Por Isabel Pires - RJ
bel.antigin@gmail.com
Metáfora (Gilberto Gil)
Uma lata existe para conter algo,
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo,
Mas quando o poeta diz: “Meta”
Pode estar querendo dizer o inatingível
Por isso não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe,
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora.
(Disponível em: https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/487564/
Acesso em: 12/05/23)
Na
busca de fundamentos para o uso do origami em Arteterapia, tenho escrito sobre
minhas pesquisas, conclusões pessoais e observações da prática clínica da
dobradura de papel no setting arteterapêutico (ver textos anteriores
aqui no blog). Dando sequência a esses textos, hoje pretendo falar de metáfora,
que contribui para fundamentar o uso do origami no trabalho arteterapêutico.
Para falar de metáfora, começo pela
procura de uma designação do termo. Frequentemente usamos palavras sem
realmente nos atermos à sua conceituação original ou formal, principalmente
quando muito utilizadas e até banalizadas. Por isso, a primeira coisa que
busquei, para escrever esse texto, foi a definição da palavra metáfora:
(...) pode-se definir a
metáfora como a figura de significação (tropo) que consiste em dizer que uma
coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo
espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante,
atributo por excelência, de B (...) (grifos do autor) (GARCIA, 1986, p. 85).
A
metáfora é uma figura de linguagem, ou seja, uma forma de expressão que sai do
padrão linguístico ao dar um sentido conotativo às palavras. Isso
significa que a palavra deixa de ter o significado literal do dicionário e
passa a possuir um sentido figurado, mais pessoal e até mais amplo. E
tal sentido baseia-se, sobretudo, na percepção de quem cria a metáfora,
pois a pessoa verá uma semelhança entre duas coisas diferentes, mas com algum
traço de similaridade subjacente, e lhes dará uma conotação mais subjetiva e
expressiva. Por exemplo: “Ele tem um coração de pedra”. Existe aqui uma
comparação implícita (na metáfora não se usam as palavras “como”, “tal qual”,
“tal como” e similares) entre um coração que não expressa/vive suas emoções e a
característica de dureza e frieza de uma pedra. Portanto, a metáfora é uma associação
de ideias de ordem psíquica, uma analogia de palavras, coisas, conceitos, num
nível subjetivo. Assim, expressa a maneira como o indivíduo percebe a
palavra original (no exemplo acima, coração) e aquela a que se associa (ou
seja, a pedra), e isso vai ser representativo da subjetividade de quem cria a
metáfora. Logo, identificar e entender a metáfora levará a uma melhor
compreensão do psiquismo do indivíduo. Se pensarmos que a linguagem revela o
pensamento, veremos a importância da metáfora no trabalho terapêutico.
Na
realidade, a metáfora transfere o significado de uma palavra para outro campo
de significação, ampliando-lhe o sentido e a expressividade. Se, na metáfora,
há uma mudança de significação, vale lembrar o que Vygotsky nos fala sobre
significado:
O significado de uma
palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que
fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do
pensamento. (...) Mas, do ponto de vista da psicologia, o significado de cada
palavra é uma generalização ou um conceito. E como generalizações e conceitos
são inegavelmente atos do pensamento, podemos considerar o significado como um
fenômeno do pensamento. (...) O significado das palavras é um fenômeno do
pensamento apenas na medida em que o pensamento ganha corpo por meio da fala, e
só é um fenômeno da fala na medida que esta é ligada ao pensamento, sendo
iluminada por ele (VYGOTSKY, 1991, p. 104).
Desta
forma, mudar o significado implica na mudança de pensamento. Significado,
sentido, pensamento: termos altamente relevantes no trabalho terapêutico. Por
isso, na Arteterapia, que usa a metáfora, a mudança pode surgir de forma mais
rápida e, até, mais fácil.
Além
disso, Sanfelice (2014) também explica que, para Nietzsche, toda linguagem é
metafórica, porque “a origem da linguagem revela as transposições – o que
justifica dizê-la metafórica – de significações por instâncias distintas:
estímulo nervoso, imagem, som, palavra. Cada transposição é uma metáfora”
(SANFELICE, 2014, p. 21).
