Por Eliana Moraes – MG
Retomando o percurso de minha
escrita caminhante no pensar a Arteterapia, percebo que desde meus primeiros
textos, algo que tanto me chamava a atenção na prática arteterapêutica se dava
nos limites da palavra: quando os pacientes/clientes chegavam ao setting
imbuídos de alguma angústia, mas a palavra como forma de expressá-la, parecia
interditada. Meus primeiros textos abordando essas observações clínicas e os
potenciais arteterapêuticos para a ampliação da linguagem foram compilados no
primeiro volume da série “Pensando a Arteterapia”.
Passados, desde então, dez anos
de atuação e atualmente também acompanhando como professora e supervisora a
prática de outros arteterapeutas, essas observações se atualizam e se ampliam.
Este texto faz parte de um dos objetivos específicos do Não Palavra
Arteterapia: colaborar para o desenvolvimento da escuta do arteterapeuta em sua
formação continuada.
No
“chão da vida” do setting arteterapêutico, observamos que há momentos em
que o paciente/cliente descreve grande angústia mas, por estar tão inconsciente
de si, não consegue associá-la à alguma causa raiz. Ou então, em casos de
expressões racionais, teóricas, um discurso viciado no campo já conhecido,
sendo este um mecanismo de defesa e evitação da dor de se fazer contato com suas
questões psíquicas mais profundas. Casos como esses são um grande desafio para
a psicoterapia tradicional pois aqui a palavra está associada à resistência. Já
a Arteterapia, com seu convite à ampliação da linguagem para além da verbal, se
mostra como um caminho de desbloqueio expressivo. Nas palavras de Duchastel:
Certo
conteúdos inconscientes estão profundamente enterrados no fundo da alma
simplesmente porque nós não estamos prontos para recebê-los. Essas imagens
são muito dolorosas ou muito vastas para serem apreendidas por um eu frágil ou
imaturo. A clandestinidade dessas imagens nos protege como nós protegemos
nossos filhos de certas realidades, pois eles não são ainda suficientemente
maduros para apreender plenamente seu sentido. Os símbolos do imaginário
servem de agentes de ligação entre a consciência e o que nos anima
subterraneamente. (DUCHASTEL, 2010, 51-52)
Obra: Susano Correia
Em Arteterapia compreendemos que
é possível, através do processo criativo e a formação de imagens, provocarmos
um rebaixamento da consciência resistente e recebermos pela “não palavra” a
anunciação de conteúdos psíquicos tão sensíveis ao paciente/cliente.
O imaginário
sempre precede o consciente. Todo conteúdo inconsciente se expressa antes
sobre a forma metafórica, em nossos sonhos, nossas imagens, nossos desenhos ou
nosso corpo. Por meio do imaginário, a psique anuncia, previne, age.
(DUCHASTEL, 2010, 39)
Entretanto,
um dos cenários clínicos que mais tem me tocado nos últimos tempos – recebidos
com mim e supervisionandos – está em pacientes/clientes que estão vivenciando uma
dor exacerbada, como por exemplo, em casos depressivos graves, ou a dor do luto
pela perda de um ente querido ou ainda a dor de lembrar-se de traumas como
experiências de abusos. Para essas pessoas, muitas vezes não é possível falar dessas
dores através da palavra. O paciente/cliente não suporta falar sobre sua dor
por uma sensação de “colocar o dedo na ferida”. Considero que para esse cenário
a Arteterapia proporciona, com maestria e beleza, a possibilidade do sujeito
permanecer no processo terapêutico com o recurso da “não palavra” das diversas
linguagens da arte. Através do contato com esta, o paciente vai se fortalecendo
e acessando seu potencial de saúde e seus recursos internos que muito
colaborarão para o enfrentamento de sua profunda dor. Nas palavras poéticas de
Angela Philippini, que são para mim uma bússola como arteterapeuta:
A experiência criativa nos
“transpassa” e permite que “trans-bordemos” e atravessamos limites e
interdições, resgatando “notícias de nós mesmos”, nem sempre
claras e acessíveis no meio dos inúmeros ruídos e dispersões da vida
cotidiana... (PHILIPPINI, 137)
Além
disso, a oportunidade da ampliação da linguagem coopera para que o sujeito
amplie também os conteúdos expressados, advindos do inconsciente, de forma que
amplie também seu olhar sobre outras perspectivas além da dor:
Contrariamente às
abordagens psicoterapêuticas tradicionais, onde se relata
principalmente eventos dolorosos ou traumatizantes decorridos no passado, a arte-terapia
implica uma experiência imediata, que é vivida aqui e agora.
