Por Mercedes Duarte - RJ
Esse é mais um texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos. Nesse artigo, trago o Arcano VII, o Carro, em diálogo com a biografia da artista Chiquinha Gonzaga.
Aqui não há a pretensão de esgotar as dimensões do arquétipo, o que seria inalcançável, tampouco explanar com profundidade a biografia da artista. O escopo é trazer um recorte que privilegie as afinidades entre ambos.
O intuito desse diálogo, portanto, entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em outro texto[1], é o de proporcionar reflexões e possibilidades arteterapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] - que permeiam esses elementos em diálogo, buscando, assim, contribuir para a ampliação do repertório arteterapêutico.
O Carro – Arcano VII
O carro parece simbolizar com propriedade o poder
transportante da psique. A psique não é um objeto, uma coisa; é um processo.
Sua essência é o movimento (NICHOLS, 1997, p. 150).
Tarô de Marselha
Tarô de Waite e Smith
O arcano VII, apesar de a imagem do Carro, ou Carruagem, parecer estar parada – como no Tarô de Marselha com suas rodas ao fundo, em posição não favorável ao deslocamento, ou, como no Tarô de Waite e Smith, com duas esfinges deitadas a frente da carruagem - ele nos fala de movimento, desenvolvimento, deslocamento, travessia. Não por acaso esse arcano encarna o número sete, o sétimo lugar dos arcanos. De acordo com diferentes tradições, a escala de evolução é setenária. Desse modo, na organização do tarô que Sallie Nichols (1997) se apropria, há uma divisão constituída por três fileiras de sete cartas.[3] O Carro, portanto, compõe a última posição da primeira fileira, como vemos abaixo, encerrando a síntese de uma primeira escala evolutiva. Do Reino dos Deuses - essa primeira fileira onde o herói entra em contato com grandes poderes, sejam as divindades ou os arquétipos da Mãe, do Pai e do primeiro Mestre -, o Carro nos transporta para a segunda fileira, o Reino da Realidade Terrena, do Caminho das leis e da Consciência do ego.
Partindo da concepção de que os arcanos maiores do tarô podem representar etapas de nosso desenvolvimento psíquico e pessoal, compreende-se um diálogo entre as etapas. O Enamorado, arcano anterior ao Carro, pressupõe uma escolha que pode envolver abandonar antigos paradigmas, ou mesmo o seio familiar, e ir em direção ao Reino da Realidade Terrena, com intuito de conquistar um lugar no mundo. É nesse processo, contemplado pela fileira intermediária, que o indivíduo, ou o herói, que pode ser representado pelo Arcano 0, o Louco, desenvolve a consciência de leis que regem o mundo e a experiência humana, assim como a consciência de seu ego.
É o Carro então que anuncia que o herói está pronto para conquistar um novo reino. Entretanto, é preciso equilibrar e integrar as dualidades constitutivas da psique, encarnadas seja nos dois cavalos ou nas duas esfinges, para que o carro não se desgoverne, para que seja possível um movimento efetivo ao passo que as charadas, das esfinges, forem desvendadas.
Chiquinha Gonzaga e o Carro
A musicista, maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935) nos aproxima desse arquétipo do Carro ao tomarmos contato com sua história. Chiquinha Gonzaga compôs mais de 2.000 músicas que integravam mundos distintos, polaridades da cultura brasileira. Uniu o erudito e o popular em gêneros variados como choros, valsas, polcas, quadrilhas, fados, serenatas, maxixes, lundus, tangos e mazurcas.
Curiosamente a artista era filha de uma mulher negra, integrante das camadas populares, Rosa Maria de Lima, filha de uma ex-escrava. E de um homem branco, aristocrata, José Basileu Neves Gonzaga, general do exército imperial brasileiro, que constituía a tradicional família de Duque de Caxias. Chiquinha, portanto, integrava em si dois universos distintos, exprimindo assim tal união em sua música, a qual a fez ganhar o mundo.
