Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
Em 2017 caminho para meu
décimo ano em prática clínica, que iniciou-se em psicoterapia com eventual uso
das técnicas expressivas até migrar gradualmente para a clínica da Arteterapia
propriamente dita. De fato este foi um percurso gradual, que demandou (e sempre
demandará) muito estudo para minha instrumentalização, mas sobretudo uma
sensibilidade para que efetivamente a clínica – ou seja, os próprios
pacientes – fosse construindo meu estilo e manejo.
Para tanto, tomo como
referência os textos freudianos, aos quais tenho me dedicado ao estudo de forma
mais sistemática neste ano. Durante sua leitura, fica claro que tudo o que Freud
escrevia havia sido despertado a partir de sua clínica. Ele observava, pensava,
escrevia, compartilhava com seus pares e assim avançava em suas construções
teóricas. Os passos de Freud me inspiram
em meu caminho de clínica da Arteterapia, e cada vez mais nela eu acredito.
A
Arteterapia e a Depressão
O processo de elaboração deste
texto se estende há alguns meses (e ainda está em aberto) desde que recebi na
clínica um(a) paciente com o quadro depressivo mais grave que já tive a
oportunidade de testemunhar. Um membro da família assistiu o filme da Nise da
Silveira e intuitivamente compreendeu que a arte poderia contribuir de alguma
forma para alguém já no limite de seu sofrimento. Assim, me procurou como
arteterapeuta e desde então venho me dedicado à este atendimento de forma a
oferecer a arte como um vetor de saúde para esta pessoa e em paralelo aguçando
minha escuta e observação para singularidades em que a Arteterapia a partir de
suas propriedades pode contribuir para alguém com quadro depressivo grave.
Neste texto, algumas considerações às quais pensei até aqui.
Para me orientar e
instrumentalizar para a escuta e manejo neste atendimento, busquei o texto “Luto
e Melancolia” ao qual Freud diferencia aqueles momentos em que a tristeza e os
sintomas depressivos aparecem como uma reação natural e humana diante das
perdas da vida, e momentos em que estas manifestações se tornam patológicas:
“O luto, de modo geral, é a reação à perda
de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente
querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém e assim por diante. Em
algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por
conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição
patológica. Também vale a pena notar, que, embora o luto envolva graves
afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais
ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica...
Os traços mentais distintivos da
melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo
mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer
atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar
expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento, culminando numa expectativa
delirante de punição.” (FREUD 1915-1917)
Diante desta perspectiva,
tenho pensado sobre algumas propriedades da Arteterapia ao qual podem agir
diretamente em traços característicos do quadro depressivo:
Sobre
o esvaziamento
Pacientes com este perfil se
apresentam na clínica com um esvaziamento extraordinário. Empobrecido em suas
palavras, movimentos e interação:
“... a inibição do melancólico nos parece
enigmática porque não podemos ver o que é que o está absorvendo tão
completamente. O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no
luto – uma diminuição extraordinária de sua autoestima, um empobrecimento de
seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na
melancolia, é o próprio ego. O paciente
representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer
realização e moralmente desprezível.” (FREUD 1915-1917)
Naturalmente este esvaziamento
e sensação de incapacidade de qualquer realização se constelarão nas imagens
produzidas e no processo criativo do paciente. É essencial que o arteterapeuta
desenvolva sua escuta para esta manifestação que se apresenta como uma mensagem
do paciente quanto àquilo que lhe é possível. As imagens empobrecidas e o
processo criativo (desatentamente) lido como “rápido”, não podem assustar ao arteterapeuta
e nem acessar sua ansiedade em estimular que o paciente explore outros
materiais, outros espaços, outras possibilidades.
Cada trabalho produzido é
efetivamente “um trabalho” para aquele sujeito com investimento de energia tão
reduzida para os objetos. Aquele resultado demandou grande esforço e é este
movimento que merece nossa escuta.
A
arte como um caminho possível
Outra manifestação comum neste
quadro se dá na baixa autoestima exacerbada, em que há uma constância em
comentários autodepreciativos, autorrecriminadores, e extrema desvalorização de
si e de tudo que lhe pertence. Este de fato é um grande desafio para o
terapeuta, pois uma escuta desatenta pode despertar desconforto, incômodo ou
até mesmo irritação diante da “monotonia” deste discurso.
A teoria nos mostra e a
prática me confirma que ceder “ao diálogo” com este sujeito sobre “suas percepções
equivocadas” e tentar persuadi-lo a enxergar outras perspectivas, é inócuo e um
desserviço para o processo terapêutico:
“Seria igualmente infrutífero, de um ponto
de vista científico e terapêutico, contradizer um paciente que faz tais
acusações contra seu ego. Certamente, de alguma forma ele deve estar com a
razão, e descreve algo que é como lhe parece ser... Ele se encontra, de fato,
tão desinteressado e tão incapaz de amor e de realização quanto afirma...
trata-se do efeito do trabalho interno que lhe consome o ego...
