...
A clínica revela que muitas pessoas estão ávidas e carentes de vínculos, porém pouco disponíveis e preparadas para a desarrumação que uma verdadeira relação certamente provoca. Amar e ser amado implica consentimento para ser perturbado.” (CARDELLA, 2020, 34)
As relações humanas são um tema recorrente da escuta clínica desde
sempre. Mas, o que temos de específico na escuta atual? A clínica nos mostra
que no convite à um retorno processual à extroversão, alguns pacientes têm
relatado sintomas de ansiedade, algum nível de evitação/Fobia Social e até
mesmo sintomas psicossomáticos às vésperas do encontro com um outro, além da
intolerância ao diferente. Ao observarmos o coletivo, percebemos um campo
propício para fenômenos de grupo autodestrutivos, aos quais são relatados em
sessões psicoterapêuticas.
Nesta contramão, Beatriz Cardella discorre sobre o “estado de amor”:
Concebo
o amor como um estado... O amor é a polaridade oposta do
egocentrismo... Em estado de amor, podemos nos apresentar disponíveis ao outro,
porém, o outro só poderá compartilhar o amor a partir do próprio estado
de amor. Dessa forma, o amor pode ser recebido apenas em estado de amor,
para ser percebido, sentido ou vivido.
O
estado de amor permite-nos apreciar as qualidades e potenciais de outra pessoa
e aceitar suas limitações como um ser em aprendizado e crescimento. O amor é de
natureza incondicional, o que implica a capacidade de amar o diferente e
não apenas o semelhante. Isso não significa permitir ou concordar totalmente
com as atitudes e os modos de ser do outro, mas sim aceitar as diferenças.
(CARDELLA, 1994, 16-17)
O amor manifesta-se, então, como uma atitude diante da vida, do mundo, da humanidade, do desconhecido e do mais próximo. (CARDELLA, 1994, 22)
O processo de autoconhecimento vivenciado na psicoterapia colabora para que o sujeito se reconheça em suas dificuldades para amar e até mesmo em comportamentos neuróticos que o atrapalham no desenvolvimento de relações afetivas saudáveis. Cardella nos descreve estes mecanismos pela perspectiva da Gestalt terapia:
Os
obstáculos para o desenvolvimento da capacidade de amar são as atitudes, as
crenças, os sentimentos, e os mecanismos de defesa que ocorrem na fronteira de
contato entre o indivíduo e o meio...
Para
falar em amor, temos de considerar o contato, que ocorre na fronteira do ego,
onde o indivíduo diferencia-se dos demais. A fronteira de contato não é fixa,
assim o indivíduo saudável deve poder diferenciar-se do ambiente e
relacionar-se com ele num ritmo fluido de aproximação e retraimento, na
fronteira de contato.
Quando
o indivíduo não consegue discriminar o que é “si mesmo” e o que é o outro,
cristaliza-se mais próximo ou mais afastado da fronteira, utilizando-se de
mecanismos de evitação do contato que são considerados disfunções, ou
distúrbios de contato. Essas disfunções de contato caracterizam-se por
grande rigidez ou grande permeabilidade da fronteira, o que leva o indivíduo ou
ao isolamento, ou à perda da capacidade de diferenciação e identificação. Em
outras palavras, o indivíduo confunde-se com o ambiente ou isola-se dele.
(CARDELLA, 1994, 41-42)
O amor implica a capacidade de estabelecer limites entre si e o outro, um contato de boa qualidade de retração, além de espontaneidade e autenticidade. (CARDELLA, 1994, 16-17)
A autora nos lembra ainda da fala de Fritz Perls, grande teórico
da Gestalt Terapia:
“o contato com o meio e a fuga dele, esta aceitação e rejeição do meio, são as funções mais importantes da personalidade global”. Segundo o autor, a neurose surge quando o indivíduo é incapaz de modificar suas formas de interação e cristaliza-se num modo de atuar obsoleto, afastando-se de suas necessidades, como por exemplo, a necessidade de contato com outros seres humanos. (CARDELLA, 1994, 42)
Aqui cabe a reflexão sobre como a vivência do isolamento social e/ou a redução de repertório tão acentuada, ao longo de dois da pandemia, contribuíram para “cristalizações” de um modo de atuar nas relações, aos quais já se tornaram obsoletos. Entretanto, a clínica nos mostra a dificuldade que alguns sujeitos estão encontrando para a flexibilização de seus mecanismos de evitação por conta da sensação de medo:
...
para desenvolver seu potencial amoroso, o indivíduo necessita romper a
evitação e confrontar os medos subjacentes que o mantêm, cristalizando
comportamentos e atitudes que não favorecem o livre fluxo do crescimento
individual e relacional...