Entretanto, sua ascensão no mundo não foi algo que obteve com facilidade. Precisou abrir mão dos padrões de conduta vigentes, esperados de uma “moça de família”, e lutar contra sua família e organização social em várias instâncias. Não era aceito na época da artista, finais do século XIX, que uma mulher desenvolvesse uma carreira profissional. As mulheres eram formadas para serem mães e esposas. As moças de famílias abastadas aprendiam a tocar piano apenas para o entretenimento familiar. Não se esperava que uma mulher lançasse mão desse recurso para disputar o palco de teatros, bares e salões com outros homens.
Mas Chiquinha, apesar de ter toda uma configuração social e familiar desfavorável a sua atuação profissional, não se rendeu, e chegou em lugares que até então não haviam sido conquistados antes. Como o posto de primeira maestrina brasileira.
Vemos em sua história uma série de semelhanças com o arquétipo do Carro, seja relativa à integração e equilíbrio entre dualidades, o que Chiquinha Gonzaga representa com seu próprio corpo e sua música, seja pela decisão de abrir mão de seu seio familiar para conquistar o mundo, o reino intermediário da Realidade Terrena. E, por fim, conquistou seu lugar, com toda a coragem e movimento diretivo encerrado pelo Carro.
Proposta Terapêutica
Na oficina da Jornada Arteteterapêutica Arte e Tarô, com algumas músicas da Chiquinha Gonzaga, as participantes dançaram com o lápis sobre o papel, desenhando linhas, caminhos, de modo espontâneo. Após esse exercício, buscaram observar as imagens que emergiam dos traçados espontâneos, e coloriram essa formação identificada. O estímulo era para perceberem as linhas desenhadas, e imagens, como os seus próprios caminhos, propósitos e diretivas.
O que me chamou atenção foi que na maior parte das imagens que surgiram estavam presentes elementos relativos a asas, pássaros e, sobretudo, voo.
O voo
Asas para voar
Escolhe, aconchega, ilumina e voa
O andar, o voo e o mergulho
A participante da primeira imagem dizia sobre começar a sentir o momento necessário de alçar voo em sua vida profissional, o que começou a ocorrer em seguida da produção dessa imagem. Sem dúvida esse voo já estava sendo gestado por longo período.
A noção de voo nos remete à ideia de expandir horizontes, de crescer (abrir as asas), se desenvolver (movimentar-se), de libertar-se do que limita, do que aprisiona. É relevante salientar que não houve menção a essa palavra, ou a nenhuma outra relativa, ao longo da apresentação da oficina, o que nos aponta para uma metáfora que atravessa o imaginário social, ou o inconsciente coletivo, quando falamos de caminhos em desenvolvimento.
Aqui é possível refletir também
sobre que a cada passo dado para dentro, para baixo, ou seja, rumo ao
conhecimento interior, crescemos para fora, nos desenvolvendo familiar e
socialmente. E é essa jornada que o tarô e a arteterapia propõem. Não por acaso,
a cada fileira que percorremos da sequência do tarô, adotada aqui, adentramos
um nível inferior, relativo ao anterior. E especialmente no Reino da Realidade
Terrena, a maior parte das personagens das cartas estão a realizar movimentos
para baixo, apontando assim para o Reino da Auto-realização.
[1] DUARTE, Mercedes.
Diálogos
entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog
Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
[2] A Jornada
Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas, remotas, inspiradas nos
arcanos maiores do tarô em diálogo com determinados elementos da arte.
[3] Esse tema foi
explanado no texto Diálogos
entre Arte e Tarô: uma introdução, (DUARTE, 2021). Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
Referências bibliográficas
DINIZ, Edinha (2009). Chiquinha Gonzaga: uma história de vida. Editora Zahar, 2009.
DUARTE, Mercedes. Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.
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Sobre a autora: Mercedes Duarte
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