Por Eliana Moraes – MG
naopalavra@gmail.com
Neste texto damos continuidade ao estudo sobre a articulação entre conceitos básicos da Logoterapia e Arteterapia. Essa pesquisa vem sendo compartilhada em palestras do Não Palavra (gravadas e disponíveis para aquisição) e em textos postados no blog que delas fazem um breve resumo.
Em texto anterior (CLIQUE AQUI) concluímos que beber da fonte da arte e a contínua
prática criativa coopera para o desbloqueio da dimensão noética, sendo este o
norte orientador do trabalho logoterapêutico. E que, conforme a proposta da
Logoterapia, a Arteterapia acolhe o sujeito em sua integralidade alcançando
suas dimensões física, psíquica e noética.
Compreendemos que a Dimensão Noética é composta por aspectos como
a Consciência, o Pensamento crítico, Liberdade e Responsabilidade, Escolhas
e Atitudes, Ética e Valores, Espiritualidade e Sentido de vida, Religiosidade,
Criatividade e experiências com a Arte. No presente texto nos
aprofundaremos nos itens destacados.
Em seu best seller “Em busca de sentido”, Viktor Frankl já
nos chama a atenção sobre o imperativo da Liberdade, a liberdade interior:
“Onde fica a liberdade humana?” Não haveria ali um mínimo de liberdade espiritual no comportamento, na atitude frente às condições ambientais ali encontradas? Será que a pessoa nada mais é que um resultado de múltiplos determinantes e condicionamentos, sejam eles de ordem biológica, psicológica ou social? Seria a pessoa apenas o produto aleatório de sua constituição física, da sua disposição caracteriológica e da sua situação social?... A experiência da vida no campo de concentração mostrou-nos que a pessoa pode muito bem agir “fora do esquema”... e que continua existindo, portanto, um resquício de liberdade do espírito humano, de atitude livre do eu frente ao meio ambiente, mesmo nessa situação de coação aparentemente absoluta, tanto exterior como interior... E mesmo que tenham sido poucos, não deixou de construir prova de que no campo de concentração se pode privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas. (FRANKL, 2019, 87-88)
A retomada de minha leitura do livro “Em busca de sentido” se deu em 2020, ano de pandemia e não por acaso, ano em que a teoria da Logoterapia resgatou um destaque nos estudos em Psicologia. O texto de Frankl me serviu tanto de reflexão pessoal como em reflexões clínicas, demonstrando aos pacientes que ainda havia alguma liberdade individual para o enfrentamento da pandemia dentro de sua biografia. Dessa forma, vivenciamos na prática da vida algo que Frankl já nos apresentava em teoria: a relação entre a Liberdade e a Responsabilidade:
A liberdade, no entanto, não é a última palavra. Não é mais que parte da história e metade da verdade. Liberdade é apenas o aspecto negativo do fenômeno integral cujo aspecto positivo é responsabilidade. Na verdade, a liberdade está em perigo de degenerar, transformando-se em mera arbitrariedade, a menos que seja vivida em termos de responsabilidade. É por esse motivo que propus a construção de uma Estátua da Responsabilidade na Costa Oeste dos Estados Unidos, para complementar a Estátua da Liberdade na Costa Leste. (FRANKL, 2019, 154)
As expressões “negativo” e “positivo” aqui não são utilizadas como
juízo de valor, mas sim fazendo referência à relação de complementaridade entre
esses dois aspectos. Teorizando sobre esse binômio, Viktor Frankl se posiciona
radicalmente contra a possibilidade de determinismos e condicionamentos,
considerando-os reducionistas do ser humano:
O
autor se posiciona contra todo tipo de reducionismo – seja ele biológico,
sociológico ou psicológico – que tolhe a responsabilidade e a liberdade
humanas...
Apesar
dos condicionamentos determinísticos da condição humana, os instintos, a
hereditariedade e o meio ambiente constituem-se os meios pelo qual o
indivíduo se afirma, mas ele não perderia sua liberdade de se posicionar ou
seja, de se submeter ou transcender às determinações (FRANKL, 1990a).”
(AQUINO, 2013, 50-51)
Viktor Frankl criticava o que chamou de “pandeterminismo”, a ideia de que o ser humano poderia ser totalmente condicionado e determinado por suas condições. Ele compreendia que apenas as dimensões psicofísicas podem ser condicionadas. Porém, a dimensão espiritual/noética – aquela que nos diferencia como seres humanos – seria incondicionada, uma vez que “uma das principais características da existência humana está na capacidade de se elevar acima dessas condições, de crescer para além delas.” (FRANKL in AQUINO, 2013, 101). Neste sentido, a Logoterapia propõe uma reumanização do sujeito atendido, oferecendo-lhe uma psicoterapia a partir do espiritual, ou seja, da apropriação de sua dimensão noética e as propriedades que ela contém.
Desta forma, a Logoterapia diferencia o que é ser “livre de” e “livre para”:
A Logoterapia reconhece que o ser humano não é livre de condições, mas livre para se posicionar “apesar das condições”. Afinal, a pessoa também é influenciada por forças ambientais, biológicas e psicológicas, mas, na dimensão noética possui posturas e ações. Não apenas reage, mas responde. (AQUINO, 2013, 52)
Em síntese, “A Logoterapia procura criar no paciente uma
consciência plena de sua própria responsabilidade.” (FRANKL, 2019, 134). E quanto à liberdade:
...
seria compreendida como uma possibilidade de
escolha na concretude das situações... Nesses termos, considerando os
aspectos da consciência, responsabilidade e liberdade, o eu é construído de
acordo com as decisões realizadas, configurando, dessa forma, o seu
ser-no-mundo. Assim, ele afirma: “eu ajo não apenas em consonância com o
que sou, como também me transformo em consonância com o que ajo” (FRANKL,
1990a, p 99)...
