Por Eliana Moraes – MG
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Sigo refletindo sobre a importância de se trabalhar com grupos arteterapêuticos no ano de 2022, reflexão que abriu o ciclo de publicação de textos deste ano. Sabemos que o trabalho com grupos possui um grande potencial na sustentação de um espaço regular de encontros, criação de vínculos e pertencimento. Sem dúvida, em um cenário pandêmico com grande redução do repertório relacional e/ou hiperconvivências, o grupo se faz como uma grande oportunidade para encontros, diálogos, espelhamentos, o relacionar-se com o diferente, o modular a forma de comunicar-se, além de proporcionar trocas afetivas, reabastecimentos emocionais e a criação de uma rede de apoio mútuo. Entendemos que a sensação de pertencimento é uma necessidade do ser e que os grupos terapêuticos colaboram em muito para que indivíduos se percebam quanto à esta necessidade e como a estão vivendo.
Entretanto, acredito que seja necessário compreendermos mais profundamente sobre as especificidades de se trabalhar com grupos nos tempos atuais, quando uma gama de fenômenos coletivos mostram-se bastante aquecidos, portanto desafiadores. É importante observarmos no social, fenômenos como a polarização dos discursos, as disputas políticas/religiosas, o clima de intolerância e ódio, que possuem um potencial de progressão devido aos eventos eleitorais de 2022. Naturalmente estes fenômenos coletivos comparecem na escuta clínica quando os indivíduos trazem como demandas terapêuticas suas relações interpessoais sendo por aqueles afetados diretamente, em suas famílias, parcerias amorosas, amigos, relações profissionais e sociais... São recorrentes os questionamentos sobre a manutenção das relações, ou se mantê-las, de que maneira.
É um tempo em que enxergar o “outro” como um “estranho” é cotidiano e a questão “como lidar com o outro ‘diferente’ de mim?”, está na ordem do dia. O que foge à consciência de muitos é que, não raras vezes, aquilo que eu rejeito no outro nada mais é do que o espelhamento da minha sombra, aquilo que eu não vejo em mim, mas (me) enxergo refletido no outro.
Neste contexto, o grupo se faz como uma
modalidade terapêutica que propõe um processo de autoconhecimento na
presença do outro:
Na psicoterapia individual, o paciente fala de
suas relações e atualiza sua forma de se relacionar com o terapeuta – fenômeno
denominado transferência. A psicanálise sustenta que o terapeuta estará
nesta relação não como um sujeito, mas como uma função, pois a partir de
sua técnica espelhará estes comportamentos relacionais ao paciente, e assim se
dará o processo terapêutico. Mesmo a partir de outras abordagens teóricas que
sustentam uma relação entre terapeuta-paciente, o senso comum é que o terapeuta
não agirá com seu paciente da mesma forma que se relaciona com seus amigos,
familiares e relações pessoais, pois de toda forma é baseado em uma técnica
terapêutica.
Em grupos terapêuticos a configuração é outra, pois no setting haverá outras pessoas na mesma condição de sujeito que comporão um grupo, e as relações se manifestarão de forma natural. A oportunidade da relação com outros sujeitos atualizada dentro de um setting terapêutico abrirá um campo para atuações não antes percebidas e pensadas. (MORAES, 2018, p 115)
“Como a presença do outro me afeta ou me atravessa? E o que esse atravessamento fala sobre mim?” Estas são as perguntas que, de forma dita ou não dita, reverberam em um setting terapêutico grupal.
Sendo sempre o grupo terapêutico uma fração das dinâmicas sociais de seu tempo, é muito importante que o terapeuta sustentador do setting nos dias de hoje, reconheça e se instrumentalize para lidar com os “sintomas grupais” característicos da atualidade: intolerâncias, imposição de ideias, movimentos autodestrutivos das relações, introdução de assuntos outros que dispersam do propósito maior – a criação de possibilidades para a sustentação da relação. É importante que o terapeuta permaneça reverberando as perguntas: “Podemos permanecer na relação em torno daquilo que nos une? Podemos permanecer em roda, mantendo a energia mobilizadora do criar?”