Em
outras palavras, na transposição de significados através da metáfora, pode ocorrer
a evocação de uma imagem. No exemplo citado acima, a palavra coração é remetida
à imagem da pedra. Já na metáfora, “cabelos de ouro”, a palavra “cabelos” se
liga à imagem do ouro. E, em Arteterapia, trabalhamos sobretudo com imagem. É aí que podemos entrar com o origami, a
partir de uma imagem surgida tanto no discurso do paciente/cliente quanto numa
de suas produções. Se o indivíduo fala que precisa mudar de casa ou arrumá-la,
pode-se fazer uma casa de origami e pedir-lhe que a pinte ou desenhe no origami,
de modo que ela expresse e materialize o seu desejo. Ou se, por exemplo, em
alguma de suas criações artísticas no setting arteterapêutico, o
indivíduo enxerga uma borboleta, podemos tirá-la do papel e usar a técnica do
origami, que tem dobraduras para quase todo tipo de imagem que se possa
conceber. Então, essa borboleta ganhará vida e tridimensionalidade e poderá ser
“personalizada”, não somente com a cor e a textura do papel, mas também com outros
materiais, tais como lápis de cor, tinta, recortes de revista, entre outros. A
partir daí, teremos mais notícias de nosso paciente/cliente, que, através da
metáfora, é a própria borboleta criada.
Na Arteterapia de abordagem junguiana,
entendemos a imagem como um símbolo, veículo de transmissão de um conteúdo do
inconsciente, gerado pela psique para ampliação da consciência. Isso porque o
inconsciente conversa com a consciência através de símbolos, que materializam
imagens arquetípicas. Esse símbolo deverá ser trabalhado de diversas formas,
com diferentes materialidades, para poder ser compreendido, num processo
chamado de amplificação. Uma dessas formas de amplificar o símbolo é a
dobradura de papel, cuja materialidade é acessível, leve e barata.
No
caso particular da Arteterapia, podemos considerar que a metáfora permite a
transposição de um termo ou ideia não apenas para uma imagem, mas também para uma
ação. Com a metáfora de uma fala/palavra que o paciente/cliente traz em
seu discurso ou criação artística, poderemos convidá-lo a atuar, através da
expressão artística, na modificação desta fala e, consequentemente, de seu agir.
É com ela que faremos a ponte entre a linguagem e a ação, entre a palavra e o
agir criativo, que levará à modificação do pensamento e da atitude. Assim na
arte como na vida: o indivíduo irá fazer na atividade expressiva do setting
arteterapêutico da mesma forma que deverá atuar na vida. Desta forma, no
exemplo que citei sobre a casa, a dobradura da casa é o desejo do paciente
concretizado no papel. Com uma grande frequência, na minha clínica, depois de
fazer o origami da casa, o paciente/cliente em pouco tempo muda de casa ou
arruma a sua. Parece magia! Mas é a metáfora em ação através da arte.
Do
mesmo modo, se o indivíduo precisa deixar fluir as emoções, deverá trabalhar
com o fluir da tinta. Assim como a tinta flui no papel ou na tela, assim suas
emoções deverão fluir na sua vida. Se é necessário ser mais realista e
pragmático e pôr os pés no chão, então poderá trabalhar com argila, para
“aterrar”. As metáforas aqui são “arte é vida” e “agir na arte é agir na vida”,
porque, na Arteterapia, vivenciar o processo artístico será equivalente a
transpor a ação para a vida, da mesma forma que a metáfora transfere uma
palavra com determinado significado para outro campo semântico. Por isso, a
metáfora cria a ponte entre o psiquismo do paciente/cliente e o material ou a
atividade que o arteterapeuta lhe propõe. A esse respeito, Moraes (2020, p. 17)
diz que o arteterapeuta é o “’promotor de encontros’ entre o sujeito que fala e
um material que será facilitador de seu discurso, da elaboração de conteúdos
psíquicos e de retificações subjetivas a partir do ato criativo”.
Em
suma, a metáfora vem do próprio discurso do paciente, da sua fala,
quando ele diz algo como “estou engaiolado”, em que a imagem da gaiola metaforiza
uma prisão; do seu sintoma, por exemplo, quando se sente engasgado
por ter deixado de falar algo importante, o que é uma metáfora corporal de uma
expressão verbal que ficou retida, travada; ou da sua criação
artística, como quando faz um desenho cego e, depois, enxerga um pássaro,
que, na verdade, metaforiza a sua vontade de se libertar, de voar. A metáfora vem,
também, do arteterapeuta, quando cria a analogia entre o que o
paciente/cliente vive no momento e os materiais expressivos a serem usados. Mas
também surge do próprio agir criativo, com a atividade proposta
pelo arteterapeuta, para metaforizar a ação que deverá ser transposta para a
vida do indivíduo.