Assim, liberdade e responsabilidade constituem as duas faces de uma mesma situação.” (AQUINO, 2013, 52)
Liberdade e Responsabilidade
na Arteterapia
Fayga Ostrower, que teoriza sobre o fenômeno da criação, diz que:
A
criação exige do indivíduo criador que atue...
A atividade criativa consiste em transpor certas possibilidades latentes para o real. As várias ações, frutos recentes de opções anteriores, já vão ao encontro de novas opções, propostas sugeridas no trabalho, tanto assim que continuamente se recria no próprio trabalho uma mobilização interior, de considerável intensidade emocional. (OSTROWER, 71)
Compreendemos assim a Arteterapia como uma modalidade terapêutica
que convoca o paciente à ação, em oposição à dificuldade de realizações,
comportamento queixoso do outro, posturas “preguiçosas” e “não responsáveis”
por si. No processo criativo o sujeito “trabalha”
e ao trabalhar, uma série de mobilizações corporais, psíquicas, cognitivas e noéticas
acontecem:
No
trabalho o homem intui. Age, transforma, configura, intuindo... Ao criar...
nesse processo configurador o indivíduo se vê diante de encruzilhadas. A todo
instante, ele terá que se perguntar: sim ou não, falta algo, sigo, paro...
Nessa
mobilização está inserido um senso de responsabilidade.
As opções se propõem quase que em termos de princípios de “certo ou errado” e, no
caso das artes, o quanto custa decidir uma pincelada, a exata tonalidade de
uma cor, o peso de uma palavra, uma nota certa, todo artista bem o sabe dentro
de si.
(OSTROWER, 70-71)
A autora defende que cada uma dessas escolhas do artista será orientada por uma bússola interna. Compreendemos que a descrição dessa bússola pode ser associada às propriedades da Dimensão Noética e seus valores:
Essa
mesma busca, o indivíduo não sabe quanto poderá durar, nem exatamente aonde ela
o levará. Conquanto exista uma predeterminação interior que o impulsiona e
também o orienta, algo que ao iniciar o trabalho, o indivíduo mais ou menos
pressupõe e imagina...
Propondo,
optando, prosseguindo, ele parece impulsionado por alguma força interior a
induzi-lo e a guiá-lo como se dentro dele existisse uma bússola. Essa lhe
diz: vá adiante, revise, ajunte, tire, acentue, diminua, interrompa!...
A
resolução refletirá em tudo seu equilíbrio interno pois a bússola não era senão
ele mesmo. É um momento de entendimento de si. No
processo de trabalho, entre a abertura e o fechamento da obra, o indivíduo se
determinou e veio a reconhecer-se. (OSTROWER, 71-72)
Viktor Frankl, autor da Logoterapia, afirma que: “eu ajo não
apenas em consonância com o que sou, como também me transformo em consonância
com o que ajo” (FRANKL in AQUINO, 2013, 52). Assim, podemos associar suas
palavras com as de Fayga Ostrower, na teoria da criação:
Formar
importa em transformar. Todo processo de elaboração e desenvolvimento abrange
um processo dinâmico de transformação, em que a matéria orienta a ação
criativa, é transformada pela mesma ação.
Transformando-se,
a matéria não é destituída do seu caráter. Pelo contrário, ela é mais
diferenciada, e ao mesmo tempo, é definida como um modo de ser. Transformando-se
e adquirindo forma nova, a matéria adquire unicidade e é reafirmada em sua
essência...
Daí
se nos apresenta outro aspecto que tanto nos fascina no mistério da criação: ao
fazer, isto é, ao seguir certos rumos afim de configurar uma matéria, o próprio
homem com isso se configura. (OSTROWER, 51)
Desta forma, compreendemos que a Arteterapia é um procedimento
terapêutico que faz um convite à transformação da matéria e de si mesmo através
da matéria. Eis aqui uma especificidade da Arteterapia como procedimento
terapêutico, a promoção do agir criativo dentro do setting arteterapêutico:
O agir amparado pelo continente do setting arteterapêutico através da criação é uma especificidade da Arteterapia dentre os procedimentos terapêuticos. Dessa forma, o setting configura-se como um ambiente suportado pela transferência com o arteterapeuta para que o cliente/paciente vivencie-se no fazer, articule-se em si e perante si, alcançando níveis de consciência mais elevados. Que, através da criação, ele se perceba em suas repetições, resistências, sintomas, e tenha a oportunidade de enfrentá-las. Que em meio a essa experiência tome decisões sobre esse enfrentamento (ou não) e que assim se responsabilize por si como autor e protagonista da sua obra/história, alcançando uma realidade nova em dimensões novas. (MORAES, 2018, 76-77)
Diante do que foi exposto, concluímos que no diálogo entre Logoterapia e Arteterapia, o convite para o criar e o agir dentro do setting arteterapêutico coopera para que o sujeito vivencie o binômio Liberdade/Responsabilidade em si, em cada etapa do processo criativo, na transformação da matéria e de si mesmo, simultaneamente. Pois como sintetiza Fayga:
Ao transformarmos as matérias, agimos, fazemos. São experiências existenciais – processos de criação – que nos envolvem na globalidade, em nosso ser sensível, no ser pensante, no ser atuante. (OSTROWER, 69)
Referências Bibliográficas:
AQUINO, Thiago. “Logoterapia e Análise Existencial: uma
introdução ao pensamento de Viktor Frankl”
FRANKL, VIKTOR. “Em busca de sentido”
MORAES, Eliana. “Pensando a Arteterapia Volume 1”
OSTROWER, Fayga. “Criatividade e processos de criação”
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Sobre a autora: Eliana Moraes
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