segunda-feira, 5 de julho de 2021

DIÁLOGOS ENTRE ARTE, TERAPIA E TARÔ: O MAGO E A MATÉRIA (ESCULPIDA E MODELADA)

 Por Mercedes Duarte - RJ

Esse texto é parte sequencial dos “Diálogos entre Arte e Tarô” que estão sendo publicados mensalmente aqui. Depois de uma introdução à proposta, esse é o segundo dos 22 textos que trarão reflexões sobre os 22 arcanos maiores do tarô em diálogo com aspectos da arte, sejam técnicas, movimentos artísticos, obras e/ou biografias de artistas. O intuito desse diálogo é o de proporcionar reflexões propositivas, possibilidades terapêuticas, que permeiam esses elementos em diálogo, inspirando assim a ampliação do repertório arteterapêutico. 

Nesse texto, trarei a técnica da cinzelação e da modelagem, para dialogarem e possibilitarem uma aproximação terapêutica com o arquétipo do Mago, arcano de número um do tarô. 

O Mago – Arcano número I

Tarô de Marselha


                                                                        Tarô de Waite e Smith 

O mago simboliza o potencial de criação, de manifestação. Diferentemente do louco, o mago possui consciência de seu potencial de realização, e detém a eterna possibilidade do vir a ser, simbolizado pela lemniscata sobre sua cabeça. De acordo com Nichols, enquanto o louco simboliza “’o eu como prefiguração inconsciente do ego’, o Mago pode ser visto como a encarnação de um elo conetivo mais consciente entre o ego e o eu” (NICHOLS, 1997, p.79).

O mago, número UM, representa o princípio consciente gerador de tudo, é ele que abarca a cosmogênese, a força primeira da vida. Não por acaso ele possui todos os elementos da natureza disponíveis a sua frente. No tarô de Waite e Smith, imagem à direita, a taça simboliza a água, a espada o ar, a moeda a terra, o bastão o fogo e a baqueta, em sua mão erguida, sua conexão com o divino, com a qual captura a força invisível para manifestar a matéria. São esses elementos primordiais, que fazem parte dos naipes dos arcanos menores, que ele lança mão para sua alquimia. Os quatro elementos de sua mesa podem simbolizar também os quatro reinos evolutivos: mineral, vegetal, animal e humano. Ou seja, o mago traz em si o potencial de desenvolvimento da vida.

Ainda na carta de Waite e Smith, uma mão aponta para cima e a outra para baixo, mostrando que “tudo que está em cima está em baixo”, ou “tudo que está dentro está fora”, assim como, por exemplo, os quatro elementos da natureza que estão em nossa constituição e também na constituição das pequenas e grandes coisas do universo, ou como a correspondência entre o consciente e o inconsciente (“em cima e embaixo”), e as emoções e o mundo físico (“dentro e fora”). Esse princípio diz respeito à segunda lei das sete leis universais herméticas atribuídas à Hermes Trimegisto: a lei da correspondência.[1] 

O mago então representa o elo, a mediação entre esses universos. Tal como Hermes ou Mercúrio (deuses mitológicos), o Mago tem a função de fazer a comunicação entre o mundo externo e o mundo interno, entre o visível o invisível. Portanto, ao mover fora, apresentando sua mágica ou manipulando sua magia, o mago também move dentro de si, e vice-e-versa. 

            No processo de manifestação da matéria, o mago, um alquimista, manipula seus objetos, que consistem nos elementos necessários para o empreendimento e a magia que desejar. A palavra “magia”, como bem ressalta Sallie Nichols (1997), é afim da palavra imaginação, a qual é indispensável a toda arte e ciência que, por sua vez, inventam o mundo que conhecemos. Mágica e magia estão aqui relacionadas, pois o processo alquímico pode ser considerado um processo mágico.

O mago, portanto, apresenta sua mágica, como vemos no Tarô de Marselha (imagem acima à esquerda), ao criar uma multiplicidade de coisas que podem ser concebidas como ilusórias, pois a base de tudo é UM, o número que lhe representa. De acordo com Nichols (1997) o mago cria o mundo que parece existir, mas ao mesmo tempo ele revela que “debaixo dessas ‘dez mil coisas’ [a maya], todas as manifestações são uma só” (p.60).  Ou seja, tudo que existe, existe a partir da substância e no interior desse UM cósmico, dessa realidade última, universal, sendo a multiplicidade das coisas obra de sua magia.

Assim, o mago fala de nossa criatividade e capacidade de criação, de materialização e manifestação da vida, dos projetos, das coisas do mundo, e ao mesmo tempo dessa capacidade como fruto da conexão com a fonte primeira, com a força una criadora de tudo.

A modelagem em argila ou cinzelação

A escultura e a modelagem são técnicas que nos aproximam do arquétipo do mago. Assim como esse arquétipo que encarna o poder de criação e revela o que há debaixo de todas aparências, com essas técnicas podemos dar forma ou “desvelar” uma imagem. Para refletir a respeito desse arcano, Nichols (1997) nos traz a imagem da obra de Auguste Rodin, a Mão de Deus, por sua simbologia e processo de construção serem afins com as características do arquétipo. 

A escultura, de acordo com a autora, pode ser considerada uma espécie de revelação mágica. Existe a percepção entre os escultores de que ao invés de criarem a figura, eles simplesmente libertam a forma do material supérfluo que a encobre.