E
o origami, nisso tudo? Bem, o origami entrará nesta metáfora, quando for
necessário, por exemplo, propor o limite, conforme expliquei no meu texto
anterior (“Linhas e origami: pontos de encontro”). Mas também poderá ser a
metáfora de leveza, por se trabalhar com o papel; de humildade, por se lidar
com algo desafiante e desconhecido; de reencontro com a criança interior, que
já brincou com chapéus e barquinhos de papel no passado. Podemos metaforizar o
voo do avião de papel com a liberdade de ir e vir, com o propósito que se quer
seguir, o objetivo a alcançar ou com o atirar para bem longe algo de se quer se
livrar. É possível usar a metáfora do ego com o barco, que conduz o indivíduo
pelos caminhos da vida. E muitas outras imagens podem surgir e transformar-se
em dobraduras, imagens que viram esculturas leves, delicadas e bonitas, que
falarão muito do indivíduo que a fez (como mostrarei no meu próximo texto).
Sintetizando:
a metáfora conduz à imagem. A imagem é um símbolo que advém do inconsciente. A
atividade artística é a materialização do símbolo. O origami pode ser esse
símbolo materializado através de uma metáfora. A metáfora conduz à ação pela
atividade artística. E a metáfora em ação conduz à transformação do indivíduo.
Como
metáfora, a atividade do origami traz leveza, tridimensionalidade,
sensorialidade (pelo contato com o papel, sua textura, espessura e, às vezes,
cheiro), brincadeira e imaginação. Na ação metafórica de fazer o origami, o
indivíduo viverá o limite, o dobrar, o moldar, o persistir, o desafiar-se, o
surpreender-se e até o encantar-se com a sua dobradura. Além disso, o sujeito
poderá ser um barco, uma borboleta, um avião, um tsuru e tudo o que esses
objetos podem representar: o eu, a liberdade, um objetivo, um sonho. Basta
metaforizar e brincar de dobrar o papel.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
GARCIA,
O. M. Comunicação em Prosa Moderna. 13ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Fundação Getúlio Vargas, 1986.
VYGOTSKY,
L. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
SANFELICE,
V. Metáfora e imaginação poética em Paul Ricoeur. Dissertação (Mestrado
em Filosofia) - Universidade Federal de Santa Maria. Rio Grande do Sul, p. 21-22.
MORAES,
E. (org). Escritos em Arteterapia: coletivo Não Palavra. Divino de São
Lourenço, ES: Semente Editorial, 2020.
SOBRE
A AUTORA:
·
Arteterapeuta
·
PSICÓLOGA CLÍNICA
·
ESPECIALISTA
EM PSICOLOGIA JUNGUIANA
·
PROFESSORA DE
INGLÊS E FRANCÊS
·
Formada em
Antiginástica ®Thérèse Bertherat
·
Formada em Jornalismo
·
Atendimentos individuais e em grupo (online/presencial)
·
Contatos: Whatsapp: (21) 97657-5685
E-mail: bel.antigin@gmail.com
Instagram: @isabelpires.artepsi
OI, Isabel, boa noite! Que texto maravilhoso! Quanto conhecimento compartilhado. Quantas coisas boas e impressionantes sobre a metáfora e sua construção no oficio do arteterapeuta. FIquei encantada com a profundidade . Separei algumas partes que achei excelentes, como o texto todo esta: ...num processo chamado de amplificação. Uma dessas formas de amplificar o símbolo é a dobradura de papel, cuja materialidade é acessível, leve e barata. OUtra parte importante é o final: Sintetizando: a metáfora conduz à imagem. A imagem é um símbolo que advém do inconsciente. A atividade artística é a materialização do símbolo. O origami pode ser esse símbolo materializado através de uma metáfora. A metáfora conduz à ação pela atividade artística. E a metáfora em ação conduz à transformação do indivíduo . Enfim, esta maravilhoso mesmo! Não dá para imaginar que o origami seja tão útil no processo arteterapeutico como voce tem nos desvelando ao longo de textos tão ricos ! Obrigada.
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Obrigada, Tânia! Acredito que a metáfora seja uma das bases do nosso trabalho arteterapêutico, como fundamento e especificidade. Beijos.
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