Voltando ao instante presente, evita-se uma armadilha frequentemente
vista em terapia: o aprisionamento do cliente em seu mito pessoal. A pessoa
conhece e conta sua história pessoal como se tratasse de um cenário imutável, e
com frequência, estéril. (DUCHASTEL, 2010, p 32)
Essa
ampliação da linguagem e da percepção do sujeito coopera para a construção de
um “novo vocabulário” e a abertura para uma “nova experiência”:
A utilização de diferentes meios de
expressão... permite um contato direto com a sabedoria
inconsciente e estimula a emergência de emoções bloqueadas. O
terapeuta ajuda o cliente a observar seus modos de funcionamento e
ultrapassá-los, introduzindo uma nova experiência. Essa
experiência imediata no plano da relação terapêutica, oferece a possibilidade
de ser surpreendido pelo poder das imagens e descobrir novas facetas de sua
personalidade. Assim, aumentamos seu “vocabulário” de reações a diferentes
situações da vida. (DUCHASTEL, 2010, 32)
Em síntese, em Arteterapia é
possível acolher pacientes mergulhados em tão profunda dor que não é possível
falar sobre ela através da palavra. É possível sustentar um processo terapêutico
através da experiência com a arte em si. Através dela o inconsciente já é
mobilizado ao processo de “cura” de suas dores. Basta, como arteterapeutas,
termos a humildade de sustentar o setting no “silêncio elaborativo” do
paciente/cliente, preparando o terreno para sua consciência:
Estar à escuta
do imaginário e honrá-lo é criar um espaço seguro e protegido para alimentar
suavemente suas realidades inconscientes, às vezes, ameaçadoras, às vezes
difíceis de aceitar. Desenhar, pintar, modelar, jogar, cantar ou dançar permite
preparar o terreno da consciência. (DUCHASTEL, 2010, 51-52)
Concluímos que o papel de
arteterapeuta é sustentar um têmenos – “espaço sagrado” para que o
paciente/cliente mergulhe em no seu inconsciente através da arte. Mas especialmente, em cenários em que o caminho da palavra está impedido – o que pode
gerar desconforto e vulnerabilidade para o sujeito e para o terapeuta – cabe ao
arteterapeuta sustentar esse campo, terreno de potentes fenômenos do
inconsciente, até que seja possível a expressão pela palavra. Nosso papel é abrir mão do
controle e compreensão racional e sustentar esse campo com nossa própria energia psíquica
porque:
Através dos
meios artísticos, a pessoa exprime o que ela não saberia revelar de outra forma...
Para se
revelar, a alma precisa desse contato contemplativo com a imagem, o gesto, o
ritual. As palavras, a compreensão lógica, a disposição racional vêm em
seguida, mais claras, mais precisas. (DUCHASTEL, 2010, 32-33)
DUCHASTEL, Alexandra. O caminho
do imaginário.
PHILIPPINI, Angela. “Linguagens
e materiais expressivos”
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga
Que riqueza de conteúdo para pensar o diferencial da arteteraia frente a outras terapias que acontecem especialmente pela palavra. Me fez pensar que a não palavra também pode ser um caminho interessante para o excesso de palavras que servem para desviar do sentir... Aquele mecanismo de defesa que usa o falar compulsivo para evitar o vazio perturbador, o silêncio incômodo, evitando o contato mais profundo consigo mesmo.
ResponderExcluirTexto apropriado, rico em conteúdo, poético em seu desvelar a beleza do processo terapêutico e o quando a Arteterapia pode contribuir para os diferentes tipos de dores e sofrimentos de maneira singela, porém potente. É um texto para ler e reler muitas vezes. Obrigada, Eliana pela nutrição e incentivo ao nosso aperfeiçoamento constante.
ResponderExcluirGratidão por tanta riqueza, nesse conteúdo tão profundo!
ResponderExcluirNão sou anônima
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