Desta forma, acredito que em 2022 poderemos exercer nossa micropolítica: através dos grupos arteterapêuticos, contribuir para uma contracultura, sustentando um espaço de permanência, de estar ao lado, de diálogo, de criações/produções coletivas ou individuais na companhia de outros. Poderemos contribuir para construção de redes sociais mais saudáveis e criativas (na arte e na vida), pois no grupo os participantes viverão ensaios em suas formas de se relacionar que certamente reverberarão em outros grupos sociais.
Grupos arteterapêuticos
Como arteterapeutas, é importante pensarmos, dentro desse contexto, quais são as especificidades da Arteterapia que contribuem para esta modalidade terapêutica. Primeiramente, vale ressaltar que uma das bases de nossa formação é a modalidade terapêutica grupal, nas vivências durante o curso de formação e na maioria das vezes nas práticas do estágio. Nossa formação já nos colabora para a construção de uma grande experiência e vasto repertório de práticas grupais.
Outro ponto interessante se dá quando
visualizamos a multiplicidade de modalidades arteterapêuticas, principalmente
àquelas que possuem uma proposta semiestruturadas (quando o tema é escolhido,
construído, proposto e estimulado pelo arteterapeuta e o grupo se propõe a
vivenciá-lo). A partir desta modalidade o arteterapeuta poderá desenvolver sua
escuta e exercer um manejo consciente sobre quais propostas (temas, técnicas e
consignas) desenvolverão as habilidades sociais dos experienciadores do seu
grupo. Destaco aqui as práticas criativas colaborativas, aquelas que durante o
processo criativo contam com a colaboração, a participação ou até a
interferência do outro.
Por fim, em tempos de projeções de conteúdos sombrios no outro – “o estranho” – os grupos arteterapêuticos possuem um grande diferencial: eles são mediados pela arte. Isto nos remete à especificidade da Arteterapia sobre o manejo da transferência/projeção que se dá na forma da tríade paciente-terapeuta-material. Nesta dinâmica, o material divide com o terapeuta (e com o grupo) o investimento de energia psíquica no fluxo projetivo. Em resumo, o material promove um olhar para si, na relação com o outro: movimento ao qual o arteterapeuta poderá estimular e manejar com a devida consciência sobre esta especificidade teórica da Arteterapia, a medida que lhe for necessário diante dos movimentos grupais.
Concluo este texto trazendo uma poesia de Madalena Freire, que me foi apresentada pela querida professora Lidia Lacava, a qual acredito que sintetiza em versos o que estudamos em teoria.
EU NÃO SOU VOCÊ, VOCÊ NÃO É EU
Madalena Freire
Eu não sou você
Você não é eu
Mas sei muito bem de mim
Vivendo com você.
E você, sabe muito de você vivendo
comigo?
Eu não sou você
Você não é eu.
Mas encontrei comigo e me vi
Enquanto olhava pra você
Na sua, minha insegurança
Na sua, minha desconfiança
Na sua, minha competição
Na sua, minha birra infantil
Na sua, minha omissão
Na sua, minha firmeza
Na sua, minha impaciência
Na sua, minha prepotência
Na sua, minha fragilidade doce
Na sua, minha mudez aterrorizada
E você se encontrou e se viu, enquanto
olhava pra mim?
Eu não sou você
Você não é eu.
Mas foi vivendo minha solidão
Que conversei com você
E você, conversou comigo na sua solidão?
Ou fugiu dela, de mim e de você?
Eu não sou você
Você não é eu
Mas sou mais eu, quando consigo lhe ver.
Porque você me reflete
No que eu ainda sou
No que já sou e
No que quero vir a ser…
Eu não sou você
Você não é eu
Mas somos um grupo, enquanto somos
capazes
de, diferenciadamente,
eu ser eu, vivendo com você e
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