“É
fundamental valorizar o lado saudável do cliente, e não ficar procurando
sintomas para adoentá-lo cada vez mais. Ora, se você observa com desprezo o
doente mental, só enxergará tristeza, miséria, decadência. No entanto, se você
for mais além e conseguir olhar o outro lado do ser, descobrirá tesouros
maravilhosos, incalculáveis . . . Como eu não sou boba nem nada, decidi olhar o
lado mais rico. Foi exatamente desta riqueza que nasceu o meu trabalho.”
Nise
da Silveira
Tive a oportunidade de
trabalhar numa unidade de saúde mental e o que no início foi um desafio, ao
longo do tempo se tornou uma paixão pela possibilidade de ampliar a minha
escuta clínica, estar diante de um trabalho extremamente rico e de pessoas
igualmente ricas no potencial criativo mesmo no momento de adoecimento.
A colocação da Dra. Nise da
Silveira me sensibiliza quando ela fala desse “olhar além” sobre a doença
mental e encontrar o lado mais rico do sujeito que atravessa o sofrimento
psíquico. Trata-se de um trabalho que envolve entrega e sensibilidade diante de
pessoas que muitas vezes não são ouvidas e ainda são tratadas à margem da
sociedade pelas dificuldades que apresentam.
Na condição de internação
psiquiátrica, mesmo que de curta duração (em média 15 dias), o sujeito se vê num
primeiro momento confuso e tentando entender o sentido de estar afastado da sua
vida cotidiana. O estado agudo da doença faz com que ele algumas vezes não se lembre
dos acontecimentos que precederam e motivaram a internação. Diante desse
cenário é imperativo proporcionar ao sujeito um espaço de escuta bem como de
fala sobre as suas questões psíquicas e emocionais.
Um passo importante para a
construção desse espaço de escuta e fala foi a oportunidade de realizar a
oficina de grupo semanal com técnicas expressivas. Pretendo nesse texto
compartilhar a experiência nesses grupos e mostrar o potencial da técnica
expressiva num contexto de grande sofrimento psíquico.
O formato dos grupos
Devido ao curto tempo de
internação, os grupos eram compostos de forma aberta. Então a cada semana
trabalhava com pacientes novos salvo algumas exceções.
Não era estabelecido um
critério específico de perfil de paciente que iria participar: todos eram
convidados e estimulados a compartilhar desse momento, o que tornava a dinâmica
do grupo muito rica pela heterogeneidade de pessoas e suas possibilidades de
expressão bem como de troca um com o outro.
Técnicas e materiais utilizados
O trabalho era proposto de
forma semi-estruturada onde inicialmente era feita uma sensibilização com o recurso
da leitura de uma poesia, de um texto ou uma música o que já promovia uma
abertura para ideias, reflexões e trocas entre os participantes. A partir desse
momento inicial passávamos para a segunda etapa voltada para o processo
criativo individual.
A criação de mandalas,
por exemplo, que ao trabalhar com as formas, contornos e cores possibilita uma
vivência estruturante em busca de um equilíbrio auxiliando no reestabelecimento
da ordem psíquica.
Segundo Reis (2014), a função
terapêutica de desenhar mandalas está ligada à autodescoberta, pois elas
registram o estado psíquico do indivíduo em diferentes momentos, representando,
a partir de linhas, cores e formas, sua energia psíquica e a organização de seu
mundo interno.
Outro recurso utilizado foi a colagem
com imagens de revista, recortes de palavras ou papéis coloridos.
Moraes (2018) nos fala que o
processo de colagem se dá em dois tempos, riquíssimos em simbolismos, que
remontam dinâmicas tão presentes na vida cotidiana: o primeiro se refere à
desconstrução, fragmentação, um caminho para a abstração; o segundo, a colagem
propriamente dita, se refere à (re)construção e (re)composição como um caminho
possível diante dos fragmentos físicos e/ou subjetivos.
Percebendo a demanda psíquica
e emocional dos participantes que em sua maioria vêm de um processo de
desconstrução, desorganização e transbordamentos optei por trabalhar com esse
segundo momento da colagem que proporciona a vivência de construção de uma nova
possibilidade através daquilo que está fragmentado. Nesse processo é visível o
quanto a colagem é um recurso estruturante e que permite “encontrar um ‘novo
possível’ (as vezes ‘não belo’, não harmonioso, não equilibrado), (re)compor,
ressignificar, reinventar(-se)” (Moraes, 2018).
Durante essa segunda etapa,
onde a atividade era proposta e os materiais oferecidos, observar o movimento
de cada um, sedento por se expressar e ao mesmo tempo organizar seus
sentimentos é um momento que exige do terapeuta um olhar atento, delicado e
inteiro para que se faça presente mas sem interferir no processo de cada um.
Após o processo criativo
individual, todos eram convidados a compartilhar no grupo a sua experiência.
Momento único onde surgia a beleza e a riqueza de um espaço de fala, escuta e
troca de histórias, sentimentos, dores, perdas, vitórias, conquistas, lágrimas
e sorrisos. Pessoas em sofrimento psíquico acolhendo umas as outras através do
que cada uma produziu plasticamente sobre a sua história e o afeto gerado
aquecendo o coração de todos os presentes.
Parafraseando a Dra. Nise da
Silveira, “como não sou boba nem nada” optei por olhar e acolher essa riqueza
coletiva que tive a oportunidade de vivenciar. Agradeço a cada uma dessas
pessoas que ao compartilhar as suas dores tocaram de forma muito especial o meu
coração e certamente me conduziram nessa linda estrada que é ser terapeuta.
Obs.: Não poderia deixar de
registrar o meu agradecimento especial pela presença através de supervisão da
arteterapeuta e psicóloga Eliana Moraes que acreditou nesse trabalho e na minha
riqueza como terapeuta para realizá-lo!
Referências Bibliográficas:
HORTA, B.C. Nise – Arqueóloga dos Mares. Rio de
Janeiro: e+a edições do autor, 2008.
MOREAS, E. A colagem na prática da arteterapia:
propriedades e aplicabilidades. Blog Não palavra. Rio de Janeiro,
30/04/2018. Disponível em: http://nao-palavra.blogspot.com/2018/04/a-colagem-na-pratica-da-arteterapia.html?m=1.
Acesso em 04/06/2019.
REIS, A.C. Arteterapia: a arte como instrumento no
trabalho do psicólogo. Revista Psicologia: Ciência e Profissão. Santa
Catarina, 34 (1), 142-157, 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v34n1/v34n1a11.
Acesso em 02/06/2019.
_________________________________________________________________________________Sobre a autora: Patrícia Serrano
Psicóloga
Pós-graduada em Psicologia Hospitalar pela FIOCRUZ
Gestora de materiais do Não Palavra
Atendimentos clínicos individuais
Gratidão por compartilhar sua experiência e a importância da arte como possibilidade estruturante!
ResponderExcluirObrigada, Valéria!
ExcluirPatricia, parabéns pelo excelente trabalho. Sou grata por ter trabalhado com você e vivenciado experiências tão ricas que fizeram a diferença na minha carreira como assistente social.
ResponderExcluirEu que agradeço a oportunidade de ter trabalhado com você! Me mostrou o verdadeiro significado do trabalho em equipe.
ExcluirOi Patrícia soy arteterapeuta e trabalho em um Caps no Rio Grande do Sul e quero te parabenizar e reforçar o sentinento que você narra de gratidão peka oportunidade de trabalhar com esses clientes. Amo ser arteterapeuta. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada pelo carinho!
ResponderExcluirTrabalho desafiador e gratificante. Obrigada por compartilhar sua experiência.
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