O
momento em que o cliente se depara com os próprios medos é geralmente
vivenciado com muito sofrimento e angústia, já que está “despido” das formas de
proteção obsoletas usadas até então...
[Se os medos não forem] resolvidos, apenas camuflados, as gestaltlen permanecem inacabadas, tornando repetitivos os comportamentos em busca de satisfação. Assim, as necessidades de proteção e segurança permanecem sempre prioritárias na hierarquia das necessidades da pessoa, o que impede que ela estabeleça relacionamentos de entrega plena. (CARDELLA, 1994, 49-54)
Este tamanho enfrentamento só é possível a partir do vínculo terapêutico. A profunda relação que se estabelece entre terapeuta e paciente é, de fato, o campo possível e necessário para que este experimente algum caminho de “cura”. A partir desta relação é possível fazer ensaios de espelhamentos, ressignificações e novos padrões de relacionar-se, que irão reverberar nos vínculos estabelecidos pelo sujeito, para além do setting terapêutico.
Os
sofrimentos humanos acontecem no entre, nos encontros e desencontros vividos
ou nos encontros não acontecidos. A cura é também fenômeno do entre,
concebida em Gestalt Terapia como a restauração da abertura, do ritmo,
do fluxo, do diálogo, da criatividade, e dos laços que nos unem/diferenciam do
outro, processo de crescimento, atualização e realização da singularidade.
A
relação terapêutica pode ser a experiência matriz da abertura...
(CARDELLA, 2020, p 103)
A
cura em Gestalt Terapia, está intimamente ligada com relação, com restauração
ou constituição do Diálogo. É o que chamamos de cura pelo
Encontro...
O que cura na terapia é a relação em si, é o entre. É o “sou amado, logo existo”. (CARDELLA, 2020, p 119)
Diante da reflexão exposta, nasce a pergunta: como podemos colaborar para um resgate do “estado de amor” dentro do nosso campo de influência (profissional, mas também pessoal)?
Grupos arteterapêuticos
Entretanto, como especificidade, o grupo arteterapêutico oferece a
arte como mediadora desta contínua regulação, facilitando o enfrentamento do
medo e os mecanismos de defesa que ocorrem na fronteira de contato entre o
indivíduo e o meio. Dentre suas propriedades, a vivência com a arte proporciona
uma “experiência estética”, experiência que desperta a sensação de belo, de enlevo,
sensibilidade, quebra de resistências, faz contato com dimensões emocionais e
intuitivas, alterando o estado psicológico e a disponibilidade à uma abertura
de si mesmo. Para Viktor Frankl, a arte nos coloca em contato com nossa Dimensão
Noética, a dimensão psíquica da espiritualidade (não necessariamente religiosa)
e sentido de vida.
Desta forma, concluímos que um grupo arteterapêutico nos
coloca em experiência com a arte e seus potenciais sensíveis e espirituais, na
presença do outro. Compreendemos, a Arteterapia como um grande
potencial para promover espaços de “cura” pelo encontro com o outro e com a
arte, em grupos arteterapêuticos. Colabora assim para o resgate do “estado de
amor” em tempos em que o desamor está na ordem do dia.
Concluo as belas palavras de Beatriz:
O amor, capacita-nos a perceber e
participar da existência do outro; permite-nos transcender nossas limitações e
é a grande força geradora do crescimento pessoal, através da relação com outros
seres humanos. (CARDELLA, 1994, 19)
Que a Arteterapia nos ajude a sustentar espaços de “estado de
amor”!
Referências bibliográficas:
CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. O amor na relação terapêutica:
uma visão gestáltica. Summus Editorial, SP. 1994.
CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. De volta para casa: ética e
poética na clínica gestáltica Contemporânea. Editora Amparo, SP. 2020
Beatriz
Helena Paranhos Cardella
_________________________________________________________________________________
Sobre a autora: Eliana Moraes
Nenhum comentário:
Postar um comentário