segunda-feira, 30 de novembro de 2020

VYGOTSKY E JUNG: UMA VIVÊNCIA ARTETERAPÊUTICA


Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)

bel.antigin@gmail.com

“O significado é um tijolo na parede dos sentidos.” (Vygotsky)

Em textos anteriores aqui do blog, escrevi sobre a abordagem de Lev Vygotsky, psicólogo russo do início do século XX. Recentemente, descobri uma profissional que trabalha com essa abordagem em sua clínica psicoterápica e arteterapêutica. Lara Scalise, pedagoga, psicóloga e arteterapeuta de Mato Grosso do Sul estuda a obra de Vygotsky com o grupo de pesquisa de Fernando Gonzalez-Rey, que criou a Teoria da Subjetividade a partir da leitura dos textos de Lev Vygotsky. Além disso, Lara é coordenadora de um curso de formação de Arteterapia de Mato Grosso do Sul, na Faculdade Insted.

Em conversas longas sobre o tema, Lara Scalise e eu decidimos fazer uma live no Instagram sobre a abordagem desse gênio nascido na Bielorrússia em 1896. Sugeri que Lara não apenas falasse da abordagem vygotskyana, mas que também fizesse uma curta demonstração com alguma rápida atividade arteterapêutica. Achando que seria insuficiente essa “amostra”, Lara sugeriu oferecer uma vivência online e gratuita pelo Zoom, uma semana após a nossa live. Ajudei na administração dos contatos com os interessados, e essa experiência incrível aconteceu no dia 23 de novembro de 2020, com a presença de praticamente cem por cento dos inscritos.

Após se apresentar, Lara esclareceu que faria um breve apanhado dos princípios de Vygotsky antes e ao longo da vivência e, para a minha grata surpresa, buscaria, também, correlacionar alguns pontos da abordagem vygotskyana com conceitos da teoria de Jung – um presente de Lara para mim, já que eu havia comentado com ela que queria fazer, em minha próxima monografia, a correlação entre esses dois gênios da psicologia, os quais amo de paixão.

Jung, nascido na Suíça em 1875, criou a Psicologia Analítica, muito divulgada no Brasil entre os arteterapeutas do país. Acho que Jung e Vygotsky nunca se encontraram, embora fossem contemporâneos. Enquanto o psicólogo bielorusso se formava em Direito na então União Soviética, no ano mesmo da revolução bolchevique no país (1917), Jung já havia trabalhado com Freud e dele se afastado nessa época, voltando-se para a sua Psicologia Complexa. O trabalho de Vygotsky permaneceu fechado na Rússia ditatorial de Stalin, enquanto o de Jung se espalhou pelo mundo. Mas agora a obra desses dois gênios da psicologia pode realmente ser compreendida e obter a relevância merecida.

Lara começa sua vivência lembrando-nos que tanto Vygotsky quanto Jung trabalharam com processos criativos e abordaram o desenvolvimento do sujeito a partir desses processos. Ambos, também, defendem a importância da experiência, que conduz o sujeito à evolução psíquica. Mas, enquanto Vygotsky aborda o processo de transformação para a singularidade, Jung trata de um autoconhecimento que busca a totalidade. Só que, na verdade, ambos estão falando de unir as contradições (no caso de Vygotsky) e os polos opostos (no caso de Jung). Apesar de terem valores heurísticos diversos, os dois ocupam-se desse processo de desenvolvimento do ser humano. Por isso, suas teorias podem nos ajudar muito no nosso trabalho arteterapêutico.

Para que pudéssemos vivenciar, na prática, o valor da experiência, Lara nos propôs, como primeira atividade, escrever num papel, durante um minuto, todos os usos possíveis para um tijolo. Depois, os participantes comentaram suas respostas, que foram as mais variadas e algumas incomuns, como objeto de agressão ou prendedor de porta. Algumas pessoas trouxeram lembranças antigas, às vezes da infância, do uso do tijolo. O fato de trocarmos diferentes visões de um mesmo objeto ampliou nossas perspectivas; o sentido dado ao tijolo foi diferente para cada pessoa de acordo com a experiência de vida de cada um. Embora o signo – tijolo – fosse comum a todos (porque os signos são socialmente desenvolvidos), os sentidos vêm da singularidade do indivíduo. A partir da experiência pessoal daquilo que vem de uma construção social (a herança histórico-cultural, em Vygotsky, ou o inconsciente coletivo, segundo Jung), cada sujeito lhe dá um sentido próprio, pessoal, singular. Nesse momento, Lara nos coloca que, se ela voltasse a solicitar a feitura da mesma atividade, nossas respostas já seriam diferentes, pois incorporariam os usos mencionados por nossos colegas de grupo, o que representa uma ampliação de consciência, ocasionada pelo experimentar e pelo compartilhar na coletividade, que conduzem a um desenvolvimento criativo. É dessa forma que a aprendizagem leva ao desenvolvimento.