O ponto essencial, portanto, não consiste
em saber se a autodifamação aflitiva do melancólico é correta, no sentido de
que sua autocrítica esteja de acordo com a opinião de outras pessoas. O ponto
consiste, antes em saber se ele está apresentando uma descrição correta de sua
situação psicológica. Ele perdeu seu amor próprio...” (FREUD 1915-1917)
Assim, o convite à arte se
mostra um recurso eficaz para o deslocamento do olhar para o terapeuta por
parte do paciente. Aqui o arteterapeuta pode explorar a outra via de transferência
característica do setting arteterapêutico: aquela que se direciona ao material.
A partir dela o paciente terá a oportunidade e será convocado a se (re)ver através do
espelhamento que todo o processo criativo e a imagem proporcionam.
O
criar como causador de desejo
O convite ao criar se
apresenta como um vetor de saúde para pacientes tão embotados e empobrecidos em
seus investimentos e desejo. Ele movimenta, faz com que o paciente se esforce
para romper a inércia, o lugar conhecido.
Ele amplia o olhar viciado e reduzido quando apresenta novas possibilidades.
Produz inquietude, desperta curiosidade e desafia o paciente. Estimula que ele
exercite sua mente, se esforce e busque soluções, fazendo com que amplie seu
repertório. Ao se ver capaz de dar forma e transformar seus conteúdos em cores,
formas e imagens o paciente acessa sua autoestima. Todo este processo produz algum
prazer e estimula ao paciente a resgatar seus desejos de vida!
Além disto, no decorrer do
processo criativo, o paciente se depara com "micro" oportunidades de elaborações e
retificações que aparentemente podem soar “pequenas”, mas absolutamente não são,
pois dele demanda um grande esforço.
Lembro aqui um fragmento da
poesia de H. Heine, citado por Freud:
“Foi a doença que
causou
meu ímpeto para
criação;
e criando pude ficar
são,
e criar foi que me salvou.”
(FREUD, 1914)
O
estímulo ao ser humano integral
“O
complexo de melancolia se comporta como uma ferida aberta, atraindo para si as
energias catexiais... provenientes de todas as direções, e esvaziando o ego até este ficar totalmente empobrecido.” (FREUD,
1915-1917)
“A
experiência criativa nos ‘transpassa’ e permite que ‘transbordemos’ e
atravessemos limites e interdições, resgatando
‘notícias de nós mesmos’ nem sempre claras e acessíveis...” (PHILIPPINI)
Considero que uma das belezas
da Arteterapia se dá pelo fato de ser um procedimento terapêutico que por
definição acessa o ser humano de forma integral. Quando nos deparamos com um
paciente com o ego tão esvaziado e empobrecido, o exercício da Arteterapia naturalmente
o estimulará em seus aspectos:
- Psíquico
Por meio do criar e amparado
pela transferência com o arteterapeuta, aquele sujeito terá a oportunidade de
se revisitar e se rever, fazer movimentos de reinvestimento,
enfrentamento e tomadas de decisão, acessando seu desejo. Este processo coopera para que ele se
responsabilize por si como autor e protagonista
da sua obra/biografia.
- Cognitivo
Durante a
execução de um trabalho em Arteterapia, o paciente naturalmente é estimulado a
manter-se atento e concentrado, analisando, planejando, buscando estratégias e
soluções criativas para a materialização daquilo que tem em mente. Muitas vezes estes pacientes podem apresentar prejuízos
cognitivos devido aos sintomas depressivos ou até mesmo pela medicação ou
efeitos colaterais do tratamento. Assim,
a Arteterapia também coopera para estimulação de diversas funções cognitivas,
como atenção, concentração, memória, linguagem, percepção e sensação, abstração,
criatividade, funções executivas, praxia, etc.
- Físico
O processo criativo no setting
arteterapêutico inclui o corpo como expressão. Estimula um corpo catatônico ao
movimento e à ação. Convoca um corpo enfraquecido ao esforço de manipular um pelo
de argila ou à força para abrir a tampa de um pote de tinta.
- Espiritual
Por fim, um estímulo
espiritual, e aqui me lembro de Kandinsky que através da arte propõe uma “mudança
de rumo espiritual”:
“Quem quer que mergulhe nas profundezas de sua arte, em
busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer essa pirâmide espiritual que
chegará ao céu”. KANDINSKY
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências
Bibliográficas:
FREUD, Sigmund. A guisa de
Introdução ao Narcisismo. Obras Completas. 1914
______________ Luto e Melancolia. Obras Completas.
1915-1917.
KANDINSKY, Wassily. Do
espiritual na Arte
PHILIPPINI, Ângela. Linguagens
e Materiais Expressivos em Arteterapia: Uso, indicações e propriedades
Muito bom o artigo. Obrigada!
ResponderExcluirAdorei o texto. Foi muito esclarecedor quando ai trato com pessoas depressivas. Obrigada
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