                                                   The Hand of God. Modelado entre 1896–1902. Esculpido em 1907.[2] 

Nessa obra de Rodin é retratada o nascimento de Adão e Eva, que é desvelado através da cinzelação do artista. Nela criador e criatura estão misturados, assim como no mago, em que a base primeira se mistura à criação, à multiplicidade, sendo preciso ser desvelada. Por outro lado, o homem, nessa imagem, está aprisionado à matéria, o que representaria nossas limitações e necessidades de “desprender” o espírito da matéria, tal como os alquimistas buscavam realizar em suas fórmulas mágicas (NICHOLS, 1997). De acordo com Nichols (1997), ao encontrarmos modos de libertar nosso espírito, de desvelar nosso self, podemos transformar nosso mundo interior e afetar o mundo em que vivemos: 


precisamos encontrar maneiras de libertar o nosso espírito aprisionado de modo que possa funcionar como ‘substância transformadora’ com o poder de alterar o nosso mundo interior e afetar o exterior. Necessitaremos dessa ajuda afim de encontrar o caminho através da escuridão da natureza interior e desvelar afinal o eu, o sol central do nosso ser agora eclipsado na escuridão, de sorte que ele possa brilhar de forma nova. Na medida em que conseguimos fazê-lo, nós como indivíduos nos modificaremos e a própria natureza humana se transformará (p.66). 

A modelagem, especialmente em argila, é outra técnica que me inspira nesse caminho. A argila é um material que oferece o contato com todos os elementos de que o mago dispõe simbolicamente: a terra, maior parte de sua composição; a água, necessária para manipular a massa de argila; o ar, parte constitutiva do material e necessário para a secagem; assim como o fogo, muito utilizado para a secagem da peça modelada, seja através do forno ou do sol. 

            Esses elementos citados, como sabemos, estão relacionados a nossas origens, à nossa ancestralidade e àquilo de que somos feitos: do barro (PHILIPPINI, 2009, p. 71). Portanto, o contato com a argila, por ser considerada um material primordial, nos oferece uma espécie de retorno à natureza (MORAES, 2018, s/n), a qual se associa à fertilidade, à criatividade e à potência de criação. 

            Em sua manipulação, a argila requer certa postura relacionada à persistência e paciência (URRUTIGARAY, 2007). Entretanto, uma vez que essas características forem mobilizadas, a argila possibilita fontes de criação e experimentação inesgotáveis, possibilitando o estímulo às transformações e ações no mundo.

No que concerne a técnica da modelagem, a prática em si já é uma maneira de sairmos de um estado de estagnação, expressando e transformando nossos mecanismos psíquicos e nossas ações no mundo: 

A modelagem é muito importante para ativar o indivíduo que se encontra em um estado de estagnação e não consegue transmitir seus pensamentos e sentimentos a suas energias a fim de disponibilizá-los em sua vida. Com a modelagem registramos histórias, expressamos atitudes, e fazemos mudanças psíquicas, ao passo em que mudamos a forma na modelagem, transformamos nossas atitudes e emoções humanas. Além de despertar emoções adormecidas (SEIXAS, 2008 apud FREITAS, 2010, p. 82).

Proposta Terapêutica

Nas oficinas realizadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, inspiradas nesse arquétipo, lançamos mão da cinzelação realizada em barra de sabão de coco. Com essa técnica, foi possível a experiência de desvelar a “forma primordial” escondida sob os excessos. No trabalho de retirar aquilo que obstaculiza a manifestação da forma, desbloqueamos simbolicamente os caminhos da nossa capacidade de criação. E, posteriormente, pudemos resignificar o que era excesso através da modelagem de uma massa produzida com a adição de hidratante ao material removido na cinzelação. 

No trabalho plástico abaixo, realizado na Jornada, a autora esculpe um jarro que expressa sua conexão receptiva com a espiritualidade. E ao reconfigurar os excessos, a participante modela uma pomba que simboliza a própria espiritualidade. Se coloca, portanto, como canal de comunicação com o divino em seu processo de manifestação e criação.

Título: Espiritual

Considerações Finais 

Considero que tanto a cinzelação quanto a modelagem da argila (ou mesmo de outro material como é o caso do sabão com hidratante) são técnicas e materiais pertinentes para acessarmos o arquétipo do mago, pois viabilizam a ampliação simbólica de nosso potencial de criação, manifestação, intervenção no mundo e realização, podendo ser associado à conexão com o invisível, ou com as nossas origens.


Referências Bibliográficas

FREITAS, Walkíria de Andrade Reis (2010). Arteterapia em Consultório: “Uma viagem interior”. Monografia de especialização em Arteterapia, Instituto Junguiano da Bahia (IJBA), Salvador – BA, 2009, Walkíria Freitas, Rio de Janeiro: Agbook.

MORAES, Eliana (2018). Para 2018, olhos de semente: diálogos com a argila. Blog não-palavra. Disponível em http://nao-palavra.blogspot.com/2018/02/para-2018-olhos-de-sementes-dialogos.html Acesso em 01/12/2018

NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.

PHILIPPINI, Angela (2009). Linguagens, materiais expressivos em arteterapia: uso, indicações e propriedades. Editora Wak: Rio de Janeiro.

URRUTIGARAY, Maria Cristina (2007). Interpretando Imagens, transformando emoções. Editora Wak: Rio de Janeiro.



[2] Ver Livro Caibalion, publicado pela primeira vez em 1908, assinado por "os Três Iniciados". O livro afirma conter os princípios de Hermes Trismegisto, que eram ensinados nas escolas herméticas do Antigo Egito e da Antiga Grécia. Algumas de suas ideias anteciparam conceitos, como por exemplo, a Lei da Atração, popularizada na contemporaneidade.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte



Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos

Um comentário:

  1. Nossa, muito bom esse seu texto !!!
    Parabéns !!!
    Um grande abraço, Claudia Abe

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