Um outro ponto de semelhança entre Jung e Vygotsky que Lara Scalise nos traz  é o inconsciente. Para Vygotsky, o que está no inconsciente é aquilo que não tem sentido para o sujeito, aquilo que está dentro dele mas ele não reconhece. Além disso, é o que se manifesta nas ações do sujeito quando ele está em desconexão com o seu agir, quando tem dificuldades de lidar com os conflitos, entre outras coisas. E, para Jung, o inconsciente também é responsável pelo que chamamos de “destino”, controlando muitas de nossas ações por falta de consciência de alguns aspectos internos nossos na psique.

O segundo exercício proposto por Lara foi a tarefa de desenhar um animal muito peculiar, seguindo instruções precisas que ela nos ofereceu (como orelhas de elefante, corpo de cachorro peludo, asas pequenas de morcego, etc). Quando acabamos a atividade, comparamos nossos desenhos uns com os outros e vimos que, embora com as mesmas instruções, bem precisas, cada trabalho ficou bem diferente um do outro. O que é uma cabeça de cavalo grande para um é diferente do que é uma cabeça de cavalo para o outro, de acordo com a singularidade de cada um. Analogamente, para se chegar à casa de alguém, cada pessoa sairá de um ponto diferente da cidade e terá que percorrer caminhos diversos. É o mesmo no caminho de desenvolvimento psíquico do sujeito, tanto para Vygotsky em seu processo de singularização, quanto para Jung e seu processo de individuação.

Em seguida, fizemos uma vivência para experienciarmos os conceitos abordados até então. Assim, primeiro, Lara nos solicitou que pegássemos uma folha de sulfite e um lápis grafite e listássemos, no papel, todas as dificuldades que temos em nossas vidas no momento (etapa: “encontrando dificuldades”). Depois, pediu-nos que escolhêssemos uma dessas dificuldades e nos concentrássemos nela. Em seguida, deveríamos pegar outra folha sulfite e pintá-la totalmente com o lápis, como se colocássemos a dificuldade selecionada dentro da sombra (conceito de Jung, para aquilo que em nós não enxergamos sobre nós mesmos). Ao mesmo tempo em que cobríamos a folha com o grafite, deveríamos pensar nesse problema, como ele nos afeta, como nos cria novas dificuldades. Depois disso, tivemos que relacionar vários fatores que levavam a essa dificuldade, os motivos desse problema existir. Após isso, foi preciso escolher um dos fatos, o mais significativo, aquele que provocava mais sentido para a existência dessa dificuldade. Então, Lara nos explicou que, para Vygotsky, o que fica inconsciente, como já foi falado, é aquilo a que não demos sentido (a mancha preta, a folha preta). Assim, é necessário trazer à consciência novos sentidos, pelo processo criativo e pela ampliação da possibilidade de resolução de problemas. Para Jung, essa mancha escura é a sombra, cujos conteúdos precisam, ao longo da vida, ser levados à consciência e nela ser integrados. Por isso, na etapa seguinte da vivência, Lara nos solicitou que, na folha pintada de grafite, fizéssemos, com a borracha, um desenho, trazendo luz a esse espaço escuro. A borracha abre caminhos, possibilidades de ideias, percursos diversos. Por isso, pode-se fazer esta atividade com o uso de borrachas de tamanhos e formas variadas, configurando, no desenho, formas diferentes de lidar com a sombra e de criar novos sentidos. Por isso, ao mesmo tempo em que abríamos caminho na sombra com a borracha, deveríamos pensar em possibilidades para lidar com o nosso problema.

Na etapa seguinte, “encontrando ideias”, Lara solicitou que pensássemos e escrevêssemos o maior número de ideias para a solução desta dificuldade, sem racionalizar neste momento. Em seguida, deveríamos tentar identificar as melhores possibilidades e alternativas, dentre as que foram listadas espontaneamente. Este passo, segundo a teoria de Vygotsky, possibilita-nos buscar novas configurações de sentido. Nossa personalidade, explica Lara, “nada mais é do que uma configuração de configurações de sentidos”. Quando as crenças não foram adequadas ou as experiências não foram vividas adequadamente, geram-nos conflitos. Mas, quando essas crenças são confrontadas a partir de novas ideias e quando novos sentidos subjetivos podem ser percebidos pelo sujeito, as configurações atuais são modificadas. Assim, configurações inadequadas que, antes, geravam danos são, agora, transformadas por situações possíveis de resolução de problemas, a partir de novas crenças. Na psicoterapia vygotskyana, isso se chama “tensionar para a reflexão”. O psicoterapeuta, através do diálogo, tensiona o sujeito para que, a partir dessa tensão, esse sujeito possa enxergar o que lhe gera danos, causados por sentidos subjetivos inadequados, e para que crie novas possibilidades e vislumbre formas de sentidos subjetivos mais adequados e, consequentemente, possa mudar sua configuração subjetiva. Da mesma maneira, para Jung, no momento em que o indivíduo começa a olhar a sua sombra, a partir da reflexão, e, tirando as máscaras da persona, pode integrar aspectos antes reprimidos pelo ego, há uma ampliação de consciência, e o ego pode se estruturar saudavelmente. Nem para Jung nem para Vygotsky, o inconsciente deve ficar isolado da consciência, pois os dois têm que ser integrados.

No último passo da vivência, Lara nos pede para buscarmos soluções, através do desenho, trazendo as questões para a consciência através da materialidade. Pegamos um lápis e, na mesma folha, começamos a desenhar livremente, considerando a proposta de pensar soluções e organizá-las para a solução do problema. Para isso, foi preciso imaginar possíveis fontes de ajuda e formular um plano de ação detalhado sobre o problema inicial. Nesta etapa, o movimento cinestésico criativo de desenhar cria sensações e conduz a novas percepções a respeito da sombra. Do sensorial e do perceptivo, passamos para o campo afetivo e, por fim, para o cognitivo, no momento em que tivemos que pensar estrategicamente sobre a questão. Daí, passamos para o nível simbólico, onde se criou sentido para aquilo que, antes, era um movimento simplesmente amórfico, cinestésico, só do corpo, só do sentimento. A partir daí, um continuum expressivo para o problema foi criado.

Ao final, Lara coloca que a vivência buscou, através do processo criativo, mostrar aspectos teóricos de Vygotsky e Jung e as conexões entre as vertentes psicológicas deles. Os participantes elogiaram muito e descreveram suas experiências pessoais nas atividades propostas. Houve relatos de pessoas que encontraram a solução efetiva para o seu problema, ao final do processo. Então, Lara explica que as várias fases da vivência permitem que essa solução vá tomando forma, aos poucos, o que nos mostra que, na vida, também é preciso viver as etapas, sem a precipitação de querer pular alguma(s) dela(s). Viver o processo, etapa por etapa, torna-nos serem ativos, ao invés de reativos às situações que nos são apresentadas na vida, pois, assim nos apropriamos de nossas experiências, ao lhes darmos sentido.

* Para assistir a live (teórica) de Isabel e Lara acesse pelo instagram @isabelpires.artepsi

* Se você se interessa em fazer o curso de formação em Arteterapia no estado de Mato Grosso do Sul, a qual Lara é coordenadora, acesse o site CLIQUE AQUI

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Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)


Isabel Cristina Carvalho Pires é jornalista, professora de línguas, psicóloga e arteterapeuta. Possui formação em Antiginástica ® Thérèse Bertherat, pós-graduação em Língua Portuguesa e Língua Inglesa e cursa a Pós-Graduação em Psicologia Junguiana na Universidade Estácio de Sá, sob a coordenação de Walter Boechat. Atende jovens e adultos presencialmente e online, em sessões individuais ou em grupos, e mora no Rio de Janeiro. Adora gatos.

12 comentários:

  1. Amei! Parabéns pelo texto! Continue compartilhando suas vivências. Essa troca é muito importante para o nosso crescimento. Bjs

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    1. Obrigada, Elenice! Sim, a troca é muito importante, já nos diz Vygotsky. Bjo

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  2. Parabéns Isabel. O conhecimento compartilhado permite o crescimento.

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  3. Oi, Bel! Vindo de vc é sempre fantástico... li td e me encantou sua forma de apresentar as comparações. É para ser lido e relido!💯🌺

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  4. Isabel,
    Sen-sa-ci-o-nal este texto ! Já havia me encantado com o texto que você escreveu anteriormente neste blog, quando então fui apresentada a Vygotysk (só eu não conhecia????). Daí veio a live com você e a Lara, assisti! E então apareceu a proposta de uma vivência pelo zoom! Lendo seu texto foi exatamente como se eu estivesse lá naquele grupo, agora. Lembrei-me da condução da Lara, os desenhos, as falas do grupo. Se soubesse que estaria aqui na foto, teria passado perfume....kkkkk
    Parabéns pelo texto !
    Bjs, Claudia Abe

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    1. Obrigada por seu carinho e participação, Cláudia! Você ficou ótima na foto, mesmo sem o perfume. Rss Beijo grande.

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  5. Um diálogo fantástico e necessário entre dois GIGANTES. Meu coração se inunda de orgulho com a sua competência e intelectualidade. Você se permite seguir seu coração e ele te guia para desbravar caminhos novos e belos. Gratidão por compartilhar uma pedaço de si com o mundo.

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  6. Obrigada por compartilhar está vivência, tb sou pedagogo e percebia a semelhança entre os dois, adorei. Parabéns!!!

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